Friday, May 12, 2006

A MANCHA DE TEXTO

Numa das últimas entrevistas de Ana Sousa Dias que tive a ocasião de ver, o escritor Rodrigo Guedes de Carvalho, colocado perante a premente questão de se saber qual o meio que utilizava para escrever afirmou peremptoriamente que usava o computador. ASD insistindo ainda nestes profundos mergulhos nos arcanos da oficina da escrita perguntou-lhe então porque usava ele o computador. O escritor e jornalista RGC não hesitou e respondeu: por causa da mancha de texto. A outra e mais evidente justificação teria sido: por causa do corrector automático. Mas a resposta de RGC não é tanto elucidativa por aquilo que revela, mas antes por aquilo que oculta. É que, aparentemente, a mancha de texto tornou-se uma preocupação legítima para um escritor. Dificilmente imaginamos Dostoievski, Flaubert ou Proust a preocuparem-se com a mancha de texto (embora este último gostaria da ideia de que todo o texto se pudesse tornar mancha). Todavia, grande parte dos media actuais assim como os veículos da palavra escrita (como sejam os livros) vivem obcecados pela mancha de texto. Nos jornais a mancha de texto tornou-se o santo e a senha da comunicação, nas televisões a mancha de texto substituiu o próprio texto (a imagem ocupa dictatorialmente o lugar do texto) e até nos blogues a mancha de texto constitui superlativa preocupação dado que deve este último ser apresentado no espaço que nos permita assimilá-lo imediatamente – ou seja segundo o formato do ecran.
A importância da mancha de texto prende-se com a possibilidade de assimilar uma mensagem escrita enquanto imagem; ou seja, a composição do texto, o seu formato, surge como portador do principal impacto da mensagem. Em tempos, a isto se deu o nome de formismo e esteve em voga em algumas correntes de poesia experimental. Significa que o conteúdo do texto perde a sua primazia deslocando-se esta para o formato do mesmo. A mancha de texto indicia, portanto, uma redução.
Enganados estavam os pós-modernos que anunciavam excitados um mundo de fragmentação e de ilimitadas possibilidades combinatórias. Com efeito, o mundo no qual nos encontramos não consegue mais encobrir a sua maior falácia – em toda a sua diversidade ele dirige-se infatigavelmente para a mais implosiva redução. Assim, os filmes imitam telediscos que por sua vez imitam anúncios que por sua vez imitam notícias – e vice versa – que por sua vez imitam emails que por sua vez imitam mensagens publicitárias. O mundo da redução a tudo e a todos limita. O texto é uma das últimas vítimas, mas que não resistirá por muito mais tempo. A escrita será engolida por esta vertigem da similitude estrutural do "meio". Machluan disse em tempos “o meio é a mensagem”, esqueceu-se de acrescentar que era “sempre o mesmo meio” que faz a mensagem. Tudo parecerá repetição.
O mais triste é que, com tanta preocupação com a mancha de texto, cada vez se produzem mais textos que são uma nódoa.

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