Monday, June 18, 2007

O último dos teólogos


Um dos sintomas de senilidade e profunda confusão que assolam a Igreja católica e o catolicismo em geral pode ser identificado nos textos de César das Neves. Os dilemas são pungentes e, acreditamos, de difícil resolução para quem bascula entre a razão – por obrigação da sua vida mundana – e a fé. Os dois princípios não são irreconciliáveis como Aquino procurou demonstrar. Porém, há um elemento estranho que se intrometeu entre estas duas dimensões e esse, sim, é difícil debelar. Refiro-me à sociedade de consumo. A sociedade de consumo pode parecer de somenos, ou quando muito um fenómeno paralelo que não tem porque se imiscuir nesta contenda. Todavia, ela intersecta ambas, fé e razão, no âmago da sua plausibilidade. E porquê? Porque a sociedade de consumo tem por finalidade responder às questões existenciais, se possível, substituí-las por objectos que possuam a capacidade de as sublimar. E porque a fé, sobretudo para os mais recentes neo-existencialistas, como Tillich, pretende ser a resposta para o vazio existencial – aquilo que Freud designou por “pulsão para a morte”. São dois princípios concorrenciais: as respostas às “questões últimas” oferecidas pela fé e estas mesmas questões resolvidas através da pulsão consumista. Se o death drive radica na presença, aliás, na confrontação, com o não-ser, a pulsão consumista tem vindo a herdar o seu papel enquanto pretensão existencial. Pois o que é a incapacidade de satisfação e a sua mutabilidade permanente projectando-se na necessidade do “novo” senão o vazio aberto pelo não-ser? O que é a renovação permanente a que o consumismo nos obriga senão a consciência aguda da finitude?
Porém, a crítica ao putativo estado desregrado e amoral da sociedade actual nunca consegue ganhar corpo nas palavras e ideias dos arautos do catolicismo. A dificuldade, quase penosa, que o Papa actual evidencia para recupar os ícones da fé sujeitando-se em simultâneo à aceitação tácita da sociedade de consumo. A crise simbolizada por esta encruzilhada encontra-se bem patente na catarse crítica contra os homossexuais e o aborto. Com toda a certeza, ninguém na plena posse das suas faculdades considera estes dois elementos como mais do que epifenómenos de uma desorientação mais generalizada – do ponto de vista de um católico, sublinhe-se. E no entanto foram estes os tópicos eleitos para servirem de bode expiatório. Ou seja, já nem a teologia se consegue sufragar através da razão – mesmo que apologética ou metafísica. O catolicismo, perdido de referências lógicas, actua como um simples mecanismo de gestão do preconceito. Esta expiação da inutilidade interna da doutrina através dos “outros” faz-se com objectivos pouco concretos, as mais das vezes deambulantes, segundo a natureza incerta das suas diatribes. Nisso a prosa de César das Neves é exemplar. Tal como um Quixote esconjurado das profundas do Inferno, César das Neves brande a sua lança contra os moinhos de vento da imoralidade. Mas uma coisa permanece como rastro insidioso que ele, na sua cavalgada, vai deixando pelo caminho: a total ausência de teologia.
É provável que assistamos mais e mais ao engendrar de inimigos exteriores e ao acumular de perigos. Afinal a retórica do catolicismo não enjeita afinidades com toda a retórica que pretende justificar o poder em bases irracionais.

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