Sunday, June 17, 2007

O Sofista



Pacheco Pereira é uma personalidade conflitual. O que quero dizer com isto não é que o “homem” PP seja particularmente propenso ao conflito; mas parece no entanto albergar uma personalidade cindida, quebrada, que não se completa senão numa sofistica de carácter público. Assim temos o estudioso PP que tenta analisar e relatar os acontecimentos com objectividade; depois temos o intelectual orgânico PP que faz serviços ao partido em que milita – e é justamente aí que a sua sofística encontra o molde e, igualmente, a vazão.
Porque PP é um sofista equilibrado aceitam-no como um homem que carrega consigo a cruz da democracia; ou seja, um homem que opina e pensa pela sua própria cabeça, sendo nisso por vezes até considerado um heterodoxo – imagem que ele próprio cultiva – contrapondo-se ao poder de arregimentação das fileiras partidárias. Não é verdade. E é sobretudo a sua elasticidade sofística que lhe permitiu criar essa imagem e imprimi-la na opinião pública portuguesa.
Num artigo recente do Público, PP agita-se a favor da greve. Parece normal que um estudioso da militância comunista e anarquista tivesse muito para dizer sobre a greve enquanto fenómeno social. Mas PP envereda por outro caminho; um trajecto que lhe permite prevenir percalços e sobressaltos. Começa por sinalizar de que lado está – e isto é uma constante nos textos de PP que indicam sempre no correr do texto – como Hitchcock fazia no início dos seus filmes em relação ao móbil do crime– qual é a sua posição, política, em relação a um determinado assunto: Eu não estou de acordo com quase tudo o que a CGTP defende, sou a favor de muito mais do que a "flexisegurança", a solução de meias tintas em voga, em matéria de lei laboral, mas longe de mim ter desprezo por quem defende as suas ideias e os seus interesses.
Desta afirmação enfática parte PP para a premissa segundo a qual a greve, como legítimo mecanismo de protesto, tem vindo a ser sistematicamente sabotada. Mas por quem? A conclusão é surpreendente: pelo estado e, particularmente por este governo socialista. Até se pode concordar que uma tal equação é verosímil, mas não pelas razões que PP apresenta. PP insurge-se contra o governo que, supostamente, estaria a minar a possibilidade da greve e para o provar mente deliberadamente: Claro que os desdenhosos vão dizer que muitos dos que "fizeram" greve vão depois meter baixa ou apresentar qualquer justificação para não virem nas listas de grevistas e receberem o dia em que não trabalharam. Alguns o farão, uns porque precisam do dinheiro, outros porque estão habituados a este tipo de truques e querem ficar no melhor de dois mundos. Mas muitos fazem-no pela mesma razão que milhares de outros portugueses não fizeram greve: porque têm medo, medo de perderem o seu precário emprego, medo de serem colocados numa lista qualquer de excedentes, medo de serem mal classificados na função pública por um chefe que muito provavelmente é hoje da "cor" do Governo. Este medo explica por que razão a única sondagem realizada mostrava que a maioria dos portugueses apoiava a greve e tão poucos acabaram por a fazer.
PP sofisma descaradamente, porque acabamos por ter a representação da greve – que note-se, começou por ser um fenómeno geral – acantonada à função pública. As justificações enunciadas por PP são todas relativas à função pública: as listas dos excedentários, medo de serem mal classificados e chefes de outra “cor”. E no entanto a maior adesão à greve foi justamente na função pública, nomeadamente no grupo dos professores. É verdade que o desencontro entre a vontade de fazer greve e a prática da mesma denota medo. Mas este medo encontra-se, a julgar pelos insignificantes números da adesão no sector privado, onde as pessoas estão a prazo, onde o contrato colectivo de trabalho se tornou um anacronismo, onde enfim a flexisegurança e muita mais impera. PP não tira a conclusão – mais que lógica – de que é a tal flexisegurança “e muito mais”, que ele tanto parece apreciar, que enfraquece a greve, que a destrói como arma de protesto político, que lhe tira as condições de reivindicação. Como pode então PP ser a favor da flexisegurança e “muito mais” – e neste “muito mais” esconde-se algo obscuro que nem ele própria tem coragem para confessar – e ao mesmo tempo achar que a greve deve funcionar como forma de protesto legítima dos trabalhadores? Não pode. Mas devia tirar a conclusão óbvia: não se pode ser a favor de “muito mais” do que a flexisegurança e da greve como mecanismo de pressão em simultâneo. Simplesmente porque a flexisegurança existe para acabar com a greve. Neste contexto só podemos pensar que a greve para PP não passa de um momento estilizado; porventura ressoando-lhe a outros tempos, em que ele se achava radical e oposicionista.
Custa-me acreditar que um homem inteligente como PP não se aperceba da extrema falsidade das suas análises. O Pereirismo é uma forma de sofisma sistematizado.

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