Animatógrafo do Rossio
O que têm as feministas a dizer sobre a pornografia? Aparentemente muito e pouco consistente. Temos a chamada “segunda vaga” do feminismo, instalada nos anos 70 e 80, com uma versão bastante poderosa e inflexível sobre a pornografia: a representação da sujeição da mulher no seu paroxismo, assim como esta é pretendida pela sociedade falocêntrica. Nesta perspectiva, a pornografia reproduz os padrões falocênctricos de subordinação da mulher à vontade do homem, quer através da relegação do corpo da mulher para o lugar do objecto quer do mito da hiperpotência e infalibilidade masculina. Mais prosaicamente, para a segunda vaga, a pornografia violava o corpo da mulher. À partida, muitos de nós, couraçados em armaduras morais, nem teríamos nada a contrapor; exceptuando o facto de a contraposição emergir do próprio seio da ideologia feminista.
Com efeito, a chamada “terceira vaga” do feminismo deixou de arvorar uma posição absolutamente inflexível em relação à pornografia. Para as novas feministas, não é a pornografia em si que é má; é um dado tipo de pornografia. Quando esta é feita tendo em conta o prazer feminino, pode perfeitamente enquadrar-se nas múltiplas possibilidades estéticas de expressar esse mesmo prazer. A linguagem do prazer assume aqui uma preponderância que não possuia para as feministas da “segunda vaga”. Para estas a contenda estava instalada na reivindicação de um lugar estrutural igualitário; lugar esse que promovesse as mulheres enquanto grupo, e não apenas individualmente. Esta promoção passava, no entanto, pela igualdade, não apenas estatutária, mas também “in natura”. Isto parece estranho, porque não se reivindicava uma natureza fundamentalmente igual, mas pelo contrário a revelação de que era esta informada pela cultura; ou seja, que aquilo que passava por ser natural era afinal de contas produto da acção cultural. Mas como esta acção não acontece num vácuo, a análise da “segunda vaga” das feministas desembocava na centralidade do poder relativamente à naturalização da cultura. A terceira vaga – descontando as tonalidade toffelianas da expressão – revela-se menos consistente, menos homogénea e menos defensiva – o mesmo é dizer, menos combativa. E a pornografia enquanto construção cultural interpeladora das retóricas das novas feministas reveste-se de um interesse acrescido. Primeiro o desvio pelo “Girl Power” e o que ele contém de mistificação da mulher juvenil. Se a imagética dos atributos sexuais, enquanto manifestação de uma sexualidade enviesada segundo os padrões masculinos, constituiam o lado obsceno da exploração do corpo da mulher, o “Girl Power” vem dizer que está correcto ser sedutora, bela, eternamente jovem, mas também irreverente, de uma irreverência estruturante do próprio universo feminino enquanto afirmação de uma sexualidade libertada que não se verga às regras impostas pelo falo. Por outras palavras, o “Girl Power” incita à substituição do moralismo opressivo das feministas de “segunda vaga” pela afirmação do universo “girlie”. O universo girlie é heteróclito, naquilo que mescla de adereços juvenis, recolhidos no mundo das barbies dolls, com uma postura sexual agressiva. Mas também é facto que reassume a imagem da mulher enquanto objecto. Aliás, a mescla entre os aspectos juvenis e a sexualidade agressiva tem sido de tal forma marquetizada ao ponto de já não restar qualquer força emancipatória em seja qual for a sua mensagem. A ilustração mais perfeita do “girlie” foi a banda Spice Girls. As Spices estavam entre a contra-revolução feminista e a pura marquetização do corpo feminino. Foi justamente a apropriação do mote “girl power” pelas Spice, vindo de paragens mais rudes onde a expressão ainda continha o seu mobil revolucionário, que o tornou uma imagem de marca; uma acessório precioso com capitalização no mercado, quer feminista quer no mais vasto espaço de diversificação consumista. O “girl power” extraia o potencial emancipatório dos seus primórdios substituindo por um histerismo carnavalesco da mulher enquanto animal sexual. E só isso. As Spice formulam-se enquanto entidades sexuais, cujo poder se concentra nas suas capacidades eróticas – o discurso da sedução em que o prazer é sumamente carnal. Por isso se assistiu ao acompanhar desta nova projecção-distorção do universo feminino por um gradual desinvestimento da sua intelectualização. Se há algo patente nas manifestações “girl power” é o seu desprezo pelo discurso intelectual e pelas formulações teóricas. Esta desintelectualização é sustentada por uma obsessão voyerista onde as palavras são sistematicamente substituídas por estímulos: gráficos, sonoros, etc. O recurso ao puro estímulo, sem mediação, é um dos artifícios da pornografia. É o que a separa do erotismo. A pornografia não é erótica, nem tão-pouco pretende ser, como certas feministas da terceira vaga auguram, ao proporem uma pornografia que dê atenção ao universo feminino. A inversão consistiria na apropriação da pornografia enquante representação do prazer, da fantasia e, em certa medida, de actividades desviantes, mas desta feita sem cair no falocentrismo do universo heterossexual. Com efeito, é dos lados do movimento GLB, sobretudo das lésbicas, que surgem as propostas para este reinvestimento erótico da pornografia. Fica claro que as feministas da segunda vaga não previram que a pornografia pudesse não ser apenas considerada enquanto representação da dominação heterossexual, mas que fosse recriada por outras orientações sexuais, onde o binómio masculino-feminino não é tão evidente (embora possa igualmente reproduzir as suas características na assunção desses mesmo papéis pelos seus participantes). As lésbicas reivindicam a representação do prazer e da fantasia para além dos padrões da sociedade patriarcal. Donde, a crítica das feministas de segunda vaga ser fundamentalmente proveniente de um espaço heterossexual. Se as lésbicas opõem a esta consagração da heterossexualidade e à crítica formulada pelas feministas dos anos 80, uma reavaliação do prazer e da representação dos corpos, para além do viés – quer crítico, quer apologético – da sociedade patriarcal, significa que, em certa medida, a pornografia deixa de ser material alienante para passar a ser o próprio locus da interpelação ao feminismo mais ortodoxo. Neste caso, a pornografia é o meio da expressão da sexualidade feminina par excelence. E aqui cabem os relatos intímos, em discurso directo, que nos são oferecidos pelas revistas ditas “para mulheres”. Estes não são imediatamente pornográficos, ou não o são no sentido da pornografia tradicional, aquela que servia de alvo às críticas das feministas ortodoxas. Mas não deixam de registar paralelos assinaláveis. Considerando que o discurso da sexualidade enquanto discurso da prática sexual se revela como o dispositivo necessário da expressão da feminilidade, os relatos de pendor intimista, assim como os testes de avaliação dessa mesma performatividade, tornaram-se assimptóticos da pornografia. Torna-se portanto concebível um feminismo ancorado na representação pornográfica do prazer, enquanto especificidade do feminino (isto não termina).
Com efeito, a chamada “terceira vaga” do feminismo deixou de arvorar uma posição absolutamente inflexível em relação à pornografia. Para as novas feministas, não é a pornografia em si que é má; é um dado tipo de pornografia. Quando esta é feita tendo em conta o prazer feminino, pode perfeitamente enquadrar-se nas múltiplas possibilidades estéticas de expressar esse mesmo prazer. A linguagem do prazer assume aqui uma preponderância que não possuia para as feministas da “segunda vaga”. Para estas a contenda estava instalada na reivindicação de um lugar estrutural igualitário; lugar esse que promovesse as mulheres enquanto grupo, e não apenas individualmente. Esta promoção passava, no entanto, pela igualdade, não apenas estatutária, mas também “in natura”. Isto parece estranho, porque não se reivindicava uma natureza fundamentalmente igual, mas pelo contrário a revelação de que era esta informada pela cultura; ou seja, que aquilo que passava por ser natural era afinal de contas produto da acção cultural. Mas como esta acção não acontece num vácuo, a análise da “segunda vaga” das feministas desembocava na centralidade do poder relativamente à naturalização da cultura. A terceira vaga – descontando as tonalidade toffelianas da expressão – revela-se menos consistente, menos homogénea e menos defensiva – o mesmo é dizer, menos combativa. E a pornografia enquanto construção cultural interpeladora das retóricas das novas feministas reveste-se de um interesse acrescido. Primeiro o desvio pelo “Girl Power” e o que ele contém de mistificação da mulher juvenil. Se a imagética dos atributos sexuais, enquanto manifestação de uma sexualidade enviesada segundo os padrões masculinos, constituiam o lado obsceno da exploração do corpo da mulher, o “Girl Power” vem dizer que está correcto ser sedutora, bela, eternamente jovem, mas também irreverente, de uma irreverência estruturante do próprio universo feminino enquanto afirmação de uma sexualidade libertada que não se verga às regras impostas pelo falo. Por outras palavras, o “Girl Power” incita à substituição do moralismo opressivo das feministas de “segunda vaga” pela afirmação do universo “girlie”. O universo girlie é heteróclito, naquilo que mescla de adereços juvenis, recolhidos no mundo das barbies dolls, com uma postura sexual agressiva. Mas também é facto que reassume a imagem da mulher enquanto objecto. Aliás, a mescla entre os aspectos juvenis e a sexualidade agressiva tem sido de tal forma marquetizada ao ponto de já não restar qualquer força emancipatória em seja qual for a sua mensagem. A ilustração mais perfeita do “girlie” foi a banda Spice Girls. As Spices estavam entre a contra-revolução feminista e a pura marquetização do corpo feminino. Foi justamente a apropriação do mote “girl power” pelas Spice, vindo de paragens mais rudes onde a expressão ainda continha o seu mobil revolucionário, que o tornou uma imagem de marca; uma acessório precioso com capitalização no mercado, quer feminista quer no mais vasto espaço de diversificação consumista. O “girl power” extraia o potencial emancipatório dos seus primórdios substituindo por um histerismo carnavalesco da mulher enquanto animal sexual. E só isso. As Spice formulam-se enquanto entidades sexuais, cujo poder se concentra nas suas capacidades eróticas – o discurso da sedução em que o prazer é sumamente carnal. Por isso se assistiu ao acompanhar desta nova projecção-distorção do universo feminino por um gradual desinvestimento da sua intelectualização. Se há algo patente nas manifestações “girl power” é o seu desprezo pelo discurso intelectual e pelas formulações teóricas. Esta desintelectualização é sustentada por uma obsessão voyerista onde as palavras são sistematicamente substituídas por estímulos: gráficos, sonoros, etc. O recurso ao puro estímulo, sem mediação, é um dos artifícios da pornografia. É o que a separa do erotismo. A pornografia não é erótica, nem tão-pouco pretende ser, como certas feministas da terceira vaga auguram, ao proporem uma pornografia que dê atenção ao universo feminino. A inversão consistiria na apropriação da pornografia enquante representação do prazer, da fantasia e, em certa medida, de actividades desviantes, mas desta feita sem cair no falocentrismo do universo heterossexual. Com efeito, é dos lados do movimento GLB, sobretudo das lésbicas, que surgem as propostas para este reinvestimento erótico da pornografia. Fica claro que as feministas da segunda vaga não previram que a pornografia pudesse não ser apenas considerada enquanto representação da dominação heterossexual, mas que fosse recriada por outras orientações sexuais, onde o binómio masculino-feminino não é tão evidente (embora possa igualmente reproduzir as suas características na assunção desses mesmo papéis pelos seus participantes). As lésbicas reivindicam a representação do prazer e da fantasia para além dos padrões da sociedade patriarcal. Donde, a crítica das feministas de segunda vaga ser fundamentalmente proveniente de um espaço heterossexual. Se as lésbicas opõem a esta consagração da heterossexualidade e à crítica formulada pelas feministas dos anos 80, uma reavaliação do prazer e da representação dos corpos, para além do viés – quer crítico, quer apologético – da sociedade patriarcal, significa que, em certa medida, a pornografia deixa de ser material alienante para passar a ser o próprio locus da interpelação ao feminismo mais ortodoxo. Neste caso, a pornografia é o meio da expressão da sexualidade feminina par excelence. E aqui cabem os relatos intímos, em discurso directo, que nos são oferecidos pelas revistas ditas “para mulheres”. Estes não são imediatamente pornográficos, ou não o são no sentido da pornografia tradicional, aquela que servia de alvo às críticas das feministas ortodoxas. Mas não deixam de registar paralelos assinaláveis. Considerando que o discurso da sexualidade enquanto discurso da prática sexual se revela como o dispositivo necessário da expressão da feminilidade, os relatos de pendor intimista, assim como os testes de avaliação dessa mesma performatividade, tornaram-se assimptóticos da pornografia. Torna-se portanto concebível um feminismo ancorado na representação pornográfica do prazer, enquanto especificidade do feminino (isto não termina).
1 Comments:
IMPROVISADO NA IGREJA DA MADALENA NO SEC .XIX
TODOS QUANTOS AQUI ESTÃO,
EXCEPTO SÓMENTE NÓS,
SÃO DO VICIO MAIS ATROZ
A MAIS PREVERSA UNIÃO:
O QUE É HOMEM É CABRÃO;
AS MULHERES, SEM DISPUTAS,
TÊM TRÊS DIVERSAS CONDUTAS:
AS VELHAS SÃO FEITICEIRAS,
AS OUTRA ALCOVITEIRAS,
AS RAPARIGAS SÃO PUTAS.
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