A (i)lógica do ressentimento
Although the work of redressing which needs to be done may appear too daunting, I believe it is not one day too soon to begin. Conrad saw and condemned the evil of imperial exploitation but was strangely unaware of the racism on which it sharpened its iron tooth.
Chinua Achebe, o escritor nigeriano que ganhou o Booker prize deste ano, conta no seu currículo com um ataque perfeitamente assassino contra o Heart of Darkness. Aliás, foi justamente isso que me suscitou o texto anterior.
Um dos seus argumentos é o de a obra ser “racista”. Achebe é retratado em Elisabeth Costelo como o intelectual africano par excelence. O que isto significa é que Achebe tem uma ideia muito concreta do que deve ser a cultura africana; uma ideia política e politizável dessa mesma cultura. Daí não advém nenhum mal ao mundo. Mas uma posição demasiadamente ancorada num entendimento culturalista da literatura pode ser grotescamente enviesada, como eu penso que esta é. Entendo por um entendimento culturalista da literatura, sobretudo neste caso concreto, uma perspectiva que privilegia as linhas de fractura e as deslocações através do eixo branco-negro. As dicotomias em que este eixo se desdobra são bem conhecidas – civilização/primitivismo, educação/selvagem, lógica/ilogismo, resumidas no par canónico cultura/natureza. Achebe analisa esta obra de Conrad, em particular, sempre através deste prisma, ou seja, de oposições racializantes. A mulher negra que vive com Kurtz, segundo a interpretação de Achebe é o contraponto selvagem da mulher branca londrina que ama Kurtz na metrópole. A primeira é descrita como um animal coleante, a segunda como a mulher educada e contida, como convém a uma dama londrina. Depois temos o rio. O Thames, na entrada, seguro e de águas plácidas, não apresentando qualquer risco para a navegação. O Congo, ao contrário, perigoso, imprevisível, tumultuoso, enfim, ingovernável. Temos também os nativos que pelas suas feições e movimentos se assemelham aos animais que se acoitam na selva – donde aliás saltam abruptamente ao longo de toda a narrativa – por oposição aos gentlemen da administração colonial. Kurtz, neste sentido, encontra-se numa zona intermédia, uma zona charneira onde as definições deixam de ser tão nítidas. É engraçado que Achebe não se demore muito sobre a personagem de Kurtz. O seu objectivo é provar que o Heart o Darkness é racista, no que poderá eventualmente ter razão. Mas tal facto não significa necessariamente que se deva concluir que, por isso mesmo, não passa de uma obra menor. E é neste aspecto que devemos estar vigilantes e rejeitar a leitura culturalista de Achebe. Lendo a crítica corrosiva de Achebe é difícil não concordar que estamos em presença da famosa retórica do ressentimento. Mais, que estamos em presença de um exemplo daquilo que H. Bloom cunhou de “escola do ressentimento”. É, com efeito, tanto uma “escola”, como uma perspectiva impregnada de ressentimento. Não se coloca em causa a possibilidade, e até a obrigatoriedade, de analisar o discurso intrinsecamente colonialista que colora todo o texto. Importa, no entanto, afirmar que daqui não se segue que uma obra possa ser valorada segundo critérios de qualidade que, segundo esta lógica, seriam forçosamente intersectados pelo seu impacto positivo ou negativo, impacto esse de pendor moral. Não deixa de ser curioso como Achebe se concentra no Heart of Darkness, enquanto obra racista, nunca chamando à colação essa outra fantasia colonialista, porventura arreigadamente mais colonialista ainda, que é o Nostromo. Será porque as dicotomias racializantes não encaixam tão perfeitamente? E no entanto, o mesmo olhar paternalista, a mesma lógica da missão civilizacional, o mesmo olhar depreciativo sobre os nativos perpassa por todo o livro. É facto que a dicotomia branco-negro não é mais operativa; mas a mesma crítica pós-colonial pode ser perfeitamente aplicada a Nostromo com os mesmo benefícios hermenêuticos. Mas isto equivaleria a resvalar para fora da esfera do ressentimento. Num escritor africano não seria mais compreensível uma crítica moral que não o ligasse historicamente à obra em questão. Melhor dizendo, a força de uma tal análise perder-se-ia caso o lugar de vítima estivesse vedado ao seu crítico. É aqui que o “ressentimento” se impõe e traduz não tanto uma especial conexão com o conteúdo da obra, o que lhe poderia outorgar maior autoridade na sua interpretação, mas antes uma sobreposição à matéria da obra. Traduz, no fundo, uma deslocação, não do texto, mas do lugar do crítico, assumindo este último um lugar privilegiado que o dotaria, putativamente, de um acesso único à “verdade” da obra; lugar esse que é imediatamente caucionado pela cor da sua pele.
Regressando a Nostromo, mais do que a concentração nos arquétipos que percorrem o Heart of Darkness, será mais instrutivo encontrar paralelos entre o heterodoxo Kurtz e o mítico Nostromo. Ambos são figuras que se encontram para além da ordem sua coetânea. Ambos se rebelam contra aquilo que se convencionou chamar de “sistema”. Em ambos se encontra aquele excesso que desequilibra a normalidade. Nostromo é-nos apresentado como um homem de coragem e resistência incomuns. Em certa medida faz lembrar o famigerado tenente Blueberry de Giraud – ou ao contrário, mas a angústia da influência permite estas liberdades assincrónicas. Há outros paralelos, estéticos, entre as duas obras que são igualmente de salientar. Quando Marlow e o seu vapor vogam sem rumo por entre o denso nevoeiro da selva africana, é difícil não recordar Nostromo e o seu companheiro de viagem perdidos no mar-alto, envoltos na mais ameaçadora escuridão. São ambos momentos preparatórios para uma revelação; momentos de impasse que efectuam um corte na narrativa como se necessário fosse um último teste à resistência dos homens antes da ulterior, e prometida, revelação. Têm muito de mitológico, ambos os momentos. Não conheço melhor descrição do silêncio, em literatura, do que este vogar sem rumo na mais acabrunhante escuridão que nos é relatado em Nostromo. Chamar-lhe-ia, o momento literário, termo que significa o espaço textual que singulariza um livro.
O que pretendo salientar é que a crítica pós-colonial exerce uma violência exacerbada sobre as obras. Na análise de Achebe, Heart of Darkness é retirado do seu contexto, tanto histórico como literário, para paradoxalmente ser posteriormente injectado de apenas alguns aspectos, dir-se-iam, traços civilizacionais, dos quais o autor retém os que mais lhe convêm para sustentar a lógica do ressentimento. Sem dúvida que quer Heart of Darkness quer Nostromo se encontram imbuídos de um padrão moral colonialista, de trejeitos afins ao Orientalismo, assim como Said o caracterizou. Sem dúvida também que estes trejeitos não são inócuos e que a sua sedimentação através das imagens, metáforas e parábolas que as obras albergam se traduz numa reificação do poder de matriz colonialista. Porém, uma coisa é ler as obras tendo essa matriz presente; outra coisa é julgá-las porque elas são informadas por essa mesma matriz. Nada é mais pobre para a literatura do que julgá-la segundo uma agenda de emancipação social.
Chinua Achebe, o escritor nigeriano que ganhou o Booker prize deste ano, conta no seu currículo com um ataque perfeitamente assassino contra o Heart of Darkness. Aliás, foi justamente isso que me suscitou o texto anterior.
Um dos seus argumentos é o de a obra ser “racista”. Achebe é retratado em Elisabeth Costelo como o intelectual africano par excelence. O que isto significa é que Achebe tem uma ideia muito concreta do que deve ser a cultura africana; uma ideia política e politizável dessa mesma cultura. Daí não advém nenhum mal ao mundo. Mas uma posição demasiadamente ancorada num entendimento culturalista da literatura pode ser grotescamente enviesada, como eu penso que esta é. Entendo por um entendimento culturalista da literatura, sobretudo neste caso concreto, uma perspectiva que privilegia as linhas de fractura e as deslocações através do eixo branco-negro. As dicotomias em que este eixo se desdobra são bem conhecidas – civilização/primitivismo, educação/selvagem, lógica/ilogismo, resumidas no par canónico cultura/natureza. Achebe analisa esta obra de Conrad, em particular, sempre através deste prisma, ou seja, de oposições racializantes. A mulher negra que vive com Kurtz, segundo a interpretação de Achebe é o contraponto selvagem da mulher branca londrina que ama Kurtz na metrópole. A primeira é descrita como um animal coleante, a segunda como a mulher educada e contida, como convém a uma dama londrina. Depois temos o rio. O Thames, na entrada, seguro e de águas plácidas, não apresentando qualquer risco para a navegação. O Congo, ao contrário, perigoso, imprevisível, tumultuoso, enfim, ingovernável. Temos também os nativos que pelas suas feições e movimentos se assemelham aos animais que se acoitam na selva – donde aliás saltam abruptamente ao longo de toda a narrativa – por oposição aos gentlemen da administração colonial. Kurtz, neste sentido, encontra-se numa zona intermédia, uma zona charneira onde as definições deixam de ser tão nítidas. É engraçado que Achebe não se demore muito sobre a personagem de Kurtz. O seu objectivo é provar que o Heart o Darkness é racista, no que poderá eventualmente ter razão. Mas tal facto não significa necessariamente que se deva concluir que, por isso mesmo, não passa de uma obra menor. E é neste aspecto que devemos estar vigilantes e rejeitar a leitura culturalista de Achebe. Lendo a crítica corrosiva de Achebe é difícil não concordar que estamos em presença da famosa retórica do ressentimento. Mais, que estamos em presença de um exemplo daquilo que H. Bloom cunhou de “escola do ressentimento”. É, com efeito, tanto uma “escola”, como uma perspectiva impregnada de ressentimento. Não se coloca em causa a possibilidade, e até a obrigatoriedade, de analisar o discurso intrinsecamente colonialista que colora todo o texto. Importa, no entanto, afirmar que daqui não se segue que uma obra possa ser valorada segundo critérios de qualidade que, segundo esta lógica, seriam forçosamente intersectados pelo seu impacto positivo ou negativo, impacto esse de pendor moral. Não deixa de ser curioso como Achebe se concentra no Heart of Darkness, enquanto obra racista, nunca chamando à colação essa outra fantasia colonialista, porventura arreigadamente mais colonialista ainda, que é o Nostromo. Será porque as dicotomias racializantes não encaixam tão perfeitamente? E no entanto, o mesmo olhar paternalista, a mesma lógica da missão civilizacional, o mesmo olhar depreciativo sobre os nativos perpassa por todo o livro. É facto que a dicotomia branco-negro não é mais operativa; mas a mesma crítica pós-colonial pode ser perfeitamente aplicada a Nostromo com os mesmo benefícios hermenêuticos. Mas isto equivaleria a resvalar para fora da esfera do ressentimento. Num escritor africano não seria mais compreensível uma crítica moral que não o ligasse historicamente à obra em questão. Melhor dizendo, a força de uma tal análise perder-se-ia caso o lugar de vítima estivesse vedado ao seu crítico. É aqui que o “ressentimento” se impõe e traduz não tanto uma especial conexão com o conteúdo da obra, o que lhe poderia outorgar maior autoridade na sua interpretação, mas antes uma sobreposição à matéria da obra. Traduz, no fundo, uma deslocação, não do texto, mas do lugar do crítico, assumindo este último um lugar privilegiado que o dotaria, putativamente, de um acesso único à “verdade” da obra; lugar esse que é imediatamente caucionado pela cor da sua pele.
Regressando a Nostromo, mais do que a concentração nos arquétipos que percorrem o Heart of Darkness, será mais instrutivo encontrar paralelos entre o heterodoxo Kurtz e o mítico Nostromo. Ambos são figuras que se encontram para além da ordem sua coetânea. Ambos se rebelam contra aquilo que se convencionou chamar de “sistema”. Em ambos se encontra aquele excesso que desequilibra a normalidade. Nostromo é-nos apresentado como um homem de coragem e resistência incomuns. Em certa medida faz lembrar o famigerado tenente Blueberry de Giraud – ou ao contrário, mas a angústia da influência permite estas liberdades assincrónicas. Há outros paralelos, estéticos, entre as duas obras que são igualmente de salientar. Quando Marlow e o seu vapor vogam sem rumo por entre o denso nevoeiro da selva africana, é difícil não recordar Nostromo e o seu companheiro de viagem perdidos no mar-alto, envoltos na mais ameaçadora escuridão. São ambos momentos preparatórios para uma revelação; momentos de impasse que efectuam um corte na narrativa como se necessário fosse um último teste à resistência dos homens antes da ulterior, e prometida, revelação. Têm muito de mitológico, ambos os momentos. Não conheço melhor descrição do silêncio, em literatura, do que este vogar sem rumo na mais acabrunhante escuridão que nos é relatado em Nostromo. Chamar-lhe-ia, o momento literário, termo que significa o espaço textual que singulariza um livro.
O que pretendo salientar é que a crítica pós-colonial exerce uma violência exacerbada sobre as obras. Na análise de Achebe, Heart of Darkness é retirado do seu contexto, tanto histórico como literário, para paradoxalmente ser posteriormente injectado de apenas alguns aspectos, dir-se-iam, traços civilizacionais, dos quais o autor retém os que mais lhe convêm para sustentar a lógica do ressentimento. Sem dúvida que quer Heart of Darkness quer Nostromo se encontram imbuídos de um padrão moral colonialista, de trejeitos afins ao Orientalismo, assim como Said o caracterizou. Sem dúvida também que estes trejeitos não são inócuos e que a sua sedimentação através das imagens, metáforas e parábolas que as obras albergam se traduz numa reificação do poder de matriz colonialista. Porém, uma coisa é ler as obras tendo essa matriz presente; outra coisa é julgá-las porque elas são informadas por essa mesma matriz. Nada é mais pobre para a literatura do que julgá-la segundo uma agenda de emancipação social.
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