Nada a fazer
Estavam lá todos, quer dizer, o marreco, o preguiça, o Antunes, o mete-nojo, e o caveira. Bêbedos como sempre; ou como já era costume, assim dizia o sr. Laureano da mercearia “estes biltres estão sempre bêbados” e depois desfiava um rosário de lamentações sobre partir vidros com garrafas atiradas às montras lá para as quatro da madrugada. Faziam um arrazoado impossível, o vozear, os gritos e os pontapés nos caixotes do lixo que a rapaziada denodadamente oferecia à vizinhança em noites de bebedeira. As alucinações eram com o preguiça. Não precisava de drogas, embora enfiasse de tudo, desde que não lhe passasse pela veia. O álcool chegava-lhe para alucinar. Era um fenómeno inaudito, teria dito um médico ao qual o preguiça consultou por causa de ter avistado uma carreta da câmara municipal de Lisboa com dois corvos nos lugares da frente: um a conduzir, o outro a folhear uma banda desenhada. E, não fora o latido agudo dos cães, que mais tarde juraria ser real, teria ficado com certeza pela especulação ou mesmo pela explicação paranormal. Assim, contou ao médico, ou era verdade ou estava a enlouquecer. Nem uma nem a outra. Era simplesmente o efeito sináptico que o álcool provocava no preguiça que, por qualquer ironia da anatomia, lhe descarregava mais endorfinas do que aquelas que normalmente eram registadas, naqueles aparelhos que os médicos usam para mesurar essas coisas. Isto contaria, com imprecisões e injunções, o preguiça ao Antunes e ao mete-nojo, num dia de sobriedade. Ninguém percebeu nada. Nem interessava. O que importava, e incomodava muito invejoso, é que o preguiça conseguia retirar o mesmo efeito de uma simples garrafa de rum do que o comum dos mortais de uma dose reforçada de LSD. E isto chateava muita gente. Era mais barato; era mais divertido; e depois de regurgitado não ficava lá nada. Era portanto limpinho. Isto contou o marreco, em nervosa preleição oferecida com o esmero de um professor de província, ao caveira. O caveira não merecia o apodo por mero acaso. O rosto contorcido devido a um maxilar deslocado num acidente com um torno eléctrico; as olheiras da falta de dormir; a cor macilenta provocadas pelos excessos etílicos e, claro está, o exagero nas metadonas, que substituam de há oito anos para cá a sua anterior dieta de heroína. Nada a dizer. O caveira era o caveira e usava o nome com o garbo de uma estrela de cinema. Tudo nele evocava a morte; e ninguém tinha dúvidas que ela chegaria mais cedo à sua ilharga do que ao resto do grupo. Mais cedo, de certeza, do que ao preguiça. A única coisa que poderia acontecer a este era uma cirrose; umas dores de barriga insuportáveis e uma fiel diarreia que o acompanhava nos momentos mais inconvenientes. Aquela vez em que sentado na plateia do cinema, com a língua da Dolores a comprimir-lhe as amígdalas, e uma tesão infernal a saltar-lhe das calças, sentiu uma revolução intestinal (e usamos o termo revolução na sua acepção tanto médica, como histórica, como astronómica) que teve de saltar por cima de vários espectadores que lhe bloqueavam o caminho entre a cadeira e a saída da fila. Quando o fez, calculou mal o impulso e prendeu um dos pés (estou em crer que o esquerdo) no casaco de cabedal de um alternativo que por acaso tinha por hábito rolar um cigarro apagado entre as pontas dos dedos, e estatelou-se ao comprido na fila de trás tendo partido o nariz nas costas de uma das cadeiras, por mais suave que fosse a napa. Sangue a jorrar das narinas, com o nervoso borrou-se, e assim se acabou o afair com a Dolores. Depois de limpo e seco; mudadas as calças e silenciadas as imprecações, emborcou duas garrafas de rum entre as onze e as duas da madrugada. Mas nessa altura nem sequer se encontrava no bairro, nem tão-pouco à porta da mercearia do sr. Laureano. Começou no Prince Real e acabou no Caixodré, sentado na muralha, com o marulhar das ondas, a copiarem-se umas às outras nas suas escapadelas nocturnas do leito do rio.
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