Monday, November 26, 2007

A estupidez compulsiva


Não, não é a campanha que é estúpida. Essa é simplesmente discriminatória. Estúpidos são alguns dos comentários que pairam em certos blogues e que não enxergam um elefante à frente do nariz.
So, let’s get to basics. O que é um anúncio? É um dispositivo para convencer o consumidor a consumir um produto. O que é o marketing? É a mensagem que associa uma imagem a um produto. Geralmente, e não por acaso, os produtos são associados a imagens aliciantes. Por isso, temos pessoas com os rostos estraçalhados nos anúncios da PSP sobre segurança rodoviária, mas não os temos em anúncios de shampoo ou de água das pedras. É simples e trata-se de um mecanismo básico psicológico: associamos sensações negativas com imagens negativas e sensações positivas a imagens positivas; mesmo que nem sempre a correspondência resulte de forma tão linear. Ora quando vemos belas raparigas de sedosos cabelos num anúncio de sabonetes, a ideia é associarmos a beleza das raparigas – o seu ar saudável, reverberante, sensual – ao uso daquele sabonete. Não estamos convencidos que assim funcione na prática; não somos completamente dops que se deixem orientar por fogachos fantasistas, portanto não achamos que se uma mulher obesa usar um produto que seja anunciado por uma esbelta e elegante rapariga que, acto contínuo, ela vai partilhar dos mesmos predicados. Todavia, se não existe um efeito empírico, existe definitivamente um efeito sensorial. A beleza é uma categoria, e o nosso narcisismo compele-nos a associarmos sensações positivas com a beleza da imagem. É como se houvesse uma corrente subterrânea que nos permitisse partilhar daquela beleza através de um mediador, que é o produto. Se assim não fosse, a publicidade não funcionaria. É justamente porque as técnicas publicitárias – conscientemente ou não – massajam os nossos egos narcísicos, que a nossa relação com os produtos numa sociedade de consumo, se torna afectiva. Nunca esquecer que a publicidade explora a ligação entre imagem e afectos.

Neste sentido, a publicidade recente da cerveja Tagus não pode ser aceite como apenas um problema semântico sobre o significado de “orgulho” como alguns parecem entender. Como se o problema fosse somente a deslocação do significante “orgulho” para um campo de sentido diferente que implicasse uma prática diversa. Ou seja, como se o problema consistisse em que ter orgulho gay é fruto de uma luta social pela aceitação da diferença e que os mesmos termos não podem ser aplicados à heterossexualidade porque ela é a norma. Não é esse o problema. É mais vasto e, logo, tem naturalmente consequências mais amplas.

Regressemos à publicidade é à sua função afectiva. Se é verdade que a miríade de estímulos publicitários têm por função colmatar uma falta, essa prende-se com um substituto da normatividade. Ou seja o consumismo não é uma escolha; é uma injunção. Por conseguinte, é ingenuidade não querer ver na publicidade uma componente ética. A publicidade só pode ser entendida dentro de uma normatividade específica: a normatividade da sociedade de consumo. Sim, porque a publicidade não é apenas publicidade a um produto; é concomitantemente, publicidade a um estilo de vida. Por isso é que a publicidade ao alcóol não contém gajos a cairem de bêbados ou a vomitarem na esquina de uma ruela, mas sim esbeltos homens com ar de empresários de sucesso. Ou seja, a publicidade vende duas coisas: uma imagem e uma imagem enquanto realidade. É justamente a indistinção entre a imagem e a realidade que torna a publicidade normativa. Não no sentido de uma normatividade institucionalizada, mas antes num conjunto de representações que, por pussuirem valor simbólico, possuem igualmente a força de regras. A primeira delas é, não tomar a publicidade como um simples adereço. A publicidade tem efeitos práticos, ou não fosse em torno dela que toda -mas toda sem excepção-, sociedade de consumo se organiza. Há um ethos do consumo, assim como há um ethos do religioso.
Concluindo, quando uma publicidade associa ao consumo de um produto o orgulho de ser hetero, não está apenas a brincar com significantes; a deslocá-los como se os seus efeitos fossem intercambiáveis. Pelo contrário, está a valorizar positivamente a heterossexualidade; mais, está a vendê-la como a forma de vida normativa, a realidade par excellence; aquela que dá verdadeiro direito a uma pertença. Tudo resto é remetido para o campo do anormal. Neste sentido, a Tagus não quis apenas criar “buzz” como dizem os responsáveis pela campanha: “Além de que, [prossegue] trata-se tão só de "uma brincadeira, pois não estamos a formular qualquer juízo de valor". É falso: não só cria juízos de valor, como citando novamente o responsável, ao qual se aplica o velho adágio “com a verdade me enganas”, o nome da acção vem “criar um território de verdades, com uma mensagem mais irreverente”. A única irreverência aqui seria criar uma comunidade tanto para heteros como para homos – porque desta é que não existem muitos exemplos. A deliberada exclusão de um dos grupos; a fronteira colocada segundo a orientação sexual; pouco terá a ver com irreverência. A menos que seja esta traduzida na seguinte fórmula: esta cerveja não é para maricas. E isto para mim configura uma clara intenção discriminatória.

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