A experiência inaugural
No debate sobre Chávez que decorre actualmente na blogosfera, não é surpreendente verificar o diletantismo em que os autores se comprazem nos seus comentários. Na realidade, este debate, não faz mais do que reflectir as encruzilhadas em que uma nova esquerda se encontra e as certezas que uma nova direita exibe. No primeiro caso, as encruzilhadas não são apenas questões menores de acertos teóricos; representam, ao invés, profundas dúvidas sobre a maneira como uma vida capitalista ocidentalizada poderá ser acomodada a um putativo projecto de sociedade diferente. Na maioria das vezes, as respostas caem nas estafadas platitudes respeitantes ao respeito pela diferença e ao domínio das liberdades (qualquer coisa entre o “soltem os prisioneiros” e o “abaixo o estado”). Digamos que não é de admirar que as coisas assim se passem: esta nova esquerda pertence a uma elite intelectual que, não estando mal em termos de vida simbólica, não está propriamente folgada em termos de vida material. E querendo ser cínico, pretende no entanto adquirir o melhor dos dois mundos mantendo ainda uma réstea de consciência intacta. O acordo é, obviamente, impossível.
Do lado direito da desavença, os presumidos liberais com a sua cartilha dos direitos cívicos e do Estado de direito, pregam sempre as mesmas coisas: o estado mínimo, a superlatividade do indivíduo, e uma definição minimal de democracia. Mas quanto a este último aspecto não nos surpreendamos se encontrarmos estes dois lados da discussão a apoiarem-se mutuamente, em alegre conclave, que apenas difere em pormenores, entre eles, é o mercado uma coisa boa e será que é sempre boa? – realidades absolutamente adquiridas para o lado direito. Para além disso, as respostas são descoroçoantemente vagas.
Chávez é o elemento incómodo; aliás como já tinho sido na cimeira Latino Americana. E uma das provas de que Chávez é um elemento incómodo é a dificuldade em enunciar em que difere a experiência chavista daquilo que mais ou menos já nos habituámos na chamada democracia ocidental. Ora essa dificuldade não resulta da falta de conhecimento; que de qualquer dos modos pode ser mais ou menos adquirido aumentando o espectro de fontes que relatam os acontecimentos na Venezuela. Afigura-se mais provável que ela resulte de uma indefinição do referencial político. E aqui é que a experiência de Chávez se torna verdadeiramente interessante: não tanto como anunciação do novo, mas como desestabilizador do existente.
A crítica à direita é feita em termos cínicos, como sempre. Como alguém já disse, o que guia a direita é o jogo de interesses, mesmo que venham estes embrulhados em pela retórica idealista. Daí que, levantando a cobertura, a pátina retórica, a direita preocupa-se basicamente com os interesses em perigo na Venezuela. Porém, “interesses” não é expressão, tão-pouco prática, que possa ser generalizada, porquanto eles existem porque pertencem sempre a minorias. Por conseguinte, a equação de direita é geralmente bastante sucinta: proteja-se os interesses porque eles serão a fortiori benéficos para a população. No fundo, trata-se da tão propalada distinção entre indivíduo e sociedade (tão propalada quanto falsa). Como esta premissa invoca uma falácia lógica, é-nos sempre pedido para fazermos um voto de confiança, uma suspensão da dúvida que nos convida a acreditar aprioristicamente que de facto a população irá beneficiar, de tal forma que acabamos por afastar a dúvida substituindo-a pelo adquirido, ou seja, o indivíduo e os seus interesses.
Parece que a experiência chavista, mais do que saber se se trata de uma democracia ou não, nos obriga a repensar os termos deste dilema. Mas de uma forma diferente da inaugural experiência zapatista. O zapatismo foi uma experiência demasiado comprometida com o zeitgeist da “difference politics” e com alguns arremedos de pós-modernismo. Claro que sucumbiu às duras provas da realpolitik. A Venezuela chavista rejeita, em princípio, estas inconsequências; estes arrojos da multidude e dos seus propugnadores.
Chávez, como pretendeu demonstrar na cimeira latino-americana, leva muito a sério as implicações da ideologia dos interesses que se acoitam por detrás das palavras de Aznar “esses se joderon!”. Olhando para os modelos neo-liberais e suas experiências práticas, não podemos deixar de detectar uma mesma soberba perante todos os outros desde que os interesses estejam protegidos. Por isso, os outros que se “jodan!” se forem um empecilho para a lógica dos interesses. E nem precisam de ser resistência declarada; desde que não contribuam para a sua acumulação desenfreada, que se “jodan!”. Portanto, é um darwinismo disfarçado de democracia que nos tem sido vendido.
Contudo, mais uma vez se fala mais do que Chávez é, do que aquilo que constitui a experiência chavista. Por isso, sem mais delongas, deixo aqui um pequeno excerto de um texto que descreve o que tem acontecido na Venezuela para além de Chávez e das lutas da comunicação social.
Chávez is showing something of the same anxiety. His government wisely budgets on an oil price of $29 a barrel. And although it continues optimistically to assume an annual production half as large again as Petróleos can presently manage (the infrastructure groans from lack of earlier investment), it still has sums at its command, not least from reserves in the central bank, that few revolutionary regimes anywhere, of any stripe, have been able even to imagine. It has been spending its revenue generously. Adult literacy is complete, there are new schools across the country, and excellent free medical facilities, staffed in many cases by doctors from Cuba sent as payment in kind for oil; basic foods, with some reluctance from suppliers, are sold at subsidised prices; poor housewives are paid for keeping house and people owed pensions are again receiving them. Getting around the country is also becoming much easier: railways are being built, urban transport is improving, and one meets roadworks in the remotest places. Most important, the government is trying to increase productive employment. With help from Petróleos, it has spent nearly $900 million on 130 ‘nuclei of endogenous development’ in manufacturing, agriculture and tourism, and a further $400 million to encourage more than six thousand co-operatives. It is also attempting to redistribute uncultivated land. To encourage these initiatives, it has announced the creation of 12,000 local communal councils. Some corporations are also being nationalised. The only price of this so far is an overvalued currency, which makes imports cheap and exports, apart from oil, too expensive.
O texto, lido na íntegra, está longe de ser encomiástico. Mas para isso temos, e num plano diferente, o seguinte texto de Zizek.
Penso que uma discussão consequente sobre a Venezuela actual deve estar algures entre os dois textos.
Do lado direito da desavença, os presumidos liberais com a sua cartilha dos direitos cívicos e do Estado de direito, pregam sempre as mesmas coisas: o estado mínimo, a superlatividade do indivíduo, e uma definição minimal de democracia. Mas quanto a este último aspecto não nos surpreendamos se encontrarmos estes dois lados da discussão a apoiarem-se mutuamente, em alegre conclave, que apenas difere em pormenores, entre eles, é o mercado uma coisa boa e será que é sempre boa? – realidades absolutamente adquiridas para o lado direito. Para além disso, as respostas são descoroçoantemente vagas.
Chávez é o elemento incómodo; aliás como já tinho sido na cimeira Latino Americana. E uma das provas de que Chávez é um elemento incómodo é a dificuldade em enunciar em que difere a experiência chavista daquilo que mais ou menos já nos habituámos na chamada democracia ocidental. Ora essa dificuldade não resulta da falta de conhecimento; que de qualquer dos modos pode ser mais ou menos adquirido aumentando o espectro de fontes que relatam os acontecimentos na Venezuela. Afigura-se mais provável que ela resulte de uma indefinição do referencial político. E aqui é que a experiência de Chávez se torna verdadeiramente interessante: não tanto como anunciação do novo, mas como desestabilizador do existente.
A crítica à direita é feita em termos cínicos, como sempre. Como alguém já disse, o que guia a direita é o jogo de interesses, mesmo que venham estes embrulhados em pela retórica idealista. Daí que, levantando a cobertura, a pátina retórica, a direita preocupa-se basicamente com os interesses em perigo na Venezuela. Porém, “interesses” não é expressão, tão-pouco prática, que possa ser generalizada, porquanto eles existem porque pertencem sempre a minorias. Por conseguinte, a equação de direita é geralmente bastante sucinta: proteja-se os interesses porque eles serão a fortiori benéficos para a população. No fundo, trata-se da tão propalada distinção entre indivíduo e sociedade (tão propalada quanto falsa). Como esta premissa invoca uma falácia lógica, é-nos sempre pedido para fazermos um voto de confiança, uma suspensão da dúvida que nos convida a acreditar aprioristicamente que de facto a população irá beneficiar, de tal forma que acabamos por afastar a dúvida substituindo-a pelo adquirido, ou seja, o indivíduo e os seus interesses.
Parece que a experiência chavista, mais do que saber se se trata de uma democracia ou não, nos obriga a repensar os termos deste dilema. Mas de uma forma diferente da inaugural experiência zapatista. O zapatismo foi uma experiência demasiado comprometida com o zeitgeist da “difference politics” e com alguns arremedos de pós-modernismo. Claro que sucumbiu às duras provas da realpolitik. A Venezuela chavista rejeita, em princípio, estas inconsequências; estes arrojos da multidude e dos seus propugnadores.
Chávez, como pretendeu demonstrar na cimeira latino-americana, leva muito a sério as implicações da ideologia dos interesses que se acoitam por detrás das palavras de Aznar “esses se joderon!”. Olhando para os modelos neo-liberais e suas experiências práticas, não podemos deixar de detectar uma mesma soberba perante todos os outros desde que os interesses estejam protegidos. Por isso, os outros que se “jodan!” se forem um empecilho para a lógica dos interesses. E nem precisam de ser resistência declarada; desde que não contribuam para a sua acumulação desenfreada, que se “jodan!”. Portanto, é um darwinismo disfarçado de democracia que nos tem sido vendido.
Contudo, mais uma vez se fala mais do que Chávez é, do que aquilo que constitui a experiência chavista. Por isso, sem mais delongas, deixo aqui um pequeno excerto de um texto que descreve o que tem acontecido na Venezuela para além de Chávez e das lutas da comunicação social.
Chávez is showing something of the same anxiety. His government wisely budgets on an oil price of $29 a barrel. And although it continues optimistically to assume an annual production half as large again as Petróleos can presently manage (the infrastructure groans from lack of earlier investment), it still has sums at its command, not least from reserves in the central bank, that few revolutionary regimes anywhere, of any stripe, have been able even to imagine. It has been spending its revenue generously. Adult literacy is complete, there are new schools across the country, and excellent free medical facilities, staffed in many cases by doctors from Cuba sent as payment in kind for oil; basic foods, with some reluctance from suppliers, are sold at subsidised prices; poor housewives are paid for keeping house and people owed pensions are again receiving them. Getting around the country is also becoming much easier: railways are being built, urban transport is improving, and one meets roadworks in the remotest places. Most important, the government is trying to increase productive employment. With help from Petróleos, it has spent nearly $900 million on 130 ‘nuclei of endogenous development’ in manufacturing, agriculture and tourism, and a further $400 million to encourage more than six thousand co-operatives. It is also attempting to redistribute uncultivated land. To encourage these initiatives, it has announced the creation of 12,000 local communal councils. Some corporations are also being nationalised. The only price of this so far is an overvalued currency, which makes imports cheap and exports, apart from oil, too expensive.
O texto, lido na íntegra, está longe de ser encomiástico. Mas para isso temos, e num plano diferente, o seguinte texto de Zizek.
Penso que uma discussão consequente sobre a Venezuela actual deve estar algures entre os dois textos.
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