Saturday, November 17, 2007

O advogado do diabo

Torna-se portanto imprescindível conhecer o estado do mundo. Este não nos é dado pela informação caleidoscópica veiculada pela CNN, nem pelas miríades de canais oficiais a que temos acesso diariamente. É aliás fácil confundir excesso de informação com estar informado.
Contrariamente ao que é a percepção comum, são os pequenos incidentes, as rupturas na normal paisagem quotidiana, que nos permitem entrever o que se passa do outro lado do espelho. A ruptura diplomática entre Chávez e Espanha constitui um desses momentos. Na medida em que gerou interrogações para além da cobertura institucional
O que nos disse então o caso Chávez e que nos obriga ele a repensar? Primeiro, e na sequência do post do Bruno, existem três pessoas que estavam aparentemente envolvidas no golpe de estado de 2002 – ou directa e materialmente envolvidas ou dando o seu apoio implícito. Estas três pessoas são, logicamente, aquelas que pressurosamente reconheceram o novo regime dos golpistas: Aznar, primeiro; Bush, depois; e finalmente Barroso. Os mesmos três aparecem mancomunados no ataque ao Iraque, mais um quarto que é Blair. Qualquer deles invocou falsas razões para ambos os acontecimentos. Quer para a Venezuela, onde se celebrou a propalada demissão do presidente Chávez, que nunca chegou a acontecer; como para o Iraque, cuja campanha intoxicou meio mundo com os sound bites – na sua repetição monocórdica e insistente – das Weapons of Mass Destruction que também não existiam. Qualquer um deles estava (e alguns ainda estão) legitimados pela chamada vontade popular. Mas deslegitimados para mentir, fabricar factos ou manipular informação. Donde, conclua-se, a vontade popular encontrar-se longe de ser infalível no exercício da democracia.
Aquilo que este caso mostra não é algo de muito diferente: é que o edifício institucional não é resistente contra a mentira. A distorção de factos é um vírus na arquitectura institucional. Por isso é que o confronto de opinião não é a panaceia para este estado de coisas. Se as opiniões são baseadas em falsidades, então a opinião nulifica-se pela impossibilidade de adjudicar um mínimo de verdade a cada um dos lados da discussão. É, em certa medida, o problema habermasiano: a ideia segundo a qual os argumentos são racionais e que obedecem a um pacto de
Mill, no início do ensaio On Liberty assume sensivelmente a mesma consistência lógica dos argumentos em confronto. O que não significa que a sua injunção para que pontos de vista contrários sejam considerados na apreciação de qualquer ideia, não seja uma boa rule of thumb. Recordando esse ensaio, Mill refere a existência, nas canonizações, do chamado advogado do diabo, que tinha por obrigação aduzir elementos que contrariassem a pressuposta santidade do candidato. O que ele trazia para o "julgamento" era uma carga de cepticismo que, para o regular funcionamento da instituição, podia a priori parecer destrutiva. No entanto, também aqui se pressupõe uma estrutura racional de argumentação alicerçada no pressuposto da consistência dos argumentos avançados.
O método é outro, retendo contudo este cepticismo metódico: trata-se do confronto de descrições. É verdade que nos habituámos, confortavelmente, acrescente-se, a confiar no confronto de opiniões – ou melhor, a tomá-lo pela verdade da democracia. Todavia, opinar não equivale a perceber. Pode opinar-se sem perceber nada daquilo sobre que se opina. E talvez a crise de legitimação seja antes de mais uma crise de opinação. Não que esta faceta da esfera pública não esteja suficientemente desenvolvida: opina-se por tudo e por nada; somos sistematicamente chamados a opinar nos fora, em programas, em concursos, etc, etc. Pelo contrário, é a sua hipertrofia em contraponto com a parcimónia da análise ponderada que constitui a principal obstrução ao entendimento.
Confrontar descrições exige esforço. Primeiro, porque muito do que recebemos é filtrado por essa matriz comum que institui a opinião. Uma espécie de mediana da opinião pública que certifica os limites a essa mesma opinião (a palavra correcta, embora mais arriscada, seria “impõe”). É dentro destas baias que a opinião se formata. Logo, a opinião, apesar de toda a especulação em contrário, não é livre. E não o é apenas em regimes ditos totalitários. Há momentos, ou circunstâncias, totalitárias em todas as democracias. Um regime não necessita de ser estruturalmente totalitário para observar regras de funcionamento totalitárias. É uma das mentiras a que as sociedades contemporâneas nos habituaram.
Segundo, a vantagem da descrição em relação à opinião é que ela permite confrontar factos, enquanto as opiniões contrastantes nos apresentam apenas apreciações. Convém no entanto dizer que não se trata de um exercício meramente especulativo, mas sim de uma prática à qual chamaria “política”. O contraste de descrições não é feito num plano ideal, é realizado numa prática quotidiana de recolha e cotejamento de informação. As fontes não podem ser avalizadas pela sua diversidade. Têm sempre que ser confrontadas a versão oficial – a tal opinião publicada – e a versão incómoda. Há uma maneira simples de diferenciar estas duas modalidades: a versão incómoda é aquela que dá trabalho, que requer investigação e é, na maioria das vezes, também ela fortemente descritiva. A versão oficial é quase sempre impressionista. A um tal ponto, que foi formalmente adaptada aos métodos de leitura rápida. A versão incómoda, obriga a gerir a atenção, a indexar informação, é uma informação cumulativa que só começa a fazer sentido quando construída dentro de um horizonte mais alargado – o da compreensão.
O caso Chávez é sintomático da irreconciliação da versão oficial versus a versão incómoda. E tanto mais sintomático quanto a resistência da versão oficial à análise é de tal forma impenetrável que vemos serem repetidas as mesmas associações implausíveis (Chavez mantém uma ditadura, apesar de a imprensa Venezuelana ser, na sua maioria contra ele, por exemplo), pela quase totalidade de comentadores. A capacidade de discriminar dentro do fluxo informativo impressionista torna-se, a este propósito, notoriamente reduzida. Mas não é só uma pressão incapacitante da própria modalidade da informação. Sucede também que há uma zona de não permissividade dentro do confronto de opiniões.
Sem excepção, os comentadores que não caucionaram de imediato a atitude de Juan Carlos, que guardaram algumas reservas em relação à diatribe e às suas consequências, que não seguiram acriticamente a versão oficial, ou seja, oficiosa, viram-se, contudo, obrigados a uma desaprovação implícita do comportamento de Chavez. Para que o perigo dos extremos fosse evitado, foram sugados por uma força centrípeta que os levou a largarem os seus encómios sobre o agente neutro: Zapatero e a sua prelecção sobre o respeito. Naturalmente, esta submissão à neutralidade é o que o fluxo informativo impressionista admite. Ou o marketing dos poderosos ou a neutralidade inerme: estes são os dois grandes registos da informação actual. O marketing dos poderosos, sempre foi o dispositivo para captar as massas. Agora a neutralidade inerme, nem sempre foi a forma de criar heterodoxias; se alguma coisa, a neutralidade inerme serve para anular essas mesmas heterodoxias sem as sujeitar à violência do poder. A neutralidade, aquilo que Zapatero representou neste teatro apolítico, é o porto seguro. É também aquele que abafa a contradição – e também a comoção – que estava subjacente ao embate das intervenções entre o rei e Chávez. Só se compreende o que realmente estava em jogo através do confronto destes dois pólos; a actuação de Zapatero corresponde à zona indefinida do confronto, aquela que assegura que na realidade nada se encontrava em jogo. É ela aliás que permite à opinião publicada transformar um momento político numa escaramuça diplomática. É ela que permite a apreciação sem o comprometimento. A neutralidade é, com efeito, a consequência última da lógica opinativa.

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