Sonambulismo
Diziam que tinha acontecido enquanto dormia. O rapaz sofria de sonambulismo. A irmã, por diversas vezes o surpreendera, braços estendidos, olhos semi-cerrados, a andar pelos corredores, que eram dois, daí que o plural possa exagerar a dimensão da casa; por isso, melhor seria dizer, o corredor que ia da cozinha à casa de banho e o corredor que ligava o quarto dos filhos ao dos pais. Era uma casa com o formato de uma cruz. A mãe notara-o logo na primeira visita ao sítio que viria a ser o seu lar. Exclamara, mas a casa tem a forma de uma cruz. A entrada ao lado da cozinha; o longo corredor a ligar a casa de banho no topo; e, perpendicular, um corredor mais pequeno que atravessava o maior ligando o quarto dos pais ao futuro quarto dos filhos. Na planta, qualquer pessoa podia reparar: era uma cruz. E essa impressão ficou-lhe marcada na memória. Quando apanhava o autocarro pela madrugada, no caminho para o emprego, na Almirante Reis, se pretendia encontrar um qualquer objecto ao qual esquecera o paradeiro, procedia por aproximações, como num modelo computorizado. Primeiro ocorria-lhe a planta, a forma de uma cruz, distintamente desenhada na memória. Entrava por um dos corredores, mas planando, e aterrando sempre numa das suas extremidades. Depois encaminhava-se para o lado oposto e em simultâneo prescrutava cada uma das divisões, tendo por referência peças de mobiliário específicas às quais associava cores; ou então matizes. A outras associava sensações, como ao banco forrado a seda, com uma fímbria rendilhada, que se encontrava à direita da televisão, a que sempre associara ternura, sobretudo quando o gato se enrroscava nele caído num sono alheado. Passava finalmente, e por vezes, pelas paredes, como um fantasma, e divisava, mas nem sempre, o objecto que buscava por entre as paredes como se a casa tivesse ganhado uma transparência espectral e entre ela, em fantasma, e a casa, em espectro, houvesse uma ligação espiritual.
Assim se entretia, deambulando na memória pela casa com o formato de uma cruz. Quando o filho começou com as suas passeatas nocturnas, de braços estendidos, surpreendendo a pequena a desoras, não se espantou ela que percebia perfeitamente que o filho pudesse partilhar da mesma ligação mnemónica com a casa; que tivesse, inclusivamente, associado sensações a peças de mobiliário e que no seu sono conturbado a planta em forma de cruz lhe surgisse tão distintamente como quando desperto. E a verdade é que tinha por hábito sair do seu quarto onde dormia com a irmã, cada um em sua cama, com os respectivos cartazes, uns de estrelas de rock e outros de via lácteas ou de corpos dilacerados em teatros de guerra, e encaminhar-se, primeiro para o quarto dos pais, perfazendo, de um lado ao outro, os braços de uma cruz. Depois, esquecia-se da casa de banho e dirigia-se directamente para a cozinha onde dava meia-volta e regressava à cama. E foi assim durante anos, várias vezes por semana. Algum dos familiares se espantava quando se cruzava com o rapaz nas suas andanças nocturnas? Nem pensar. Ficavam por vezes parados, a sentir a quietude da casa a segurar-lhes os ossos e a cismar se ele iria bater com a cabeça na esquina entre a cozinha e a porta de entrada. Mas nunca acontecia: nem de raspão, nem um tombo, nem tropeçava na mobília. O circuito era efectuado com perfeição desconcertante e a única coisa que suscitava era admiração por parte de quem o observava, em silêncio, sacudindo o sono dos ombros.
Por isso, quando o filho se debruçou do parapeito da janela da cozinha, durante uma noite sem lua, e caiu no saguão do prédio, encontrando o chão trinta metros abaixo da sua janela, a mãe não pensou que tivesse sido um percurso mal calculado durante o seu sonambulismo. E quando as notícias sairam em pequenas caixas de fundo de página, onde se lia “sonâmbulo cai da janela abaixo encontrando a morte” ou “rapaz que sofria de sonambulismo tem morte bizarra” ou “os perigos do sonambulismo: como proteger os seus filhos?” nenhum destes títulos convenciam a mãe que sabia que no seu sonambulismo, o filho estava mais alerta do que muitos durante a vigília. Segundo ela, o filho tinha-se suicidado e essa era a explicação mais plausível.
Assim se entretia, deambulando na memória pela casa com o formato de uma cruz. Quando o filho começou com as suas passeatas nocturnas, de braços estendidos, surpreendendo a pequena a desoras, não se espantou ela que percebia perfeitamente que o filho pudesse partilhar da mesma ligação mnemónica com a casa; que tivesse, inclusivamente, associado sensações a peças de mobiliário e que no seu sono conturbado a planta em forma de cruz lhe surgisse tão distintamente como quando desperto. E a verdade é que tinha por hábito sair do seu quarto onde dormia com a irmã, cada um em sua cama, com os respectivos cartazes, uns de estrelas de rock e outros de via lácteas ou de corpos dilacerados em teatros de guerra, e encaminhar-se, primeiro para o quarto dos pais, perfazendo, de um lado ao outro, os braços de uma cruz. Depois, esquecia-se da casa de banho e dirigia-se directamente para a cozinha onde dava meia-volta e regressava à cama. E foi assim durante anos, várias vezes por semana. Algum dos familiares se espantava quando se cruzava com o rapaz nas suas andanças nocturnas? Nem pensar. Ficavam por vezes parados, a sentir a quietude da casa a segurar-lhes os ossos e a cismar se ele iria bater com a cabeça na esquina entre a cozinha e a porta de entrada. Mas nunca acontecia: nem de raspão, nem um tombo, nem tropeçava na mobília. O circuito era efectuado com perfeição desconcertante e a única coisa que suscitava era admiração por parte de quem o observava, em silêncio, sacudindo o sono dos ombros.
Por isso, quando o filho se debruçou do parapeito da janela da cozinha, durante uma noite sem lua, e caiu no saguão do prédio, encontrando o chão trinta metros abaixo da sua janela, a mãe não pensou que tivesse sido um percurso mal calculado durante o seu sonambulismo. E quando as notícias sairam em pequenas caixas de fundo de página, onde se lia “sonâmbulo cai da janela abaixo encontrando a morte” ou “rapaz que sofria de sonambulismo tem morte bizarra” ou “os perigos do sonambulismo: como proteger os seus filhos?” nenhum destes títulos convenciam a mãe que sabia que no seu sonambulismo, o filho estava mais alerta do que muitos durante a vigília. Segundo ela, o filho tinha-se suicidado e essa era a explicação mais plausível.
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