Samsa, do outro lado da mesa
Encontrava-se sentado do outro lado da mesa. À minha frente, revelando nos seus pequenos olhos um esgar de desconforto. As costas da cadeira não se ajustavam ao seu corpo. As pesadas antenas, só a custo conseguia evitar que batessem repetidamente no lustre do candeeiro. Por vezes tinha que apoiar as patas no tampo da mesa só para se manter em equilíbrio. Não o repugno, perguntou. Não, de todo; antes pelo contrário. Que quer dizer com isso, ripostou. Digo que quando a sua criada me avisou que iria estar em presença de um Mistkäfer gigante, confesso que fiquei preocupado, até amedrontado. Afinal não é todos os dias que isso acontece. De facto, anuiu endireitando uma das antenas que havia descaído levemente sobre o lustre. Mas agora...Diga, diga. Bom, agora não me sinto minimamente atemorizado, embora lhe confesse, mas não me leve a mal, o seu aspecto é absolutamente repulsivo. Mas disse, entrecortou calando-se imediatamente e ficando parado numa expectativa contemplativa. Sim eu sei, continuei, na realidade não me repugna porque apesar de fisicamente repulsivo considero-o muito simpático. Percebo, respondeu cabisbaixo. Talvez outro dia, ainda acrescentou. Não, não, hoje sinto-me perfeitamente motivado; se não fosse hoje não sei quando seria. E a sua irmã, como vai? Bem obrigado, respondeu contrariado por ter que encetar uma conversa sobre a sua esfera íntima. Depois retomou, não sem alguma angústia na voz. Deixei de dormir com ela, obviamente. Obviamente, concordei. Nem podia ser de outra forma, rematou. Claro que não, reafirmei. Felice disse que não se importava desde que abríssemos a janela, porque sobretudo o que ela não suporta é o meu odor putrefacto. Como a compreendo, disse não conseguindo disfarçar um mal estar que entretanto se tinha apoderado de mim ao qual atribui o facto de o quarto estar tão abafado. Por falar nisso, não se importa que eu abra a janela, não? Faça favor, como eu o entendo. Mas dizia? Ah, sim, Felice...pois não vê impedimento para o nosso casamento; diz que o homem que eu era continuo a ser, e que o amor não responde às aparências. Isso deve fazê-lo feliz, suponho. Não, com efeito, deixa-me tremendamente desesperado. Mas porquê?, perguntei procurando conter o espanto que a minha voz revelava. Porque era justamente o homem que eu era que eu não suportava. De que me vale a transformação, se por debaixo desta carapaça continuo a ser o mesmo homem. Estranho, respondi num sussurro. Então não vê qualquer possibilidade? Não, infelizmente. E já avisou os pais de Felice? Escrevi uma longa carta onde os alertava para o facto de estar a pensar submeter-me a uma grande e irreversível metamorfose. E eles? Insistiram que fosse qual fosse o problema, tanto eles como com certeza Felice, me apoiariam na travessia deste período claramente difícil. Mas mesmo assim não ficou satisfeito? Pois de que me serviu a transformação se é ao mesmo homem que toda a gente continua a prestar atenção? Percebo, respondi, embora não o percebesse totalmente. E agora? Agora, é por isso que você se encontra aqui. E então? Chamei-o porque me encontro numa situação insustentável, como já deve ter entendido. O problema do seu novo corpo, suponho? Não, o problema da permanência do meu velho “eu”. E isso incomoda-o? E de que maneira, repontou enfaticamente. Repare, submeti-me à transformação porque queria que todo o vestígio do homem que eu era desaparecesse definitivamente. Em vez disso, o que obtive? Diga, diga, insisti. A compaixão da minha família, o asco da minha criada, mas pior que tudo, a compreensão de Felice; veja lá que até se presta ao sacrifício de viver comigo, mesmo sabendo que sou um ser impossível! O bicho? Não, o homem! E que quer de mim?, perguntei não conseguindo reprimir um riso despropositado. Quero que acabe com este meu tormento. Mas como? Mal o conheço, e para além disso a sua nova anatomia deixa-me perplexo e sem ideias; nem saberia que conselho lhe haveria de dar. Não se preocupe, tranquilizou-me, quero apenas que seja um instrumento, espero que eficaz, na minha última metamorfose. Que será?, perguntei esbugalhando os olhos no que colhi uma reacção de impaciência nos pequenos olhos pontiagudos que se movimentavam em círculos do outro lado da mesa. Quero que ponha um fim ao corpo e ao homem, encheu o quarto com a sua voz resoluta e os seus olhos ainda há pouco irrequietos alcançaram uma rigidez insuspeitada. E como devo fazê-lo? Ora meu amigo, posso tratá-lo assim, interrompeu e, vendo que eu não me opunha àquela familiariedade, prosseguiu de imediato – o que costuma fazer quando encontra uns seres como eu na sua sala de jantar? O homem ou o bicho?, interroguei ainda confuso com esta dualidade. Os dois, cum raio! Pois uso um qualquer veneno daqueles que se compram nas drogarias. Exactamente, pontuou a minha descoberta ainda com a resolução que adquirira nas últimas frases. Pois bem, se é isso que pretende, a mim não me custa nada. Então estamos de acordo: DDT ou simples veneno para ratos? Tanto faz, escolha você; terá que ter algum papel activo nesta história. Concordei, mas senti que o cenho se me enrrugava perante a alusão à minha utilidade. Posso então dar-lhe um abraço, perguntou-me com as patas a deslizarem da mesa para o chão, soerguendo-se à minha frente, não sem esforço, e batendo novamente com as antenas no lustre do candeeiro veneziano que balouçava sobre as nossas cabeças. Venham daí esses ossos...perdão, venha daí essa creatina, acrescentei para dar um tom de jovialidade ao nosso acordo. Abraçámo-nos. As patas tinham pelos eriçados que roçagavam pelo meu rosto; não era de todo desagradável. O odor junto da boca era ainda mais fétido, mas a bonomia daqueles olhos tornavam-no tolerável.
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