Monday, July 02, 2007

A Desg(raça)?

Já faz paragonas nos jornais. Anda gente preocupada na chamada esquerda chique. Os arautos da antidiscriminação vertem lágrimas amargas por essa perda. Do que é que se trata? Trata-se da machadada que foi assestada nas afirmativa action nos Estados Unidos. A ressolução do supremo rescende a fascismo e quanto a isso há poucas dúvidas. Mas a afirmative action tem que se lhe diga e não me parece assim tão mau que veja o seu termo seja em que governo for. A afirmative action em Holliwood possibilitou-nos ver os negros no papel de heróis que de outra forma estariam ainda a carregar malas em filmes de época sobre o South Dakota e a Louisiana. Mas isto é Holliwood que tudo recicla e tudo doura.
No acórdão faz-se eco das perturbantes razões contra a “racialização da política estatal” o que é um disparate hipócrita porque cada vez que há cortes nas ajudas sociais o efeito só pode ser racializante. Dito de outra forma, cada vez que se privatiza mais o sector da saúde o impacto é sobre as populações mais desmunidas, neste caso os afro-americanos. Da mesma forma, quem levou com a maior ventania durante o furacão Katrina foram os afro-americanos porque eram os que viviam nos piores sítios e os que tinham menos recursos para sairem da cidade. Por isso a racialização pré-existe a qualquer política estatal. O que me leva então a não discordar com os cortes na afirmative action?
Primeiro, a afirmative action tapa o sol com a peneira. Ao determinar quotas para uma população o que faz é reconhecer a assimetria dessa mesma população na estrutura de distribuição de recursos. Segundo, a afirmative action tenta corrigir uma situação, sedimentada historicamente, através do recurso a cosméticas demográficas.
Estou convencido de que nada foi pior para a luta contra a pobreza, a exclusão e a exploração do que o programa antidiscriminação. Não é tanto que este seja o bastião de todos os males como apregoam os conservadores e os radicais de direita. Mas quando esta agenda é manipulada e cinicamente usada para encobrir a tríade anterior, então temos um claro caso de pior a emenda do que o soneto. Enquanto os empregadores das grandes multicionais se preocupam muito em ter um menu variado à disposição para reconhecimento do cardápio multicultural, leis selváticas no mercado de emprego passam incólumes. Não admira portanto que os empregadores sejam atraídos pelo canto da sereia da antidiscriminação, enquanto se estão borrifando para os direitos dos trabalhadores. A agenda da antidiscriminação promove um segundo aspecto, porventura ainda mais prejudicial. Se as reivindicações sociais reflectiam uma base de apoio transversal e as lutas pelos direitos tinham um horizonte universalista, o programa antidiscriminação rege-se por orientações particulares e procura gerir casos de excepção. Dir-se-ia que de uma agenda emancipatória se passou para uma agenda correctiva.
Igualmente interessante é observar como os termos foram invertidos por esta obsessão pela discriminação. Assim será discriminação o que se caracterizar por um factor específico considerado como diferenciador, mas no objecto do próprio acto; e não é o acto que é discriminatório. Por conseguinte, ser despedido só é discriminação quando este factor específico se encontra na equação e pode ser invocado; porque quando ele não está presente, é um acto perfeitamente ajustável às circunstâncias estratégicas de uma organização. Esta translação do acto para o objecto é, obviamente, uma circunvenção da luta política. O direito à habitação passa a ser o direito a não ser discriminado por razões outras do que a simples efectivação desse direito, seja para quem for. Como se pode aceitar que o problema seja ser discriminado na habitação porque se é de cor e não o facto de não se ter acesso à habitação? Parecem as duas coisas iguais, mas não são. A primeira prende-se com um direito individual a segunda enuncia uma solução colectiva, mormente de distribuição de recursos. É justamente a passagem do colectivo ao individual que encontra o seu simétrico na passagem do “acto” para o “objecto”.

1 Comments:

Blogger brunopeixe said...

Não podia estar mais de acordo com o que escreves, com a pequena objecção de, neste caso, não se aplicar. Eu diria que existem duas maneiras de argumentar contra a acção afirmativa, a tua, que se pode chamar de esquerda, e que critica a privatização de direitos colectivos. Mas a oposição que se consubstancia nesta decisão é de outro génenro, como bem sabes. Ainda mais privatizante. É que a acção afirmativa ainda reconhecia dimensões grupais de desigualadade. É verdade que quase sempre a benefício das elites das minorias étnicas. Agora, temo, nem isso. Each men on its own. Não estás a ver o argumento? Discriminação? Olhem para a Condi Rice e o Collin Powell.

1:20 PM  

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