Tuesday, July 31, 2007

Por que devemos gostar de Saramago?

Saramago é insultado por quase toda a intelectualidade de direita, mas não só. Uns não lhe perdoam a passagem – despótica, segundo muitos – pelo DN; outros não lhe perdoam o excessivo iberismo, envergado sem rebuço como quem exibe um fato de gala; outros ainda, simplesmente, acusam-no de ser comunista como se a opção política contaminasse todos os seus actos – são portanto mais marxistas do que o próprio Saramago.
Nada disto possui qualquer relevância quando aquilatado com a obra de Saramago. E esse deve ser o único elemento em julgamento. Saramago, aventamos, mostra-se agastado com tanta malevolência, perseguição, mal intencionados juízos, de tal forma que fugiu para Espanha onde o admiram e onde lhe prestam tributo. Mas também isto não passa de acessório e de fait divers.
Saramago merece estar no panteão dos grandes escritores nacionais por algumas razões objectivas. A escrita de Saramago explora uma capacidade efabulatória pouco vista na literatura nacional. Poucos escritores possuem tanta e tão versátil imaginação. Esta tendência vem ao arrepio de uma literatura muito marcada quer pelo naturalismo – herança balzaquiana – quer pelo neomodernismo. A versatilidade de Saramago encontra-se notoriamente nas múltiplas inscrições que ele ensaia nestas duas escolas, enquanto lhes acrescenta o poder de efabulação que falta tanto a uns como a outros. Basta lembrar a Belimunda de “Memorial do Convento” e as suas alucinações proféticas; a recriação de um Ricardo Reis no corpo de um Pessoa e de uma Lisboa por este imaginada; ou a epopeia de uma península separada do resto da Europa a vogar em direcção a outras paragens atlânticas. Mas temos também uma fase inicial de Saramago marcada fortemente pelos tons neorealistas, por exemplo, de um Soeiro Pereira Gomes, cujo expoente se materializa no “Levantado do Chão”. Porém, é preciso prestar atenção à dimensão irrealista do final do livro, revestida de um desejo de utopia, congregado na marcha dos trabalhadores em direcção, julgamos, a um futuro melhor. De tal forma que é possível encontrar um paralelo entre este final e o registo quase que musical – como assinalou Eco - do início do Manifesto Comunista – leia-se: o crescendo. Mais uma vez efabulação; mais uma vez a inversão, ou a negação, de um universo demasiado formalista. E se isso não bastasse, a reconstituição apócrifa da vida de Cristo em “O Evangelho segundo Jesus Cristo” leva ao ápice a capacidade que Saramago tem de reinscrever na textura do material histórico a sua explosiva fantasia.
Até aqui referimo-nos sobretudo a uma primeira fase. Considero que assim se pode caracterizar, dado que as mais recentes obras, embora com o mesmo recorte estilístico, enveredam por um caminho diferente. Em breves traços, este novo caminho prepara uma súmula que reúna o pensamento de Saramago sobre a natureza humana e a emersão desta nas condições sociais; ou melhor dizendo, o homem compreende-se a si próprio e age consoante as condições em que vive. Nada poderia estar mais perto do velho aforismo de Marx “os homens fazem a sua própria história, mas...” do “18 de Brumário”. Será por conseguinte uma fase de teor mais político, através da qual Saramago pretende intervir, literariamente, nos caminhos da emanciapção política dos cidadãos. Esta fase mais programática é igualmente marcada por laivos de grande imaginação, como seja a parábola platónica de “A Caverna” ou o grito mobilizador de o “Ensaio sobre a lucidez”. Não obstante, afiguram-se-me obras menores onde o papel da imaginação serve mais de respaldo para uma ideia, para uma tese, que atravessa todo o livro, do que uma construção fantasista dos personagens e das suas situações.
Todavia, é inegável que num panorama geralmente pobre em termos de literatura fantástica, Saramago rompe com esta modorra herdada e institucionalizada para nos oferecer um universo múltiplo e mutante; caleidoscópio de personagens e enredos que possuem, para além da estrutura ficcionada do género romanesco, verdadeiras incursões no plano do fantástico.
Neste contexto, Saramago é a dois títulos um autor atípico. Primeiro, não está preso a convenções narrativas, nem do novo a todo o custo – esta pressão quase autónoma para a originalidade – nem tão-pouco à herança dos dois grandes vultos literários, Camilo e Eça, com as suas casas senhoriais e genealogias que ainda perpassam por grande parte da literatura portuguesa. Segundo, porque as suas fontes inspiracionais são algo insólitas nos escritores da sua geração. Começando por Kafka, de cujo próprio Saramago se confessa discípulo, passando por Borges, Swift ou Melville, desembocando no Padre António Vieira do qual Saramago herdou a oralidade que tinge as suas frases e a forma de articular as ideias, tão bem expressa no prolongar dos períodos para além do convencionado gramaticalmente. Referências que encontramos (com a excepção do Padre António Vieira) reiteradamente na nova literatura nacional; o que faz de Saramago o mais jovem dos velhos escritores portugueses.
A direita quando ataca Saramago, não está apenas a atacar o homem Saramago – isso seria demasiado fácil. O que a direita teme é o poder disruptivo da imaginação. Algo que se encontra bem patente, por exemplo, no ancilosamente formalístico da escrita de Agostina ou dos romances de Vasco Graça Moura. Uma eterna repetição que não deixa espaço para novos mundos.

1 Comments:

Blogger Álvaro Cunhal said...

editorial ATALHO - http://editorialatalho.blogspot.com/

10:51 PM  

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