Tuesday, August 21, 2007

Dois Idiotas


Num artigo diz-se que o Idiota de Dostoievski é uma obra errática, desestruturada e tacteante. Justifica-se esta apreciação com o facto de Dostoievski deixar por diversas vezes linhas em suspenso, personagens inacabados, que entram e tornam a sair sem cumprirem aquilo a que se propunham inicialmente. Há também, diz-se, falhas de coerência no comportamento dos personagens, por exemplo a idiotia do princípe Michkin que é intercalada com rasgos de genialidade e brilhantismo poético. A tese é a de que Dostoievski teria no Idiota o seu romance mais experimental e que avançou por ele sem ter uma ideia muito definida do que iria escrever. Na apresentação do livro, segundo a edição portuguesa, este é o mais estruturado dos romances de Dostoievski, onde ele coloca particular cuidado na composição dos personagens e na sequência dos episódios. Segundo o artigo referido, a falta de coerência é por demais evidente, sobretudo no desprezo que Gania devota a Michkin que se vai esmaecendo ao longo do enredo para se descaracterizar completamente lá para o fim. E o fim, com o suicídio de N. Filippovna, passa por ser um fim abrupto, não previsto no desenho inicial da narrativa.
Pois não descortino quem tem razão, se os defensores da errância da narrativa se os, contrastantes, propugnadores da cuidadosa estrutura e sequência. Que Michkin se apresente de mutável personalidade, entrecalando a idiotia, assim como é percepcionada pelos outros, com a loquacidade e a lucidez, vem da sua aproximação a D. Quixote. Também este último entrecala os momentos de pura alucinação com monólogos de recorte clássico, onde a clareza das ideias é cristalina. A transformação do desprezo de Gania em, por vezes admiração e reverência, só indica que a natureza humana é volúvel, sendo que Michkin parece ser dotado com esse condão de desencadear mudanças extremas nos comportamentos das pessoas. O entrosar complexo de personagens ao longo da narrativa não é de molde a rejeitar que Dostoievski se tivesse por diversas vezes perdido no seu próprio enredo, mas também aqui, a estrutura pouco organizada, espécie de caixinhas chinesas que se vão contendo e revelando umas às outras encontra paralelo no D. Quixote. Mais uma vez, a sucessão de pequenas histórias dentro da narrativa maior – a busca de D. Quixote pela amada Dulcineia – se vai fazendo de forma imprevista, deambulante, e, sobretudo, dialogante.
Michkin nunca me surgiu como um idiota, mas antes como o personagem mais límpido de todos os que compõem o romance. E nesse sentido, também ele vai aprendendo, e o processo de maturação, se assim lhe podemos chamar, vai ganhando contornos cada vez mais definidos por efeito das suas experiências e agruras no contacto das diversas situações com que depara. Mesmo admitindo que o livro é errático, que Dostoievski vai experimentando caminhos ao longo da narrativa e abandonando outros que acabaram por não resultar, tendo a ver nesta errância a beleza do trabalho de bricoleur que se apropria do material de forma a explorar-lhe a textura, a tecitura, a consistência e a ductilidade. A destreza com que Dostoievski assume os seus personagens – e incompletos ou contraditórios que sejam, haverá alguém que se asseme-lhe às tipificações de Dickens? -, a maneira como os faz interagir, modificarem-se ao longo dessa interacção (vide Bloom) confere-lhes a vitalidade de vozes presentes, audíveis perante a rigidez dos objectos.
Nisso não há escritor que se tenha aproximado de Dostoievski.

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