Tuesday, October 16, 2007

O riso é sagrado

Sempre pensei que contar anedotas racistas ou onde o esteriótipo é reforçado, era saudável, e mais, era sinal de que se exorcizavam fantasmas. A anedota racista ou religiosa possui um potencial humorístico que dificilmente anedotas sobre patos ou peidos atingem. Ninguém persegue as anedotas sobre patos ou peidos. Por infortúnio, são as anedotas racistas e desrespeitadoras das crenças religiosas que estão na mira das lavagens de consciência. Por exemplo,
Dois canibais estão a assar um cigano no espeto
Chega um terceiro e nota que eles estão a virar o espeto incrivelmente depressa
Então pergunta: é pá porque é que estão a virar o espeto tão depressa? Não vêm que ele assim não fica bem tostado?
Então respondem os outros dois: não vês que se não for assim o cigano rouba-nos as batatas todas!
Simples, eficaz e, em certa medida contundente. Tem batatas, tem ciganos e tem canibais. É portanto uma anedota que contém a história de uma civilização. E isto é insultuoso? Para os ciganos? Para as batatas? Para os canibais? Seja qual for a resposta, reservo-me o direito de lhes achar piada, quero dizer, às anedotas racistas e desrespeitadoras de crenças religiosas. Não se pode tocar em Maomé, pois é uma porra. E eles, os muçulmanos, até têm piada; nem seria exagerado dizer que têm um sentido de humor hilariante. Basta conversar com um deles. Mas quando chega a Maomé, está tudo estragado. Trocadilhos com cerveja, gajas, camelos ou mullas, tudo bem; mesmo gozar com o muezin, dizendo, faz de conta, aquele gajo parece um peido a desprender-se do topo do minarete. Nem expressão de desagrado, nem sequer um ligeiro franzir do sobrolho. Nada de nada. Mas quando chega a Maomé, deus nos livre e guarde. Pressinto que existam alguns muçulmanos mais à-vontade com o tema; e nem precisam de ser os renegados ou os réprobos. Dizer: ontem vi uma gaja boa, mas boa, com uma burqa, pode suscitar a apreensão de um purista da cognição ou de alguém com um espírito demasiado linear que não se enterneça com as delícias da imaginação. Mas daí a concluir que se pode dizer o que bem nos aprover sobre Maomé, vai um passo gigantesco, e não só para a humanidade. Será isto assim tão enviesadoramente moral apenas para os muçulmanos? Contar anedotas sobre o segredo de fátima, os pastorinhos ou o papa, seria extremamente tonificante. O problema é onde encontrá-las? No anedotário nacional, o panorama é extremamente desolador em relação às figuras mais proeminentes da nossa religiosidade. E no entanto, pouco há que não passe por anedota. O papa a pedir aos fiéis que não se esqueçam dele quando inaugurarem o novo templo em fátima. Que não se esqueçam dele, para o quê? Como beneficiário da côngrua? Um homem inteligente como MRS a fazer campanha contra o aborto. Para quê? A favor da vida dos fetos que nem sabemos em que espécie de seres humanos se tornarão? Homens e mulheres inteligentes, de reconhecido mérito (ou demérito, depende do ponto de vista) a jurarem que a virgem apareceu a planar sobre uma azinheira, e que há segredos que quando revelados espantarão o mundo. E enfim, um dos Sumo Pontifícies a recontar um sonho onde lhe era revelado o terceiro dos famosos segredos mencionados atrás. Isto possui tudo carácter anedótico, e no entanto poucos são os que se arriscam a torná-lo motivo do risível ou da irrisão.
Dizem que com o sagrado não se brinca. Ou pelo menos com o nosso sagrado não se deve brincar, porque faz parte do nosso sagrado – das razões que o sacralizam – brincar com o sagrado dos outros. Nem sempre é assim, e estas ilações sobre a alteridade do sentimento religioso aplicam-se sobretudo às grandes religiões monoteístas – palavras únicas, deus único, livro único. Quererá isto dizer que as outras, as panteístas, admitem piadas com o seu sagrado? Nem por isso. A raíz zen é de tal forma blindada contra a piadística que não há humor que lhe penetre. Podemos dispormo-nos a fazer humor com monges carecas, cantares meio apetatados ou túnicas e sandálias. Não passa de indumentária. Contudo, com os aspectos religiosos propriamente ditos?, dificilmente. Como é que se podem contar anedotas sobre o vazio, sobre o conhecimento interior, sobre a busca da anulação do eu? Pois parece difícil, mesmo impossível. Já com os hindus as possibilidades são maiores e mais nuanceadas. Podemos sempre tentar inventar maneiras de ridicularizar a reencarnação e o elenco de animais com que ela ameaça; ou o facto de adorarem uma vaca quando estavam a morrer de fome. Estas incongruências pagam-se caras quando perpassadas pelo olhar arguto do fazedor de anedotas. Os sikhs oferecem-nos um manancial de gozo virtualmente inesgotável, e não me refiro apenas ao turbante. Contudo, há uma certa adequação fonética entre a religião sikh e o inglês, o que proporciona que as melhores intervenções humorísticas sejam no terreno desta língua. Pode, por exemplo, ser sistematicamente repetido, do you feel sikh? Ou uma variante, how sikh do you feel? Ou ainda, do you feel sikh today, se a intenção for a de insistir até ao desespero do interlocutor. Eventualmente quem tem potencial para ocupar o topo são os Mormons e o seu Rumspringa!, literalmente saltar por aí, andar aos pinotes, espinotear como um gamo alvejado por uma seta com curare (até à paralesia total, que se dá passado 5 minutos). Os Mormons passariam por ser o alvo inesgotável da maledicência humorística. Não apenas os seus casacos cintados e os chapeús de aba larga são ridículos, como os gorros de renda que as suas mulheres são obrigadas a usar fariam as delícias dos mais abusadores. Ainda se queixam do véu! O véu é moderno; chega mesmo a ser modernaço. O véu é sexy, deixa apenas entrever as linhas dos olhos, um sombreado enigmático e promessas indecifráveis (começa a parecer a Marie Claire ou o Paulo Coelho, porra!). E tem qualquer coisa daquele exotismo oriental que nos recorda as leituras juvenis das mil e uma noites. E por aqui ficamos, porque se há sherazades que inventam o diabo a quatro para não perderem a cabeça, outras há que mandam um bafo a camelo ou cujo sovaco não vê sabão há mais de quatrocentas luas.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

óh homem !
Onde foi vc descobrir os mormons de casaco cintado e chapeu de abas largas com as suas mulheres de gorros de rendas ? ...
O texto está engraçado, mas esta passagem nada tem a ver com os mormons, provavelmente com uma seita que vive no interior dos Estados Unidos e eu não lhe digo o nome para o "obrigar" a pesquizar sobre eles e compara-los com os mormons de que fala no texto ...

11:30 AM  

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