Friday, October 12, 2007

Relativismo, racismo, sob o signo do ismo

O relativismo moral serve de acusação para tudo o que não seja estoicamente tradicionalista. Tem portanto as costas largas. Por relativismo moral entendem-se coisas tão díspares como o direito da mulher abortar – segundo César das Neves, por exemplo – ou o multiculturalismo, segundo o comentário de DLM. Esta confusão não faz bem à heurística e turva em grande medida o principal da discussão. Foi por isso que, para fugir aos escolhos teóricos, avancei, aliás apenas secundei, a hipótese de que vivemos em condições multi-culturais de facto e não apenas de jure. Ora isto não implica qualquer relativismo, muito menos moral. Seria relativismo se eu dissesse que assistimos actualmente a uma emersão de diferentes hábitos e práticas num banho cultural comum? Julgo que teria dificuldades em negar a evidência. Seria relativismo dizer que as fronteiras geográficas assim como as conhecíamos se têm tornado cada vez mais permeáveis? Não me parece que a posição contrária resistisse à prova dos factos.
Porém, uma coisa é negar a existência de algo, outra coisa é resistir à sua aceitação. E esta resistência traduz, em larga medida, o velho binómio entre o que é e o que deve ser. Com efeito, se retirarmos a objurgatória contra o relativismo – que, repito, serve apenas de cortina – o que fica é um outro ismo, mas desta feita de...racismo. O raciocínio corre o risco de se tornar circular, e tenho poucas dúvidas que essa possibilidade será finamente aproveitada pelos detractores da multiplicidade cultural (algo que, nos dias que correm, se aproxima a ser contra a gravidade). Afinal de contas, a defesa moral é sempre a de recusarem o epíteto de “racistas” afirmando que qualquer crítica será imediatamente rotulada como tal. Trata-se de certa maneira do mesmo turtuoso raciocínio sobre o anti-americanismo. Qualquer crítica contra os Estados Unidos é imediatamente catalogada de anti-americanismo. É uma estratégia interessante, que colhe os seus frutos, mas que se baseia em falácias lógicas. O mínimo que seria aceitável era que quem afirma tais posições assumisse o seu racismo. Claro, transparente, e, no melhor espírito pluralista, admissível. Não fora o problema de não ser de facto coerente com uma linguagem que tanto acarinha as liberdades, a escolha, a vontade e todo o menu a la carte da terminologia liberal. Mas não há confusão possível: o conservadorismo a la Oakshot não é apenas por coincidência que toca sistematicamente a mais atávica noção de unidade. Diz DLM, preservemos a “tradição, a cultura e comunidade como fim inquestionável do homem”. Dir-se-ia que uma tal formulação reflecte fielmente o velho nacionalismo étnico. O problema, obviamente, é o paradoxo que reside no seio de qualquer liberal conservador: são liberais ao domingo e conservadores o resto da semana. Quando se esperaria que após a sua inflamada exposição sobre direito natural e o parto da figura do cidadão apontasse para um nacionalismo extra-nação, DLM enviesa a conclusão mais plausível e retorna aos limites da cultura, e mais, à coincidência entre esta, uma dada tradição e, extrapolamos, uma dada nação. Percebe-se que a figura do cidadão forjada no cadinho do Iluminismo (mas eu quase que apostava que o DLM não envereda por uma adessão sem concessões ao Iluminismo; algo me diz que ela é travada pela crítica à religião) possa ser retraçada a uma cultura particular – a cultura europeia. O que seja a cultura europeia é algo de muito discutível. Mas admitamos que esta cultura criou uma figura singular, o cidadão. Em que medida é ela universal, como parece sugerir DLM? Hanna Arendt levanta a questão crucial quando analisa a situação dos milhões de refugiados que se deslocavam por essa Europa afora após a II Guerra. Na realidade tratava-se de apátridas. O atributo que todos possuiam em comum era justamente o não terem qualquer vínculo ao direito natural. Hanna Arendt usa uma expressão elucidativa a este respeito: o direito de ter direitos. A razão prende-se com o facto de o indivíduo, o cidadão, o portador de direitos só o ser em relação a um Estado. Na condição de sem-estado nem sequer existe o direito a ter direitos. É verdade que os direitos humanos colocariam rapidamente uma tal evidência em questão, ou não fossem eles extra-estatais, supra-estatais, e etc. Não há, no entanto, qualquer força jurídica dos direitos humanos; e não há porque eles não possuem mecanismos de legitimação semelhantes aos que são impostos pela deliberação democrática. Apesar de toda a retórica em contrário – de que os direitos humanos têm preponderância – o que se passa é que a sua efectivação responde a pressões lobísticas, portanto ao jogo dos interesses. Pelo menos, até agora; não parecendo que vá mudar tão cedo.
Depois desta deriva pela cidadania, regresso à questão central, a de que o multiculturalismo encerra o espectro do relativismo moral. Não existe um único exemplo prático que possa sustentar um tal receio. A menos que sejam as fantasias xenófobas segundo as quais os muçulmanos querem todos praticar a excisão nas suas filhas e que isso lhes está impresso no adn cultural. São meras fantasias. Mas coloquemo-lo no plano teórico. Primeiro, importa referir que não é seguro que o canibalismo seja exclusivo do “outro” – posição bastante bem inserida no discurso racista. Com efeito, nada me garante que o meu vizinho com quem eu partilho os mesmos códigos não possa ser ele o canibal. Por isso, nesta história de canibais, nunca se sabe muito bem donde vão eles aparecer. Segundo, as culturas não são monolíticas. Apenas o raciocínio mais arreigadamente nacionalista pode partir da premissa de que as culturas se encontram cristalizadas e incomunicáveis, que não possuem nada a aprender umas com as outras. Normalmente, a consequência de uma tal lógica é o sentimento de superioridade de uma cultura em relação a outra. Note-se que não é a asserção de que há coisas que podem ser trocadas, partilhadas, etc. É sobretudo um sentimento de superioridade unificado que leva a uma hierarquização. Neste aspecto o que o hierarquizador faz não é mais do que reificar um dos traços culturais – a avareza para os judeus, a excisão para os muçulmanos, a sensualidade para os africanos, etc – excluindo a sua própria cultura deste mesmo jugo reificador. Ao fazê-lo, imprime necessariamente uma estatura moral superior à sua própria cultura, a única que não pode, nem deve, ser reificada. Fica aqui desfeita a possibilidade dialógica. O hierarquizador esquece que este sistema possui a propriedade de ser reversível, i.e., pode ser ele sempre o alvo da reificação. E diríamos que fora de uma aceitação básica dos princípios multiculturais a reificação é o inescapável senso-comum nas relações entre diferentes culturas. Ora bem, ninguém disse que resistir a um tal resultado é uma espécie de atributo natural. Muito pelo contrário, ele tem que ser aprendido. Como se aprende a escrever e a ler. O conflito cultural tem sempre um potencial não negligenciável. Daí que a melhor atitude não é a de cruzar os braços e dizer que estamos perante campos irredutíveis, ou, o seu simétrico em negativo, que qualquer diferença ameaça uma pressuposta pureza inicial, como parece ser o sentido da parábola do canibal. Nada nos proíbe de entabular conversa com o outro; de confrontar normas, regras e práticas; de as traduzir numa forma racional, da qual argumentos possam ser aduzidos. Ora isto não faz com que todas as práticas se equivalam nem que não haja possibilidade de as julgar racionalmente. Se é esse o seu entendimento de multiculturalismo – um relativismo total onde as regras e práticas recebem a sua caução apenas porque provém inevitavelmente de uma cultura – então posso dizer-lhe que se me afigura um entendimento muito restrito do que é o multiculturalismo actual, e não é sequer o que eu partilho. No dialogismo não há forçosamente a queda no relativismo. Pelo contrário, evitamos a fuga – os bárbaros à porta, onde o caro David parece querer entrincheirar-se – e a aceitação plena. Esta forma de dialogismo, se alguma coisa, aceita o confronto como jogo de soma positiva. É eventualmente aquela que não coloca o outro à distância, não o reificando na sua condição de outro, trazendo-o pelo contrário para o centro. Já sei que nesta altura o David estará a pensar que não há diálogo possível com o canibal, que enquanto estivermos distraídos a conversar, ele devorar-nos-á. Pois é uma conclusão em substância racista.

3 Comments:

Blogger David Lourenço Mestre said...

O Nuno Castro não compreendeu ou está de má fé. Infelizmente não sei se as suas intenções são sinceras. Recomecemos do início.

Popper foi quem melhor anteviu a derrocada do iluminismo. Viu que o relativismo se não deixava escancaradas as portas do irracionalismo pelo menos as abria por metade ou um quarto. Ele denunciou o relativismo filosófico, o relativismo histórico, o relativismo moral. Citando Popper: “O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão e à humanidade.” Não podemos falar de relativismo moral sem começar pelo relativismo filosófico. A essência da filosofia é o que é a verdade. Crime primordial: a verdade é aquilo que a sociedade, a maioria, o meu grupo aceitam. Foi o que a escola nacionalista fez. O iluminismo defendeu uma ordem social pluralista e aberta e defendeu algo diferente dos nacionalistas. Kant disse: “ousa ser livre e respeita a liberdade e a diversidade nos outros, porque a dignidade do homem está na liberdade, na autonomia.” O liberalismo kantiano venceu o conflito ideológico do século XX mas trouxe consigo novos inimigos. Hoje há um relativismo dogmático que emana das universidades assente na certeza inabalável de que todos os pontos de vista são equivalentes ou arbitrários. A ciência ética retira da diversidade de normas éticas a conclusão que as morais são arbitrárias e que o único padrão é de que não há padrões. Isto conduz, na expressão feliz do Ezequiel, ao pluralismo radical ou multiculturalismo, não a uma ordem cosmopolita marcada pela diversidade de culturas, mas a aceitação de uma pluralidade de morais quando as sociedades têm um lastro moral que as torna funcionais. Não se trata de um apelo em defesa do caldo cultural e religioso – embora haja um nexo de conhecimento que chega do passado, passa por nós, e que queremos legar aos nossos filhos – mas não se trata, de grosso modo, do conteúdo mas da forma que o comprime. As sociedades que herdamos do iluminismo são compostas de criaturas estranhas meramente unidas na barca do destino pela obediência a um território e a uma constituição universal escrita sobre o direito natural em que o cidadão é a indispensável âncora. A chegada de comunidades de imigrantes que clamam legitimamente pela sua identidade encontram abrigo sob o manto do relativismo e do multiculturalismo que lhes clama o direito à integração. Convém chamar a atenção para pequenos exemplos. Na califórnia houve há poucos anos a possibilidade do espanhol ser instaurado como primeira língua nas escolas elementares. Issur Danielovitch Demsky, ou Kirk Douglas para o mundo, contestou: “Lá em casa só falávamos idixe. Os miúdos que eram nossos vizinhos de patamar só falavam italiano com os pais. Mas na escola todos aprendíamos inglês. Se assim não fosse, nunca poderia ter sido actor, o que devo ao meu inglês correcto”. O exemplo francês é o exemplo europeu, onde o medo manda e a pedagogia anda de braço dado com a ideologia, os jovens que não falam em casa a língua dos nativos são condenados ao insucesso e às margens da sociedade quando poderiam, a titulo de exemplo, beneficiar de aulas especiais que o acompanhassem no inicio dos estudos no país de acolhimento. A escola espaço de integração, contaminada pelo orientalismo de said, pela desconstrução de Derrida, pelo ataque de Foucault ao pensamento burguês, paulatinamente mostra-se contestatária da identidade dos nativos, da identidade europeia, do “estado-nação”, do direito natural, do progresso, do iluminismo, da razão. O nosso sistema educacional converte-se inextrincavelmente no motor do pluralismo radical, disciplina que divide e encoraja rivalidades tribais e promove a derrocada das escolas em que funda-se o ocidente. O assalto à herança cultural, intelectual e estética não gera qualquer espécie de obediência nova a uma identidade colectiva, sonegando ao enquadramento institucional uma lealdade que a suporte, e abrindo o caminho ao tribalismo e em ultimo passo à tirania. As ciências sociais retomaram a herança dos românticos e dos piores vícios dos nacionalistas e ao abrir de braços romperam as velhas ortodoxias herdadas do iluminismo, e pelas quais os nossos antepassados tombaram. A excisão feminina não é universal entre os muçulmanos, nem todos o praticam, muito menos é uma fantasia xenófoba – onde é que foi buscar este absurdo? Retomo o pensamento. O que está em causa é saber se estamos dispostos a abrir clinicas para executar higienicamente a excisão feminina. Como foi sugerido em Itália. Ou se preferimos punir o pai que rasga as entranhas da sua filha, como se faria com qualquer pai europeu. Lembro que a questão da criminalização passou pelo parlamento português e a esquerda moderna diferiu sob as velhas justificações que faziam marchar os romântico-nacionalistas. Isto é factores culturais. Será aceitável abrir buracos na lei para permitir a aplicação da sharia. Como aconteceu no Canada e acontece oficiosamente no interior dos estados europeus. Será correcto aceitarmos o apedrejamento até à morte, ou o corte das mãos do criminoso, ou a obrigação da mulher encontrar pelo menos quatro testemunhas masculinas no caso de enfrentar a acusação de adultério. Terá a grelha legal tolerar abusos físicos sistemáticos no interior de um casal muçulmano como expressão cultural. Ou que cidadãos, sob o arame farpado da comunidade, conspiram abertamente contra a sociedade de acolhimento. Ou que nos subúrbios das grandes cidades, como acontece em França, que existam bairros onde a lei não vigora e as autoridades recusam a entrar. Ou que haja vários milhões de cidadãos ou residentes que não se consideram abrangidos pela lei do país de acolhimento. Infelizmente isto significa que parte do território e parte da população fica à margem da alçada da lei estatal. Na linha de max weber, ao estado cabe o monopólio da força autorizada ou legitima, e cabe lhe a protecção de quem cai dentro do seu território. Estamos a pôr um fim ao estado soberano e a criar estados dentro do estado protegidos por uma moral substantiva que mora no velho chavão nacionalista de que a tradição, cultura, e comunidade são o fim inquestionável do homem. Quer queira quer não é esta a realidade em vários países europeus.

4:08 AM  
Blogger David Lourenço Mestre said...

"No dialogismo não há forçosamente a queda no relativismo. Pelo contrário, evitamos a fuga – os bárbaros à porta, onde o caro David parece querer entrincheirar-se – e a aceitação plena. Esta forma de dialogismo, se alguma coisa, aceita o confronto como jogo de soma positiva. É eventualmente aquela que não coloca o outro à distância, não o reificando na sua condição de outro, trazendo-o pelo contrário para o centro. Já sei que nesta altura o David estará a pensar que não há diálogo possível com o canibal, que enquanto estivermos distraídos a conversar, ele devorar-nos-á. Pois é uma conclusão em substância racista."

Concordo que tem de haver dialogo. Mas nao penso que a bem do dialogo ou de qualquer acordo devamos regredir seculos.

4:40 AM  
Blogger David Lourenço Mestre said...

Nuno, os direitos humanos sao um vinculo juridico com obrigaçoes dentro de um quadro legal para com o cidadao, mas tambem sao um vinculo moral universal, este situa-se como compreende no plano das boas intençoes.

1:50 PM  

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