Tuesday, October 16, 2007

Pela manhã

A pior coisa que pode acontecer num dia soalheiro pela manhã? Encontrar um colega, amigo, familiar no transporte para o trabalho. Vimo-lo(a) aproximar-se. Um calafrio percorre-nos a espinha, foda-se que já me foderam a leitura! Mesuras variadas: então por aqui (seu filho da puta)?, olha, olha quem é ele (o cabrão que já me fodeu a manhã)?, senta-te aqui, tás à vontade (até te podes cagar!). Depois, fechamos o livro, revista, jornal, magazine literário ou desportivo, a contragosto e ainda pior preparamo-nos para entabular conversa. O, ou a, comparsa, entretanto sentou-se com o seu corpo pesado de fardos de sono, à nossa frente; mesmo que seja magro e esquálido, adquiriu um peso inusitado por se ter intrometido à sorrelfa no retábulo da manhã. Santinhos, estávamos nós, fechados em compenetrada beatitude, esperando apenas a epifania das portas de correr do metropolitano e alguns saltos altos a trautear marchas castrenses. E eis que senão, donde veio esta aparição? E então, está tudo bem contigo? Tudo, e contigo? Vai-se andando. E que frio, hem. Nem por isso (ou, podes crer, que frio de rachar!). Entrementes, a página que se deixou ainda a flutuar, a pedir meças. Aquela ideia que se deixou pendente, no parágrafo ainda não terminado, a colar-se às pupilas enquanto se franqueia, paulatinamente, uma daquelas conversas forçadas que exigem um estoicismo de espartano em greve de fome. O embaraço é comum. Sejamos simpáticos, cordiais, cordatos e outros adjectivos da terminologia urbana. Falar sobre a família, e a tua mulher tem passado bem? Sobre o dia de trabalho que começa, tenho uma pilha de papelada na minha secretária para despachar? Sobre planos futuros, então e as férias para o ano que vem? Nada que substituísse uma linha sequer do livro que acabámos pressurosamente de guardar na mala. Chamam-lhe, alguns, a função fática. Boa educação, cordialidade são outros termos que ocorrem à mente. Esforço, sacrifício, tortura, são expressões menos usadas, em boa verdade tingidas com um halo de desprezo pelo humano e pela comunicação. Misantropia, será isso? Pelo menos até às 10 da manhã, onde farrapos de sonhos ainda teimam em languescer por aí e ideias de um combóio que devia ter continuado eternamente se interpõem aos esforços do recomeço.

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