Wednesday, November 28, 2007

História mal digerida

A entrevista de Catalina Pestana na Sol. Voltar a ela, depois das ondas císmicas e do sensacionalismo. Primeiro, simpatizamos; chegamos mesmo a empatizar com Catalina, pela sua vida de combatividade, pelos seus assomos de voluntarismo, coisas bem diferentes do que nos acostumámos a ver na figura austera de Catalina, a televisiva. Sim, vem sempre envolta numa certa áurea de São Jorge contra o dragão. Mas aqui, nesta ocasião mediática, nesta oferta mediatizada, somos levados à sua intimidade: Catalina na sala; Catalina na rua; Catalina em brincadeiras juvenis, Catalina na praia, etc. E simpatizamos. Sinceramente, empatizamos com o que há de genuíno nesta reconstrução da Catalina a justiceira a que nos habituáramos a prestar atenção em momentos de declarações explosivas, estarrecedoras, chegando até à comoção.
E eis que senão,
Como é que, durante 12 anos, nunca se
apercebeu de algo com esta dimensão?
Nem com o caso dos miúdos desaparecidos
e depois encontrados em casa de Jorge
Ritto, nos anos 80?
Nada. Mas percebo porquê. Como adjunta
do vice-provedor, já não ia às reuniões de conselho
(embora, ao que me disseram, esse caso
não tenha sido discutido em conselho).


E não era um assunto que se comentasse?
Se se comentava, era no Colégio Nun’Álvares.
Nos outros colégios não se chegou a saber.
Santa Catarina tem um edifício diferente,
menos exposto (só tem uma porta) e era o
único internato misto da Casa Pia, pois acolhia
grupos de irmãos. Portanto, comparado
com grandes colégios masculinos como o
Maria Pia, o Pina Manique e o próprio
Nun’Álvares, o Santa Catarina era o mais pequeno
e o mais resguardado, pelo que, para
qualquer pedófilo, não valia o esforço.
E tudo se desmorona. Porque parece suspeito que alguém da Casa Pia não tivesse ouvido falar das escapadelas nocturnas dos rapazes; da prostituição em Belém; do pular o muro para encontros furtivos. Nenhum destes acontecimentos era propriamente surpreendente para quem vivia na zona de Belém e Ajuda. A fama da Casa Pia (a má fama) precedia em muito a sua função de resguardo dos órfãos. Quem falasse com um dos moradores daquelas zonas, os veteranos, os que jogavam futebol no descampado onde agora se encontram o estádio do Belenenses e o museu de etnologia, não era estranho que o assunto prostituição surgisse associado à Casa Pia. E isto recentemente? Qual quê! De há quarenta anos a esta parte.
Eram conhecidos os malefícios de um internato de rapazes. Não constituia segredo para ninguém que os rapazes da Casa Pia, para ganhar umas massas, se prestavam a serviços sexuais com desconhecidos. Se isto tinha a dimensão de uma rede organizada de pedofilia, nem sequer estava em questão. Talvez não tivesse; talvez só mais tarde é que tivesse adquirido essa tenebrosa dimensão. Seja como for, a prática, e sobretudo, a sua sistematicidade, nunca tiveram em causa, nem nunca foram segredo.
Catalina desconhecia. O colégio onde leccionava, diz ela, não era aliciante para os pedófilos. E para os miúdos? Porque o recrutamento não era feito para além dos muros; era feito intramuros. Porque a iniciação era cumprida entre os pares e não com estranhos. Isto sabia-se e nem era preciso conhecer as estórias macabras da rede de pedofilia. Rede essa que se resume, afinal, a sete ou oito indivíduos entre indiciados e acusados. Parece pouco para uma rede de tão catastróficas consequências. Nem Catalina desmente o facto de a rede ter maior dimensão:
Ao contrário do que as pessoas pensam, a
Polícia não me avisava do que ia fazer, o que
era normal. Por acaso, estava a dormir na
noite em que ele foi preso. Ouvi dezenas de
nomes de vários abusadores cujos crimes
estavam prescritos (...)

e na primeira entrevista diz Catalina
Claro e de quem eu sei o nome e a polícia
também. Desde os anos 60 que há um leque
muito mais vasto do que é conhecido de abusados
e abusadores. Conversaram comigo
homens casados, pais de filhos e avós de netos!
Ainda agora, com esta confusão dos novos
códigos penais, vieram dizer-me: «Senhora
provedora, não desista porque isto foi
feito para abafar tudo».
e por que nunca foram eles anunciados? Os nomes, os tais dos crimes prescritos? Perseguição injusta? E a que Catalina moveu, e move ainda como podemos constatar, a Paulo Pedroso?
Nessa altura, sento-me neste tapete e morro
[a propósito de Paulo Pedroso]». Foi para mim um choque muito grande.
No dia a seguir, um aluno que me tinha falado
em Paulo Pedroso telefonou-me e disse-me
que tinha sido o dia mais feliz da sua
vida. Aquilo incomodou-me muito,mas perguntei-
lhe porquê. «Porque ninguém acreditava
em mim», respondeu. Depois apareceu
no meu gabinete e contou-me tudo, nomeadamente
descreveu-me sinais do dr. Paulo
Pedroso que eu ia sempre tentando desmontar:
«Mas isso podias ter visto numa piscina!
». E ele contrapunha: «E os sinais que estão
por baixo dos calções, como é?». E eu fui
murchando, como um balão que vai esvaziando.
Nesse dia, falei com amigos comuns,
que estavam desfeitos, como é evidente.Mas,
depois de falar com o rapaz, eu já não era a
mesma pessoa.
Talvez os sinais que se encontravam debaixo dos calções de Paulo Pedroso fossem particularmente caros a Catalina. De outra forma, por que razão dar uma tal relevância ao caso? E nem é que eu me incomode por aí além com o possível envolvimento de Pedroso; o que incomoda é a exclusividade que Catalina faz impender sobre Pedroso. Porquê? Por que não os outros nomes; os outros que prescreveram? Ou não teriam estes sinais identificáveis debaixo dos calções?
Catalina prossegue incitada pela repórter da Sol:
E o PS também já era diferente consigo?
Eu nunca fui do PS.Mas sim, a relação ‘arrefeceu’.
Algumas pessoas que até aí tinham
comigo uma relação quente e próxima fingiam
que não me viam ou diziam mesmo a
pessoas próximas: «Vamos por aquele lado,
que eu não quero cruzar-me coma Catalina».
O PS encarou o caso como um ataque
partidário. Como viu a forma como Paulo
Pedroso foi recebido na Assembleia
da República, depois da sua libertação?
Isso foi o maior escândalo político dos últimos
anos.
Está enganada. O maior escândalo político dos últimos anos é aquele para o qual ela continua a contribuir. O maior escândalo político dos últimos anos foi a singularização de Paulo Pedroso num caso que, por maioria de razão, envolveria dezenas de pessoas, muitas delas, eventualmente, de relevo público. Mas Catalina desconhecia. Desconhecia a prostituição – de que toda a gente estava a par -, nunca tinha ouvido falar de violações entre os miúdos – algo que não surge como propriamente inaudito em regime de internato -, nunca teve conhecimento, durante doze anos de funções na Casa Pia, do que se passava.
E, para se fazer História, é preciso não ter
paixão. O maior erro que eu cometeria
era escrever um livro: estragava tudo.
Porque recebo todos os dias contactos
dos miúdos, sou interpelada na rua todos
os dias por pessoas que não conheço
e para quem sou o rosto que defende
aqueles miúdos. Não sou neutra, mas
acho que nisto só se pode estar de um
lado: ou do lado dos abusadores, ou das
vítimas. Eu estou do lado das vítimas,
independentemente de saber quem são
os abusadores.

Tudo bem. Catalina não se apercebe que já está a fazer história. Será ela assim tão ingénua para não saber que a história actualmente se faz com os meios de comunicação social; que são estes que fixam a “realidade”? Catalina não quer fazer história; quer apenas criar uma associação de “cuidadores” das crianças. Apela à caridade para subsidiar esta associação. De caminho, dá uma entrevista em que o único nome que surge reiterado inúmeras vezes é o de Paulo Pedroso. Estranho, num caso em que “desde os anos 60 que há um leque muito mais vasto de abusados e abusadores”. A entrevista de Catalina vai fazendo história. A história de Catalina.

2 Comments:

Blogger brunopeixe said...

Primeiro o Cavaco enterrou definitivamente a revolução com estradas e empregos no estado. Assim que deram a revolução como morta, começaram logo a tirar o pouco que tinham dado, e a dar de volta ao grande capital tudo o que a revolução tinha colectivizado. Este governo vai dando golpes sucessivos no Sistema Nacional de Saúde ao mesmo tempo que financia a saúde privada. Idem para o ensino. Podia estar aqui o resto do dia. O que me espanta é que, sabendo tu destas merdas, venhas dizer que "O maior escândalo político dos últimos anos foi a singularização de Paulo Pedroso num caso que, por maioria de razão, envolveria dezenas de pessoas". I beg your pardon?

11:42 AM  
Blogger Nuno Castro said...

porra. é uma figura de estilo. serve para contrastar com a frase da catalina. não a levo mais a sério do que à da Catalina.
às vezes irritas-te por nada, caraças!
Mas qual revolução? A industrial?

3:09 PM  

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