Thursday, November 08, 2007

Nem tudo é negro


A China escolhe os membros mais dotados – politicamente entenda-se – para chefiarem os destinos da nação na próxima década. Dou comigo a pensar que o senso comum, aquele que por vezes diz alarvadidades, que quando afirma que os extremos se tocam, tem razão. Lógica. Mas que a história é madrasta e brinca com os sistemas mais resistentes à falsificação. Popper, o idiota de serviço do liberalismo de mercado, o justiceiro mascarado de ideológo ladrão – enfim, o intelectual ilustrado que ilustra que lá por se ser intelectual e filósofo pode ser-se um burro encartado. Porquê? Porque escreveu uma coisa mal parida chamada a Miséria do Historicismo. Na sua mente atarracada – assim como outro anão do pensamento político chamado Hayek – a coisa só podia funcionar de uma maneira: liberalismo uber alles! E liberalismo invasor, inundador. Não que ele ficasse por ali, mas que pela sua própria dinâmica de contaminação alcancasse tudo e todos numa enxurada de liberdades e de acções livres. Estava errado. Não se percebe se era um equívoco bem-pensante se era um disparate elaborado e deliberado. Pelo menos nunca me consegui decidir qual das hipóteses a mais provável. Mas também isso não retira um grama ao disparate. Uma coisa é certa Popper estava firmemente convencido que a sociedade aberta estava do lado de cá, e a sua oposta, a que chamaremos fechada, estava inexoravelmente do lado de lá. Mais, que esquemas planificados estavam fadados ao totalitarismo e que sociedades onde o magma da liberdade era cultivado estavam irrepreensivelmente no caminho da excelência e do bem-estar.
Não deixa de ser curioso os engulhos que a China, enquanto case study, provoca nos liberais actuais. Trata-se como é evidente de soluços teóricos sobretudo. Nada que perturbe verdadeiramente a pacatez dos objectivos estratégicos e das práticas selvagens. Mas em termos teóricos poderíamos considerar a China para os teóricos neo-liberais como a Rússia para Marx. Tendo em conta que as previsões apontavam para que a revolução eclodisse nos países de capitalismo mais avançado, a Rússia agrária foi um espinho na garganta da teleologia marxista; entorse que Lenine tentou resolver e cuja explicitação poderia ser considerada o cerne do marxismo-leninismo.
E quanto à teleologia liberal? Não terá acontecido mais ou menos a mesma coisa? De certa forma. Mas não com o mesmo sentido de falhanço; com a mesma sensação de traição histórica. Uma das razões para isso, é o facto de os liberais como Hayek, Oakeshot e Freedman nunca terem abraçado verdadeiramente a ideia de democracia. Pelo contrário, a ideia assim como o processo de democratização deixáva-os desconfortáveis; uma espécie de reacção maquiavélica que reiterava os enigmas do pesadelo da besta das sete cabeças: a populaça no seu estado bruto de turbulência. Por isso, Hayek que considerava que tudo podia ser resolvido pelos mecanismos do mercado, alimentava sérias reservas em relação à democracia. A proposta, pouco divugada pelos indefectíveis dos teóricos neo-liberais, era a de criação de um corpo que se auto-elegia retirado das elites de uma dada sociedade. Só assim, dizia o economista e filósofo, se garantiria o governo dos mais capazes e dos mais apetrechados para tomar as decisões correctas. É difícil entender por que razão o mercado pelo seu livre jogo resolve tudo e é a forma mais eficaz, menos a governação que se torna de maior eficácia, na concepção do autor, quando se coopta sucessivamente. Mas não são os mistérios da frágil consistência lógica das teorias que importam para aqui, mas simplesmente que, se há modelo que a China adoptou, esse foi o neo-liberal, assim como tinha sido delineado pelos seus principais mestres. A China surge portanto como o país neo-liberal par excelence. Não tanto pelo desregramento dos mercados, a falta de segurança laboral, a privatização das principais indústrias, a exiguidade dos direitos dos cidadãos, mas sobretudo porque conseguiu associar na perfeição um governo não-democrático com o mercado livre. Este era o sonho dos neo-liberais. Esta é a concepção última de uma sociedade de mercado livre. E aconteceu na China, pelas mãos do partido comunista, do comité central, e das suas elites que se cooptam periodicamente. A China é a materialização dos desejos hayekianos. Ironia da história ou desfecho necessário de uma sociedade neo-liberal quando levada a um extremo? Talvez o venhamos a saber ainda aqui para os lados da chamada sociedade aberta.

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