Saturday, December 08, 2007

Por que luta o Zé?


O excelente texto de Zé Neves só aparentemente coloca dificuldades de interpretação. É que o Zé é, salvaguardando as distâncias, o Negri português; e as críticas que podem ser apontadas ao segundo servem mutatis mutandis para o Zé Neves.
Há pelo menos dois aspectos muito mal esclarecidos no texto do Zé Neves – assim como se apresentam como problemáticos nos escritos do Negri.
O primeiro é a ideia do comum. Para o Zé como para o Negri, o comum é uma evidência. Mas se para o Negri, a produção do comum necessita da mediação de um factor externo às dinâmicas da luta – o amor – para o Zé, para quem o termo parecerá com certeza desactual e primário, nada produz o comum. Ou melhor, dir-se-ia que o comum surge no momento da luta; na própria contingência da acção da multidão. Convém reparar que na sua recusa anti-sistémica, o Zé aceita implicitamente a contingência da luta, isto é, a contingência da acção da multidão. Se para o Zé o horizonte é o da união transfronteiriça entre os grevistas do Vale do Ave e os grevistas chineses, este exemplo resolve o problema da contingência da luta. O exemplo é, ele próprio eficaz, na evacuação da inconsistência. O que para Negri não é assim tão evidente. Explicando melhor: para Negri existe uma correspondência, ou melhor, uma adequação entre, por exemplo, as lutas dos tute bianchi e dos camponeses de Namara. Segundo ele, são ambas expressões de uma defesa do comum através da qual a multidão reaparece. Mas será isto verdade? Só quando deixamos o plano analítico da contingência, e integramos estes dois momentos da acção da multidão numa realidade sistémica, as diferenças se tornam relevantes. Primeiro, se os tute bianchi protestavam por estarem excluídos das instituições da sociedade de consumo – a precaridade do vínculo salarial, a exploração das horas de trabalho, etc – e pretendiam portanto mais integração; os camponeses de Namara defendem um equilíbrio ecosistémico que existe por exclusão das dinâmicas dessa mesma sociedade de consumo. Assim temos que enquanto os tute bianchi querem ser incluídos – reivindicando capacidade para discutir os termos dessa integração, é verdade -, os camponeses de Namara querem permanecer excluídos. Donde, as lutas só surgem como similares na sua contingência, mas não na sua pertença sistémica.
Da mesma forma, os exemplos do Zé resolvem automaticamente esta inconsistência que pertence mais à crença do que à produção do social. Quando o Zé agarra nos exemplos dos trabalhadores chineses e dos trabalhadores do Vale do Ave, o que ele salienta é um mesmo vínculo com o trabalho, melhor, com o modo de produção capitalista, e isto difere pouco do internacionalismo operário da segunda internacional. Claro que pouco terá a ver com uma perspectiva pós-nacional da democracia – que, teria que se discutir com mais tempo, recuso a aceitar prima facie -, mas mais simplesmente com a identificação de classe segundo o lugar ocupado por esta no esquema de exploração capitalista. Em resumo, a luta que une, que unifica, digamos, a multidão, não só não

O segundo aspecto é a ilusão do comum. Aqui quer o Zé quer o Negri abraçam uma noção do comum que é no mínimo utópica; em última análise aproxima-se de um émulo do comunismo primitivo. Também aqui entra a noção de contingência contra o sistema. O comum, assim como é perspectivado, só na escala da contingência surge como “a voz de todos”. Quando esta é transposta para uma temporalidade mais duradoura, o comum tem que se organizar. Talvez a ideia de uma pecking order sirva para ilustrar o que quero dizer com a “organização do comum”. Ou então, o conceito de rotinização do carisma, segundo Weber. Neste caso, os momentos onde o comum surge como a “voz de todos” são momentos que se aproximam da revelação carismática. Só que estes, como bem viu Weber, não sobrevivem na instabilidade, terão que criar rotinas, rituais, em última instância tornar-se racionais. O carisma é justamente o que quebra com o adquirido, com a estabilização da regra; mas por isso tem uma temporalidade diferente. Acrescentemos à ideia de rotinização o conceito mais actual de pecking order – como pode o comum significar a “voz de todos” resistindo à constituição de uma pecking order? Nem Negri, nem o Zé Neves explicam. Na sua crença anti-sistémica, o Zé percebe a luta como o momento fulcral da constituição do comum. Mas para que luta o Zé? Ou trata-se de luta pela luta, um pouco à maneira da revolução permanente? Luta por melhores condições distributivas? Por mais justiça social? Por mais mercado? Por mais capacidade decisória? À partida, dir-se-ia que por todas elas, consoante a contigência das lutas; ou seja, consoante o cahier de dolences dos grupos reivindicadores. Donde, não há uma luta que se justifique mais do que outras – as lutas dos grupos reaccionários contra o aborto, são tanto expressão da multidão como as manifestações de Génova. Ou não sendo, resulta pouco claro por que razão, sendo elas uma manifestação do comum, não possuem o mesmo estatuto moral de outras lutas, que o Zé defenderia? Da mesma forma, as manifestações por mais mercado dos grupos conservadores na Venezuela podem (e devem) ser integradas na expressão da multidão.
Regressando à pecking order, esta aparece como princípio da institucionalização. O que institui o quê, é um pouco a questão do ovo e da galinha. A verdade é que não se conhece instituição sem pecking order, nem pecking order que não procure estabilizar-se numa instituição. Pode ser que o esforço seja justamente o de anular a pecking order – ideias como a de superação da liderança ou os desígnios libertários, enquadram-se nesta pretensão de destruição de toda e qualquer pecking order. Só que estamos perante uma contradição, porventura insanável: a luta visa impor uma pecking order – qualquer luta! Daí que a injunção zizekiana de uma alternativa bartlebiana se afigure mais consequente. A única forma de restituir o comum na sua forma não corrompida – para usar um termo que aparece amiúde no Negri, e que o Zé adopta quase com a mesma frequência – é a da recusa: I would prefer not to! (cont.)

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