Monday, December 03, 2007

Vícios públicos virtudes privadas


É uma inversão do célebre princípio de Mandeville. Serve para assinalar que a ideia segundo a qual somos livres de cacetear quem nos apetecer em privado desde que mantenhamos a compostura em público, dá pelo nome de hipocrisia. E nisso vejo-me forçado a reconhecer que Francisco José Viegas tem razão. Ou se leva a coisa até às últimas consequências ou se bane tudo e mais alguma coisa. A segunda deixa-me desconfortável. A primeira, é a que dá estalo, por isso parece ser a boa conduta – a que, possivelmente, levará à boa sociedade.
Porém, vejo-me obrigado a concluir que quer Daniel, na sua defesa de um hipocrisia metódica, quer FJV, no seu arrazoado mecânico (e já se tenta explicar porquê) estão enganados.
A melhor maneira de encarar o problema é deitar o bebé e água do banho, ambos pela janela fora! Começando pelo politicamente correcto. Para já, não é correcto – no sentido de, logicamente correcto ou correcto na prática – reduzir qualquer questão de discriminação aos supostos exageros do politicamente correcto. É uma arma de arremesso eficaz para o lado que não está verdadeiramente preocupado com as reais consequências da discriminação. Para além de que se torna fácil argumentar com um artifício de ocasião; e isto quer seja para detractores quer para defensores. Diz o Daniel que, por não conhecermos o interlocutor, ou o mais o público mais vasto, temos que ter em conta que podemos estar a ferir susceptibilidades. E diz mais: diz que a distância é a mãe de todas as curas. Isso é verdade até certo ponto. Por mim, gosto mais de pensar que são os choques que nos levam à cura – estilo terapia de choque. Não serve para tudo, é verdade. Mas serve para as categorias irritantes. Melhor: serve para exorcizarmos as categorias irritantes. Melhor ainda: serve para convivermos, sem as sacralizar, com as categorias irritantes. Num mundo sem categorias, não existira humor – fosse ele público fosse privado. Quase se diria que o humor existe porque as categorias são profanáveis, e que o bom humor profana. Não vale a pena pensar num humor asséptico; tal coisa não existe. Por essa mesma razão, é bom que não exista um espaço público asséptico. Mas seja para qualquer acepção: para católicos, para judeus, para o que for. Todavia, vejo-me forçado, agora, a dar razão ao Daniel, a vida é mais madrasta. Uns controlam o humor enquanto outros se vêem constrangidos a obedecer às suas categorias. Não são as minorias que o controlam, porque senão, não seriam minorias. Os negros – e preocupa-me sempre quando uso este termo, com o seu quê de esclavagista, de sertão -, não contam anedotas sobre brancos. Se calhar até contam, mas não passam na televisão.

O problema está, porém, que o objecto desta discussão não existe. Discutem uma anedota – ou a possibilidade de parodiar algo – quando nem uma coisa nem outra suscitaram a discussão. Ao contrário do Maradona, na sua erupção heterossexual, com caralhos à mistura (desconfia sempre de quem muito repete o termo) e brejeirices de menino de cascais (no que faz lembrar aquele tipo que escrevia no DN, com uma crónicas imbecis sobre como ser macho – mas que eu até achava piada), não acho que isto tenha nada a ver com defesas de orgulho seja ele gay ou hetero. Contudo, já disse o que tinha a dizer aqui.
O que é quase histriónico é este marialvismo dos novecentos? Oitocentos? Secular!, digamos, do FJV e do outro, que deu a ideia: “hetero que é hetero não precisa de mostrar que é hetero”. Para além da imensa boçalidade da frase, o que quererá isto dizer? É de macho! Não sei em que mundo vivem estes senhores – aposto que é Portugal, high society, início de século XXI - mas com conversa desta, não tarda e terão que mudar para orgulho gay. É que isto já não se usa.
Não deixa de ser curioso que por trás da frase “quem é hetero não precisa de mostrar que é hetero” surge uma intenção defensiva. Homem que é homem sabe que é homem – e isto são naturalizações, melhor dizendo, são insistências, digamos que, ao limite do absurdo, homem que é homem nem pronunciaria a frase. É que a mera frase faz impender a dúvida. As certezas têm que ser sempre registadas em fórmulas que condensam, e reiteram, a trivialidade da dúvida.

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