Friday, November 30, 2007

O que é um cínico?

Não se responde directamente. Será melhor começar por hiperbolizar a explicação. E que melhor maneira do que recorrer a exemplos? Um cínico numa revista brasileira. A revista chama-se Veja e dizem outros que é a melhor do mundo. O tal cínico discute em termos “cafagestes” – sejamos protocolarmente CPLPs – a conspiração da “canalha” esquerdista sobre as cartas do biógrafo de Che Guevara, o jornalista Lee Anderson. Vale a pena transcrever as cartas, porque a polémica e as acusações instalaram-se em torno do conteúdo da mesma. A carta, como seria de esperar, conheceu ampla circulação na internet. Tomei conhecimento dela, primeiro aqui (blog a que se aconselha a leitura se se quiser respirar para além do fedor de uma Atlântico ou de uma Veja – as melhores revistas do mundo, nunca esquecer). Depois foi o Daniel a publicá-la; a carta do Lee Anderson, e a gerar uma porfiazinha, como são normalmente as que acontecem entre ele e a Atlântico, e esta última que, pressurosamente deu a conhecer o artigo cordato, bem argumentado, e corajoso, do aldrabão da Veja.

DearDiogo,
I was intrigued as to why I never heard back from you when I replied to this email you sent me (see below). And then I saw the article you wrote in Veja, which was the most one-sided perspective on a contemporary political figure I have seen in a long time. It was precisely this kind of highly-editorialized reporting, either hagiographically in favor, or -- as in your case -- demonizingly against, that led me to write my biography. I sought to put some flesh and blood on Che’s overly-mythified bones in order to understand what kind of person he really was. What you have written is an OpEd piece camouflaged as a piece of accurate journalism, which, of course, it is not. Honest journalism, to my knowledge, involves incorporating different sources of information and perspectives, and attempting to place the person or situation you are writing about into context, so as to educate your readers with at least a semblance of objectivity. What you have done with Che is equivalent to writing about, say, George W. Bush, and relying almost entirely on quotes from Hugo Chavez and Mahmoud Ahmadinejad to bolster your own point of view. I am, glad, in the end, that you did not follow up with me for the interview, because I would have spoken to you in good faith, under the mistaken assumption that you were a serious journalist, and an honest colleague. And In that assumption, I would have been sadly mistaken. Please feel free to publish my letter in Veja if you wish.

A seguir a carta “petralha”, segundo o jornalista da Veja – um dos melhores do mundo, nunca esquecer – que circulou pelos blogs da “canalhada” esquerdista:

A VERSÃO PETRALHA QUE CIRCULA NA REDE (segundo o homúnculo)
Caro Diogo,
Fiquei intrigado quando você não me procurou após eu responder seu email. Aí me passaram sua reportagem em Veja, que foi a mais parcial análise de uma figura política contemporânea que li em muito tempo. Foi justamente este tipo de reportagem hiper editorializada, ou uma hagiografia ou – como é o seu caso – uma demonização, que me fizeram escrever a biografia de Che. Tentei pôr pele e osso na figura super-mitificada de Che para compreender que tipo de pessoa ele foi. O que você escreveu foi um texto opinativo camuflado de jornalismo imparcial, coisa que evidentemente não é. Jornalismo honesto, pelos meus critérios, envolve fontes variadas e perspectivas múltiplas, uma tentativa de compreender a pessoa sobre quem se escreve no contexto em que viveu com o objetivo de educar seus leitores com ao menos um esforço de objetividade. O que você fez com Che é o equivalente a escrever sobre George W. Bush utilizando apenas o que lhe disseram Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista. No fim das contas, estou feliz que você não tenha me entrevistado. Eu teria falado em boa fé imaginando, equivocadamente, que você se tratava de um jornalista sério, um companheiro de profissão honesto. Ao presumir isto, eu estaria errado. Esteja à vontade para publicar esta carta em Veja, se for seu desejo.
Finalmente, o tal sujeito, o melhor jornalista do mundo, o do chapelinho de palha à pintelho pessoano, disfere o seu golpe e brame: a tradução é uma falsidade; a esquerda canalha mutilou, digo mais, reciclou, a carta original de Lee Anderson.
E então,

O QUE ELE DE FATO ESCREVEU
Caro Diogo,
Estava intrigado de não ter recebido notícias suas depois de ter respondido ao e-mail que você me enviou (segue abaixo). Aí eu vi a reportagem que você escreveu na VEJA, a mais unilateral perspectiva de uma figura política contemporânea que vi em muito tempo. Foi precisamente esse tipo de reportagem super-editorializada, ou uma hagiografia a favor ou – como é o seu caso – uma demonização contra, que me levou a escrever a minha biografia. Procurei pôr um pouco de humanidade na figura supermitificada de Che para entender que tipo de pessoa ele realmente foi. O que você escreveu foi um texto opinativo disfarçado de jornalismo cuidadoso, coisa que evidentemente não é. Jornalismo honesto, segundo meus critérios, implica incorporar diferentes perspectivas e fontes de informação, uma tentativa de pôr a pessoa ou situação sobre as quais se escreve em seu contexto com o objetivo de educar os leitores com um mínimo de objetividade. O que você fez com Che é o equivalente a escrever, digamos, sobre George W. Bush confiando quase inteiramente nas aspas de Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista. Estou contente, por fim, que você não tenha insistido comigo para fazer a entrevista. Eu teria falado com você de boa fé, na suposição errada de que você fosse um jornalista sério, um companheiro honesto. E, nessa suposição, eu estaria tristemente errado. Esteja à vontade para publicar esta carta na VEJA se desejar.
Cordialmente,Jon Lee Anderson.

O melhor jornalista do mundo, para além do estilo carroceiro e seboso com que nos brinda periodicamente, não conhece corno da língua inglesa ( e bem assim, quem o secundou na interpretação); ou melhor, conhece, mas inventa umas questiúnculas, uns preciosismos, que ele, com os auspícios da Veja e do Webster’s dictionary para otários, lá parturejaram.
Atente-se no texto. Diz o melhor jornalista do mundo que a versão “petralha” traduziu one-sided por “parcial”, mas devia ser “unilateral”. Escapa-se-me a diferença; mas a existir apenas reforça o argumento da primeira carta, dado que, aceitemos, uma versão parcial ainda assim é mais atenuada do que uma unilateral. Infelizmente, a burrice, ou cinismo, do jornalista não encontra refúgio no inglês, e lá temos que de facto, uma melhor tradução para one-sided será “parcial” visto que para unilateral temos a literalmente traduzida “unilateral”. E continua.
Marra seguidamente com o "flesh and blood", dizendo que é um insulto traduzir literalmente por “pele e osso”, no que o autor teria por intenção escrever "humanidade". “Flesh and blood”, resulta em “humanidade”, segundo esta figura dos marretas brasileiros. Por exemplo, o seguinte poema de Withman do Leaves of Grass

Treacherous tip of me reaching and crowding to help them,
A minha humanidade (My flesh and blood) playing out lightning to strike what is hardly different from myself;

Ou então, uma rápida tradução do poema de Eliot, The Hipopotamus

THE BROAD-BACKED hippopotamus
Rests on his belly in the mud;
Although he seems so firm to us
He is merely flesh and blood.

Flesh and blood is weak and frail,

ficaria, segundo o patusco jornalista da Veja

O corpolento hipopótamo
Deitado de borco na lama
Embora nos pareça tão seguro
Não é mais do que “humanidade”

A “humanidade” é fraca e frágil
e por aí afora...

E assim temos que para o melhor jornalista do mundo, um hipopótamo vira humanidade. Não é caso para espanto quando jornalista vira hiena.
Mas onde o rapaz mostra os seus dotes anglófilos é nesta peça de supina originalidade: onde se lê “camouflaged as a piece of accurate journalism”, o melhor jornalista do mundo vê “disfarçado de jornalismo cuidadoso”. Ora "accurate" não é cuidadoso e estará com certeza mais próximo do “imparcial” pois pode ser, com vantagens, traduzido por “correcto”, “certo”, “exacto”, etc. "Accurate figures", não são com certeza “números cuidadosos”. Mas accuracy é o que mais falta a este trambolho de chapéu de palha.
Finalmente, a piéce de resistence, o melhor jornalista do mundo, traduz “that you did not follow up with me for the interview” pelo insinuante “não tenha insistido” pressupondo-se que Andersoon estaria muito interessado na entrevista. Parece óbvio que o follow-up não tem nada a ver com “insistência”, mas simplesmente com “não prosseguiste” a entrevistar-me. E chega.

Com jornalistas desta qualidade, com jornalismo deste quilate, como é que podemos estar seguros daquilo que lemos? A deontologia parece ser um termo que se utiliza a bel-prazer, quando dá jeito, e que se deixa no waste bin quando não serve. Porém, se com a deontologia a esperança morre na praia, podemos ainda salvar o inglês. Propõe-se uma oferta de um dicionário Português-Inglês da Porto Editora, claro! (passe a publicidade).

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