Thursday, November 29, 2007

Subterrâneos

Há uma miríade de empregos invisíveis. Não cabem na definição de profissão; não prometem carreira, nem desafios. São empregos cujos resultados encontramos espalhados pela cidade, mas que não são efectuados por rostos; ou melhor não lhes conseguimos atribuir uma autoria identificável. E no entanto, lá aparecem, diariamente, a sustentar as nossas comodidades, os nossos caprichos, os nossos desejos. São efectuados por trabalhadores que só se vêem fugazmente, em encontros não planeados. Se calhar passar por eles, encolhemo-nos, sofredoramente: um mal de consciência – como podem estes tipos fazer isto? O que retiram daí? E outras tantas interrogações confortáveis que só nos assolam quando nos dispomos a uma filantropia desportiva. Acontecem pela manhã, estes encontros com vultos a que mal definimos os contornos. Uns limpam as vitrinas dos outdoors, os retábulos publicitários, o vanguardismo imagético da sociedade de consumidores (e mesmo esta fórmula parece pirosa o suficiente para agradar ...) outros, limpam as salas onde trabalhamos, para que quando chegamos ao escritório as migalhas do dia anterior tenham desaparecido; passe de ilusionismo cujo prestígio (e aprendi no outro dia na grande escola de Holliwood, que o truque tem por nome o prestígio) consiste em fazer desaparecer o “mágico” antes que chegue o público. Trabalham em escritórios; trabalham nos grandes escritórios das grandes capitais. Têm horários diferentes, é verdade. Revezam-se com o escol do mundo dos negócios: os verdadeiros trabalhadores; os que têm honra de capa de revista e de artigos de fundo sobre a sua profissão. Os outros, os que ocupam os escritórios como almas penadas que o dealbar açoita, é bom que fujam antes que marchem os exércitos dos executivos – aqueles que executam! E estes marcham em diferentes direcções: no metro, nas estradas, nos transportes públicos, e a pé ou noutros meios. Mas seja qual for a direcção, importa que o homem dos outdoors já por lá tenha passado, enquanto o exército retoma o vigor do dia anterior, se prepara para marchar e para guerrear. Importa que as bandeiras tenham sido desfraldadas, no metropolitano, nas paragens dos autocarros e eléctricos, nos telhados dos prédios: miríadas de bandeiras a assinalarem castelos visíveis, supostamente visíveis, forçosamente visíveis, a contrastar com as miríades de empregos que se tornaram invísiveis por debaixo do pano desfraldado. É para nós, este esforço engalanado que a cidade piamente oferece, pelas mãos dos indiferenciados; os do subterrâneo, os que encontramos de raspão, e apre!, que se faz tarde, porque o contacto é pestilento. Pensamos neles; claro que pensamos, claro que dedicamos um quinhão da nossa atenção a quem erije a muralha diariamente. Claro que gostamos de vermo-nos reflectidos nos vidros translúcidos das estações de metro – aqueles que prometem a terra e o céu e que nos ofertam a vida eterna. Claro que os tampos das nossas secretárias, ou a retrete onde defecamos, são elementos funcionais para os quais dedicamos grande parte das nossas vidas: trabalhamos, defecamos; trabalhamos, defecamos. E é claro que tudo deve estar assepticamente preparado. Não queremos lixo! Não queremos tocar no lixo! Pagamos para que nos tirem o lixo da frente, para que possamos prosseguir com existências impolutas, sem contacto com o lixo.
Do outro lado, no “fim da noite”, regressam outros tantos a casa. Limparam as ruas, os escritórios, os outdoors. Deixam-nos a cidade limpa e acetinada, própria para consumo.

1 Comments:

Blogger David Lourenço Mestre said...

Muito bom o artigo... posta, pois o estabelecimento pertence à bloga

6:00 PM  

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