Wednesday, May 17, 2006

Populus malefacturum


A cabeça das pessoas tem caminhos que tal como os desígnios do senhor são insondáveis. Perguntemos a alguém suficientemente ilustrado e conhecedor do que se vai passando no mundo qual é a sua opinião sobre os novos regimes da América Latina. A resposta não tardará e possui sempre o mesmo conteúdo: são regimes populistas. Se quisermos aprofundar as razões pelas quais o rótulo surge tão extemporânea quanto automaticamente (o que não implica uma investigação sobre as razões da sua eficácia, coisa que é trabalho de filósofos e retóricos do linguistic turn) comecemos por perguntar, armados de cândida inocência, por que razão são estes regimes populistas? A resposta a esta segunda pergunta ainda se fará menos esperar do que no primeiro caso: porque tomam medidas populistas. A armadilha da circularidade do argumento está montada e torna-se, como num passe de ilusionismo, inescapável. As medidas, claro está, são populistas porque são tomadas por regimes populistas. Portanto, o populismo das medidas não é tanto identificado pelos seus efeitos ou motivações como pelo lugar que foi codificado a priori para estes regimes. Assim, a medida implementada pelo governo de Lula da Silva no sentido de facultar uma “merenda” gratuita a todos os alunos do primeiro ciclo educacional é populista, mesmo que pretenda contrariar os altos níveis de subnutrição das crianças em algumas regiões do Brasil. Apesar de parecer um perfeito contrassenso que se considere populista uma medida com uma tal importância, a designação subsiste contra todo o apelo da coerência e da bondade moral. Porquê? Porque o governo é populista.

Este lugar preconcebido do populismo espelha uma imagem distorcida da acção política. Por exemplo, reduzir consideravelmente os salários dos membros do governo como fez Morales na Bolívia é populismo, mas constituir uma task force para elaborar uma imagem mais consistentemente anti-imigração de acordo com os resultados de sondagens recentes como fez Sarkozy em França, é estratégia política. Distribuir terras por agricultores miseráveis como fez Chavez na Venezuela, é populismo; dizer que a culpa dos atentados terroristas se deve à falta de integração destes na Europa como fez recentemente o governo dos Estados Unidos, é defender os interesses no exterior. Nacionalizar empresas petrolíferas para controlar o preço do petróleo e beneficiar internamente dos avultadíssimos lucros da exploração do mesmo, é populismo; destruir um país para ganhar mais quota no controlo da venda do barril e fazer os preços subir até a um máximo, é estratégia económica. Controlar policialmente manifestações anti-governamentais (coisa que eu não concordo, mas só até determinado ponto) é populismo e tirania; implementar o patriotic act que faz de qualquer cidadão americano simultaneamente um potencial suspeito de actividades subversivas e um delator ou mandar a polícia carregar e disparar contra manifestantes anti-globalização, como na Itália de Berlusconi, é defender a segurança interna. Aceitemos, a bem do argumento, que para cada par de intervenções aqui considerado se encontram facilmente elementos populistas. Mas enquanto um dá o outro sonega; enquanto um distribui o outro reprime e destrói; enquanto um se mostra o outro dissimula. E isso faz toda a diferença.

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