Intellectus sacrificium intellectus (in Minima Moralia)
Os rankings são uma doença social sobre a qual chegaremos um dia à conclusão que provocam mazelas irreversíveis.
O ranking dos top 100 intelectuais públicos (seja lá o que isso for, mas os organizadores parecem saber) publicado pela Prospect mancomunada com a Foreign Affairs é bem disso o reflexo: o apodrecimento gradual da faculdade de juízo.
Um intelectual público, como critério que é necessário explicar para que se compreenda a natureza da selecção, é um intelectual com intervenção pública. Como é costume nas coisas que envolvem rankings, ficam por esclarecer os principais termos – o que se entende por público e por intelectual. Isto não causou grande rebuço quer ao júri quer aos participantes que, com grande desassombro, amalgamaram economistas com filósofos, cientistas políticos com escritores, políticos com biólogos. Quererá então dizer que estas áreas não se cruzam? Ou seja, quererá com isto dizer-se que não há economistas intelectuais? Claro que não. Mas o que parece ter presidido à escolha foi mais o factor “público” do que “intelectual”. Eximo-me à complexa discussão de saber o que deve ser considerado um intelectual; limito-me a dar exemplos que servem, em minha opinião, para sinalizar as possíveis diferenças entre impacto público e ser-se intelectual. Por exemplo, quanto aos economistas, podemos considerar Charles Boyer um intelectual, ou um Roemer ou um Elster; mas não um Gary Becker. Já concordo com Fernando Henriques Cardoso; mas com muita dificuldade engulo um Paul Krugman. Seguindo pela lista deparamos com um sobejamente estranho par, uma antítese que só os rankings, no seu terraplenar inerente, conseguem conjugar, o par Hobsbawm/Wolfowitz. Vá lá que Hobsbawm ficou à frente de Wolfowitz – mas considerá-los sequer em paridade para um julgamento segundo os mesmos critérios só pode ser brincadeira de mau gosto. Deslizando pelo ranking encontramos Zizek num modesto, mas não menos honroso, 23º lugar. Aqui já estamos cagados – quem é que no seu perfeito juízo se lembraria de colocar o Zizek atrás de um Thomas Friedman ou de um Fukuyama? Esqueçamos o impacto público, que de qualquer das maneiras é subjectivo e de difícil avaliação, e concentremo-nos na prática intelectual. Zizek é um intelectual de pleno direito; Fukuyama e Friedman são divulgadores, quanto muito polemicistas.
Mais abaixo, depois de atravessarmos uma floresta de nulidades, aparece o pobre Sloterdijk no 78º lugar! É claro que ficamos contentes que o público mundial considere o Salman Rushdie – e já agora o Papa Bento XVI – intelectuais maiores do que Sloterdijk. Enfim, os rankings servem para o que servem (para nada!), as sondagens são o que são (uma treta!) os estudos de opinião valem o que valem (o que se pagar!). Todavia, há pelo menos dois sintomas neste ranking que são preocupantes. Primeiro, um evidente privilegiar de economistas, que subitamente, não estando em causa a sua qualidade e brilhantismo na economia, são alçados ao estatuto de intelectuais. Milton Freadman podia ser muita coisa, mas intelectual não seria uma delas. Segundo, o impacto que têm, quer aqueles que têm blogues – o caso Becker-Posner é sobejamente ilustrativo – quer aqueles que são conhecidos pelos chamados livros de divulgação – os casos Dawkins e Chomsky (respectivamente terceiro e primeiro lugares) são paradigmáticos. Sucede que dantes ser intelectual era sinónimo de difícil, intricado, eclético, gerador de perplexidades, incómodo até, e certamente exigente. Nenhum dos que ocupam os primeiros cinco lugares do ranking pode ser integrado nestes pressupostos.
Não quer isto dizer que o intelectual tenha que pertencer a uma seita tão impenetrável quanto a maçonaria. Mas devemos esperar que ele integre um conjunto de referências, que articule um conjunto de teorias e ideias, que façam com que a sua leitura e interpretação seja, pelo menos, exigente. Ora o que as escolhas mostram é que foi justamente a acessibilidade e legibilidade que imperaram como critérios de selecção. O impacto público parece facilmente associar-se à capacidade de divulgação. Portanto, um Foucault – se fosse vivo – embora com uma vida de intervencionista nas causas públicas, como não tem um estilo divugável, nem sequer apareceria neste ranking. Se o intelectual com impacto público é o que vende no aeroporto, então vale mais a pena vender simplesmente no aeroporto – o caminho sempre é mais curto.
p.s.- e quais seriam as suas escolhas?
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