O tratado destratado
Gosto da toada dialogante que o Bruno tem imprimido ultimamente ao “qualquer”. O ad hominem substitui assim o ad topica (bem, só aqui já estão dez, vinte, vinte?, trezentos pontos!). Ou seja, a personalização dos argumentos não ganha em claridade, nem acrescenta grande coisa. Isto para entróito.
O tratado constitucional e a reacção que ele suscitou, segundo o Bruno, são relevantes vitórias da esquerda. Não vitórias virtuais, mas materializadas nas urnas. Neste sentido, os referendos francesas e holandeses expressaram uma reacção negativa à, putativa, neo-liberalização da Europa, e uma, putativa, vitória da esquerda. Apetece dizer, quão ingénuo se consegue ser? Se assim fosse, ficaria por explicar como é que nestes países, os tais cidadãos que foram tão pressurosos no seu voto de protesto contra a Europa, votaram posteriormente, massivamente, em governos conservadores. Donde, talvez esteja a ser demasiado céptico, mas desconfio que a vitória não foi da esquerda. Para além de que os resultados revelam outra coisa. Revelam algo que alguns estudiosos do comportamento político há muito sabem: que os comportamentos eleitorais não são racionais. Por isso tenho sérias dificuldades em detectar aqui uma vitória da esquerda – apenas a própria esquerda sonhou com ela.
Segundo, para um leitor aprimorado de Zizeks e companhias, é estranho que te faça confusão como é que o tal “arco de poder” – que não deve ser o de “Santana” – possa dar indicações de uma coisa, pretendendo exactamente outra. A isto costuma designar-se maquiavelismo e no Príncipe ficaram os ensinamentos essenciais sobre esta arte. A palavra “Constituição” era pesada de mais para certos ouvidos. A ideia segundo a qual o que esteve em causa entre uma coisa (Constituição) e a outra (Tratado) era o conteúdo é fruto de uma deficiente leitura dos acontecimentos. Sim, é verdade que o tratado é a constituição recauchutada – mas sem “Constituição”. Envio-te um link para uma senhora que tem tido coisas interessantes a dizer sobre esta diferença e sobre o papel simbólico das constituições. Em linguagem culinária, a “Constituição” era servir o almoço quente, o tratado, é o mesmo prato requentado. Mas há uma questão de fundo que o Bruno simplesmente deixou em aberto.
A oposição à constituição, ou ao tratado, não tem que ser expressa através de um referendo. Aliás o referendo significa uma consulta posterior; mas porque não utilizar um plebiscito e perguntar às pessoas se elas querem um tratado, seja lá ele qual for? No limite, o que estaria a ser posto em causa era a própria Europa. E não há problema nenhum em o fazer. Mas se for assim, a posição deve ser explicitada e não andar com rodriguinhos para referendos do tratado (mesmo a nível de implicações individuais). Influenciar o conteúdo do tratado? Os europeus deviam ter pensado nisso quando votaram uma maioria conservadora para o parlamento; ou quando votam governos de direita para os governos nacionais. É que a Europa é uma estrutura em pirâmide; por isso convinha habituarmo-nos à responsabilidade envolvida por cada escolha, de escala menor, que fazemos.
Finalmente, e não considero que seja de somenos, a complexidade do documento. Não se trata de referendar um acto, como foi o aborto (e eu considero que nem o aborto devia ter sido referendado). Trata-se de um documento que lança o travejamento legal para a capacidade decisória de uma organização, neste caso, transnacional. Atrás já disse que, politicamente, o seu alcance é menor. E por isso mesmo não constitui nenhum ataque à soberania, que foi o que suscitou o meu post que devia ser lido em conjunto com o artigo de AM no DN. Mas pensar que alguém tem capacidade para se pronunciar sobre um documento destes, que ainda para mais, reenvia sistematicamente para outras resoluções que nele não estão contidas, é gozar com a malta. E iam dizer o quê? Que não querem uma europa neo-liberal? Só se acharem que ela deixa de se fazer por chumbarem um tratado!
Já agora, por que é que não se referenda a Constituição nacional?
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