Monday, October 01, 2007

Multiculturalismo unbound

Os dois comentários ao meu post sobre o Tuguismo - esse neologismo cunhado por mim e que fará ainda carreira na blogosfera e eventualmente no mundo da ciência – revela bem a dualidade com que defensores e críticos do multiculturalismo procuram (des)caracterizá-lo. Evidenciam para além disso que, talvez inadvertidamente, quer detractores quer apologistas, não conseguem evitar aquilo que gostaria de designar por armadilha cultural.
O primeiro comentário é uma aproximação à nação na esteira da sua concepção orgânica que, posteriormente, confunde os termos – como convém sempre a este tipo de retórica da perversidade – relegando, paradoxalmente, o multiculturalismo para o lugar de agente do nacionalismo. Curiosa equação, não fosse ela devedora em linha directa à noção novecentista de coincidência inextrincável entre o Volk e o ethos. O romantismo alemão e a noção metafísica de Volkgeist (Herder) estão bem presentes nas entrelinhas desta enunciação enfática do “ser” da nação.
Que esta possa ser reformulada em termos de multiculturalismo é apenas um truque, cujos termos se enunciam da seguinte forma: a coincidência entre e Volk e ethos encontra-se ameaçada pela irrupção da diferença desses mesmos ethos no espaço primordial do Volk. É claro que a premissa de que se parte é que todos os outros ethos possam ter o seu próprio Volk que entra inapelavelmente em concorrência com o Volk original. Assim como Herder pensava que cada Volk tem o seu Geist, e que este não só não é fungível com outros como quando compartilhado perde o seu carácter autêntico. É este receio da deturpação, em última análise, da inautenticidade do “carácter nacional” que ecoa no comentário de DLM. As afinidades com o catolicismo e a doutrina da pureza da alma são evidentes, para além de que derivadas da própria subsumpção herderiana de uma “alma” única reflectida na cultura do Volk.

Confusos? Se lembrarmos a recente obsessão com a avançada islâmica na Europa percebemos que quem pretende recuperar o Volk são os liberais conservadores e não os multiculturalistas. Simplesmente porque são os liberais conservadores que por detrás do manto diáfano do universalismo liberal brandem as bandeiras do Volkgeist. Veja-se a este propósito a exposição de Pacheco Pereira sobre a necessidade de a Europa se construir contra o Islão. Nesta construção, é óbvio que existe uma identidade primordial, cultural, um ethos, que importa perservar de toda a contaminação. A questão é: quando é que ele não foi contaminado?
A mesma asserção de pureza perpassa pelos ataques ao multiculturalismo e neles se inscrevem quer ideias como a de Britishness como o seu equivalente português, de “portugalidade”. O fantasma de Fichte e do nacionalismo não reemerge com o multiculturalismo, como pretende DLM em mais uma versão da tese do risco iminente, porque o multiculturalismo não propugna nenhuma coincidência inextrincável entre Kultur e Volk. Pelo contrário, se alguma coisa, ele perturba esta mítica coincidência, expondo-a em toda a sua contingência. É justamente porque esta filiação não é mais do que contingente que o nacionalismo se afadiga em naturalizá-la através dos inúmeros mítos da sua origem e trajecto unívoco. Como lhe chamou Anderson, o nacionalismo é um artifício operativo na construção da comunidade imaginada. O que esta construção faz é elaborar uma versão transcendente das solidariedades horizontais coincidentes no espaço delimitado por um Estado. Ora por aqui vemos o quão desadequado é o anátema de nacionalista quando aplicado ao multiculturalismo. Porque se alguma coisa, o multiculturalismo fractura as tais pressupostas “solidariedades horizontais” interpelando-as quer na sua contingência quer na sua hibridez.

Mas há um segundo aspecto, porventura bem mais importante do que a retórica do descentramento das identidades. Trata-se do facto de as sociedades actuais serem empiricamente multiculturais. Aqui servir-nos-ão os conceitos de multiculturalismo fraco e forte elaborados por Grillo. Grosso modo, o multiculturalismo fraco é o que existe num mundo globalizado, ou seja, a coexistência de grupos com origens culturais diversas no mesmo espaço de cidadania. Note-se que se trata de coexistir, sem por isso reivindicar o ajustamento dessas mesmas pertenças. Neste sentido, as sociedades multiculturais são actualmente quase todas, e só aquelas que pretendem expurgar esta componente de hibridização – através por exemplo de limpezas étnicas – se podem considerar fora deste conjunto abrangente. No segundo sentido, o de multiculturalismo forte, a opção política pelo ajustamento, ou pelos múltiplos ajustamentos e concessões, é tornada explícita e passa a fazer parte da agenda discursiva do espaço público; é aliás em torno da delimitação das fronteiras entre espaço público e privado que quer as suas medidas multiculturais quer as estratégias dos próprios grupos minoritários se organizam. Por conseguinte, as sociedades que são multiculturais no sentido forte são relativamente poucas quando comparadas com as sociedade multi-culturais. Portugal, por exemplo, é uma sociedade multicultural no sentido fraco, mas não o é no sentido forte, como é o Canadá. O que não significa que não se depare com o mesmo tipo de dilemas com que as sociedades do segundo tipo se confrontam. Mas ao fazê-lo, organiza as suas respostas de outra forma, quer no evitar do termo multiculturalismo e na sua substituição pela mais anódina interculturalidade, quer no mito da inexistência de racismo. Há, arrisco, uma espécie de cegueira comprometida nesta insistência.

1 Comments:

Blogger David Lourenço Mestre said...

Nuno, a resposta:

A europa vive sob o terror do espectro do racismo. Imersa no medo de si propria. Na culpa pos-colonial. E no relativismo epistemologico. Este degenerou misteriosamente no relativismo moral. Convem notar, relativismo epistemologico nao é relativismo moral. Podemos compreender as particularidades culturais: a sharia, o apedrejamento até à morte, a excisao feminina, o canibalismo. Mas nao aceitamos o seu comportamento. E nao sao legitimas sob a herança do iluminismo. Mas vivemos numa sociedade à deriva, mutilada nos valores, sem padroes morais substantivos, cuja unica conviçao moral é a negaçao de padroes e a perseguiçao intelectual a quem os tem. Estes sao entao sumaria e intolerantemente acusados de irracionalismo pedestre e nao esclarecido ou nao iluminado pela filosofia sofisticada do relativismo. O relativismo no campo da ciencia social significa uma abertura a que nada abdica da natureza e dos fenomenos do jogo social humano. Porem há um significativo contraste entre a humildade aparente do relativismo da sua oculta arrogancia pedante. O relativismo rejeita o absolutismo inerente ao ocidente. Enfrenta a possibilidade de uma etica racional e universal de um direito comum, com indignaçao ou desprezo, e acusa o iluminismo de provincialismo. Mas os individuos reunem-se para decidir o seu futuro comum. Reconhecem que estao juntos e que dependem um dos outros, o que os obriga a decidir como deverao ser governados, ao abrigo de uma jurisdiçao universal na busca do seu bem estar e o minimo de frustaçoes. O relativismo abre portas na melhor das hipoteses a um pluralismo de morais substantivas, e na pior das hipoteses ao caos legal. O relativismo escreve pois a historia do multiculturalismo. O relativismo declara objectivamente que civilizaçao nao é superior ao canibalismo. E o multiculturalismo defende que o homem civilizado e o canibalista podem coexistir na mesma sociedade. Que o homem civilizado conduza a sua vida e que ainda acabe no tacho do canibalista é essa a essencia do particuralismo cultural do canibalismo. Nao o devemos criticar, a sociedade deve contemplar a complexidade de factores socio-culturais da comunidade canibalista e o estado deve a proteger da grelha legal do homem civilizado. A obsessao pelo particularismo identitario e comunitario origina um desprezo pelos principios constitucionais e pelo corpo de leis que apenas reconhece individuos. Os multiculturalistas exigem que a lei deve reconhecer direitos para culturas e comunidades. Entre elas a dos canibalistas. Se no forno do canibalistas está o peito de um cidadao é um direito que deve ser consagrado pela personalidade juridica que especifica a comunidade canibalista. O multiculturalista, tal como a nemesis do nacionalismo, Fichte, garante que o individuo está inextricavelmente preso a uma cultura que é definida por criterios exteriores à sua vontade e intelecto. A autonomia nao existe, é uma escolha efectuada por algo sobre-individual. A comunidade. O individuo nao existe, apenas o grupo é real, a sua vontade é a da vontade geral. A vontade do grupo. Da comunidade que pensa por ele. O multiculturalista vê no canibal uma passividade biologica, e a impossibilidade de transcendencia do limite cultural. A contextualizaçao comunitaria serve de legitimiçao moral ao seu comportamento. O canibalismo é trangeracional e as constituiçoes que sustentam os rechtstaat europeus nao sao necessariamente partilhados pela comunidade canibalista que usufruem da sua protecçao. Uma infamia que pede novas regras e novas leis. Se o Nuno Castro acabar no estomago do canibalista nao há espaço para horror e consternaçao. Devemos aceitar o canibalista e a sua moral substantiva. Devemos aceitar uma pluralidade de ethos. Cada Volk a sua Ethos. E como os velhos romanticos, aceitar a ideia da tradiçao, cultura, e comunidade como fim inquestionavel do homem. O iluminismo é credor de um substrato universal - o direito natural. Os multiculturalistas de hoje, como os nacionalistas de ontem, negam-o. São anti-universalistas, anti-iluministas. E vendem o direito de indole comunitarista como expressao maxima de progressismo. Cavalgam os ideais do romantismo o que faz do multiculturalismo uma forma elegante de nacionalismo.

4:02 PM  

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