Friday, July 28, 2006

Inércia

A minha cabeça andava ao contrário. Quero dizer: quando apanhava o elétrico, para os lados do cemitério da Ajuda, em vez de se deixar cair para trás com a inércia do arranque inclinava-se para a frente como a desobedecer às mais elementares leis da física. Nos aviões acontecia mais ou menos a mesma coisa. Quando arrancavam os aviões e o impulso resultante da aceleração das turbinas vencendo o peso dos próprios e das camadas de ar que sobre eles repousam, a cabeça não se sentia atirada para trás, mas ao invés espetava-se bruscamente para a frente chegando mesmo a bater no banco do passageiro da frente. O contrário acontecia com as travagens. Quando o carro travava, aquele movimento comum de inclinação do corpo para a frente em virtude do peso da cabeça não se efectuava, acontecendo antes a projecção da cabeça para trás e a consequente opressão das costas contra o banco do automóvel. Na montanha russa, quando as íngremes subidas em velocidade acelerada obrigam o corpo e a cabeça a cair para trás parecendo que esta última quer ficar por ali a pairar, no meu caso, a cabeça inclinava-se num movimento furioso para a frente, o corpo a segui-la, parecendo que se queria antecipar ao carro chegando primeiro ao acume da estrutura por onde serpenteava o carril. Inversamente, quando as descidas a pique colocavam o corpo em risco de ser violentamente projectado para fora do carro e ser esmagado pelo correr dos rolamentos metálicos, a minha cabeça forçava o tronco para trás reclinando-se no sentido contrário dos restantes passageiros chegando por vezes a embater no rosto surpreendido do passageiro de trás. Mas quando, chegado ao destino, travava ruidosamente e todos os corpos eram atirados para a frente, o meu recostava-se confortavelmente no assento como se uma mão lhe puxasse a camisola e o quisesse por ali reter para mais uma volta. Nas motorizadas, quer de pequena quer de grande cilindrada, eu constituía uma surpresa enquanto pendura. Se a moto parava de repente, o condutor, habituado a receber o peso do corpo do pendura nas suas costas ficava surpreendido, quando não consternado, ao verificar que o peso se deslocava para a parte de trás da mota dando a impressão que se tratava de uma tentativa de aceleração.
Um dia, na prancha de saltos da piscina municipal de Moscavide, complexo que encima as zonas renovadas da Expo, paredes-meias com o bairro social das carmelitas descalças da paróquia de S. Lourenço, lancei o corpo em corrida pela pista fora. Ao projectar o corpo para a frente, já imponderável no ar, os pés sem contacto com a terra, o corpo erguido e retesado sobre a massa de água inerte à minha frente, o vento sentindo-o fresco e sibilante no rosto e na nuca, o sol dardejando-me as costas empurrando-me para a água, a cabeça negou a gravidade e puxou-me para trás. O movimento teve tanto de brusco como de inusitado. Em vez de me lançar recto em direcção à água executei uma espécie de mortal à retaguarda que me fez bater com a cabeça no betão da prancha de saltos, aquela donde até Alcochete podia ser vislumbrado quando o nevoeiro não o cobria invejosamente; ou mesmo a Moita com a sua patética biblitoteca a assomar como túmulo egípcio que acabasse de ser desenterrado. O choque provocou uma concusão no occipital que ficou fracturado em quatro sítios.

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