Inércia
A minha cabeça andava ao contrário. Quero dizer: quando apanhava o elétrico, para os lados do cemitério da Ajuda, em vez de se deixar cair para trás com a inércia do arranque inclinava-se para a frente como a desobedecer às mais elementares leis da física. Nos aviões acontecia mais ou menos a mesma coisa. Quando arrancavam os aviões e o impulso resultante da aceleração das turbinas vencendo o peso dos próprios e das camadas de ar que sobre eles repousam, a cabeça não se sentia atirada para trás, mas ao invés espetava-se bruscamente para a frente chegando mesmo a bater no banco do passageiro da frente. O contrário acontecia com as travagens. Quando o carro travava, aquele movimento comum de inclinação do corpo para a frente em virtude do peso da cabeça não se efectuava, acontecendo antes a projecção da cabeça para trás e a consequente opressão das costas contra o banco do automóvel. Na montanha russa, quando as íngremes subidas em velocidade acelerada obrigam o corpo e a cabeça a cair para trás parecendo que esta última quer ficar por ali a pairar, no meu caso, a cabeça inclinava-se num movimento furioso para a frente, o corpo a segui-la, parecendo que se queria antecipar ao carro chegando primeiro ao acume da estrutura por onde serpenteava o carril. Inversamente, quando as descidas a pique colocavam o corpo em risco de ser violentamente projectado para fora do carro e ser esmagado pelo correr dos rolamentos metálicos, a minha cabeça forçava o tronco para trás reclinando-se no sentido contrário dos restantes passageiros chegando por vezes a embater no rosto surpreendido do passageiro de trás. Mas quando, chegado ao destino, travava ruidosamente e todos os corpos eram atirados para a frente, o meu recostava-se confortavelmente no assento como se uma mão lhe puxasse a camisola e o quisesse por ali reter para mais uma volta. Nas motorizadas, quer de pequena quer de grande cilindrada, eu constituía uma surpresa enquanto pendura. Se a moto parava de repente, o condutor, habituado a receber o peso do corpo do pendura nas suas costas ficava surpreendido, quando não consternado, ao verificar que o peso se deslocava para a parte de trás da mota dando a impressão que se tratava de uma tentativa de aceleração.
Um dia, na prancha de saltos da piscina municipal de Moscavide, complexo que encima as zonas renovadas da Expo, paredes-meias com o bairro social das carmelitas descalças da paróquia de S. Lourenço, lancei o corpo em corrida pela pista fora. Ao projectar o corpo para a frente, já imponderável no ar, os pés sem contacto com a terra, o corpo erguido e retesado sobre a massa de água inerte à minha frente, o vento sentindo-o fresco e sibilante no rosto e na nuca, o sol dardejando-me as costas empurrando-me para a água, a cabeça negou a gravidade e puxou-me para trás. O movimento teve tanto de brusco como de inusitado. Em vez de me lançar recto em direcção à água executei uma espécie de mortal à retaguarda que me fez bater com a cabeça no betão da prancha de saltos, aquela donde até Alcochete podia ser vislumbrado quando o nevoeiro não o cobria invejosamente; ou mesmo a Moita com a sua patética biblitoteca a assomar como túmulo egípcio que acabasse de ser desenterrado. O choque provocou uma concusão no occipital que ficou fracturado em quatro sítios.
Um dia, na prancha de saltos da piscina municipal de Moscavide, complexo que encima as zonas renovadas da Expo, paredes-meias com o bairro social das carmelitas descalças da paróquia de S. Lourenço, lancei o corpo em corrida pela pista fora. Ao projectar o corpo para a frente, já imponderável no ar, os pés sem contacto com a terra, o corpo erguido e retesado sobre a massa de água inerte à minha frente, o vento sentindo-o fresco e sibilante no rosto e na nuca, o sol dardejando-me as costas empurrando-me para a água, a cabeça negou a gravidade e puxou-me para trás. O movimento teve tanto de brusco como de inusitado. Em vez de me lançar recto em direcção à água executei uma espécie de mortal à retaguarda que me fez bater com a cabeça no betão da prancha de saltos, aquela donde até Alcochete podia ser vislumbrado quando o nevoeiro não o cobria invejosamente; ou mesmo a Moita com a sua patética biblitoteca a assomar como túmulo egípcio que acabasse de ser desenterrado. O choque provocou uma concusão no occipital que ficou fracturado em quatro sítios.
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