A mulher ausente e a canção de papel
Descrevendo pegas e poltergeists. As ruas alimentadas de putas de todas as nacionalidades providenciam um colorido de outros tempos; um colorido belle epoque com sida, gonorreia e hepatite à mistura. Entretem-se a tirar as pestanas postiças e a voltar a colocá-las com a precisão de um cirurgião hepático. Nota-se já, e porque o colorido da idade mata como um veneno-minuto ou esmaece a vontade como uma febre terçã, as finas rugas cravadas a punhal a descairem obscenas dos cantos dos olhos e das comissuras dos lábios. O olhar está farto, agastado de pedras sem sono e de noites sem poente, e perdido como na saliva de um animal moribundo afoga-se o cigarro comprimido pelo excesso de vermelho que não se torna sangue, pelo lado da garagntilha, da mordaça, da trela de diamantes para caniches de luxo, pelo sangue que se derrama doente. E assim a rua lhe vai passando por entre as pernas: carros e bicicletas e outros veículos não-identificados. Corre a rua que abocanha transeuntes, os despe e atira para o lodo que se acumula nos interstícios da calçada. O passo que a leva, marcial e altivo, o passo de puta, com kilómetros na espinha vergada pelos algozes (sempre os mesmos: o gordo e suado, o magro e dispeneico) que a vão levando do redil para o pasto do pasto para o redil em gestos bovinos acompanhados por sons de balas a silvar, de pulmões sem oxigénio ou talvez de roncos de grandes leões-marinhos prostrados em glaciares.
A fita do olhar, a que se desprende e corre rua abaixo – nunca amanhecendo cedo, nunca dizendo palavras soltas – a fita, essa, a da menina azul que brinca no jardim com o cadáver da avó, essa, a fita, a da menina que deslocou um tornozelo e agora adormece aninhada nos braços putrefactos da avó cadavérica, a fita, essa, a que cerimoniosamente é cortada pelas parcas no lusco-fusco de uma dor de dentes, essa fita, a que se prende a um carnaval de olheiras, a braços gesticulantes de pústulas e a vozes esmagadas de saudade, a fita, essa fita, a que se corta, a que se corta rejeitando, a que se corta, essa fita, rejeitando o âmago da terra, o ventre e a canção de papel.
A fita do olhar, a que se desprende e corre rua abaixo – nunca amanhecendo cedo, nunca dizendo palavras soltas – a fita, essa, a da menina azul que brinca no jardim com o cadáver da avó, essa, a fita, a da menina que deslocou um tornozelo e agora adormece aninhada nos braços putrefactos da avó cadavérica, a fita, essa, a que cerimoniosamente é cortada pelas parcas no lusco-fusco de uma dor de dentes, essa fita, a que se prende a um carnaval de olheiras, a braços gesticulantes de pústulas e a vozes esmagadas de saudade, a fita, essa fita, a que se corta, a que se corta rejeitando, a que se corta, essa fita, rejeitando o âmago da terra, o ventre e a canção de papel.
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