Thursday, July 06, 2006

Gisberta Closed



O caso do transexual Gisberta incomoda por diversas razões: pela brutalidade, pela irracionalidade, pelo sadismo, pela malevolência, e por outros opróbrios à dignidade humana. Mas uma das razões de fundo que não está directamente relacionada com a violência física e psíquica do acontecimento e que deixou uma sensação de mal-estar pairante é sem dúvida o silêncio comprometido e acabrunhado da sociedade portuguesa. Não me refiro aos média, que dele fizeram o espectáculo possível, omitindo no entanto, e ao arrepio daquilo que costuma ser seu hábito, os pormenores escabrosos; nem tão-pouco me refiro à vox populi que habitualmente prontifica-se em acusações e em processos de intenção. Refiro-me sobretudo a quem teria por responsabilidade reflectir sobre estes assuntos, tentar enquadrá-los dentro de um horizonte de compreensão, encontrar-lhes uma causa ou pelo menos averiguar do seu sucedido. O desconforto mostrado por opinadores regulares e outros de ocasião deixa entrever algo com o qual a sociedade portuguesa ainda não encontrou a serenidade. Esse “algo” misterioso passa obviamente pela assunção dos papéis sexuais, pela permeabilidade do discurso da masculinidade e pela ambiguidade das pulsões sexuais e intersecta, bem no âmago, o imaginário familiar e a moral católica.

Ao aduzirmos razões não nos faltam cenários possíveis e todos eles plausíveis dentro das estruturas organizacionais envolvidas e dos actores – e não apenas os perpetradores directos do acto – participantes. Recordo-me que uma vez uma velha colega de faculdade que entretanto se voluntariara para trabalhar numa dessas instituições de regime de internato contou-me que era hábito os miúdos sodomizarem-se com paus de vassoura. O registo escabroso da acção não pode deixar de alertar para o paralelo que pode sem esforço ser traçado entre as práticas assumidas pelos internos e os actos cometidos sobre Gisberta – também esta foi violada repetidamente com paus. Por conseguinte, o discurso que coloca os acontecimentos do Porto sob a ordem da anomalia falha o essencial: não estamos perante um acto anormal, mas sim perante uma acção “normal” que extravasou as paredes que a continham enquanto reservada a uma “anormalidade estruturante”. A justificação dada por um dos prelados é disso assaz ilustrativa. Segundo o prelado a acção dos miúdos não foi uma “acção”, no sentido de dotada de autonomia, mas sim uma “reacção”: era porque a transexual os assediava que eles decidiram, supõe-se, pôr cobro à situação usando - e aqui as justificações do prelado parecem pateticamente pusilânimes -, de extrema violência e sadismo. Para este prelado o acto justifica-se automaticamente enquanto reacção a um outro acto de tal forma imoral que só poderia ser respondido com extrema violência. Ninguém se lembrou de colocar o prelado perante o simples facto de que nem todos os miúdos com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos violam transexuais, torturando-os e sodomizando-os com objectos, mesmo quando por estes são assediados. E todavia esta é a pergunta que se impõe. O prelado teria dificuldades em responder, não porque a inquirição fosse demasiado complexa ou sinuosa, mas porque sabe perfeitamente a resposta. Neste caso a acção-reacção dos miúdos é “normal” e aceitável porque a prática retira o seu modelo de um outro lugar; ou seja, o prelado encontra-se consciente de que não é a primeira vez que estes miúdos em particular se envolvem nestas práticas em particular e que portanto a sua repetição, mesmo quando levada ao extremo, não é encarada com a surpresa das acções dificilmente classificáveis, mas antes com a tolerância de quem partilha do mesmo contexto possibilitador e produtor de tais actos. Não admira portanto que o prelado se regozijasse com o facto de o julgamento decorrer à porta fechada – para proteger as crianças, reza sempre a mesma litania. Na Casa Pia tudo se moveu com grande secretismo –excepto a denúncia dos suspeitos do costume – igualmente para proteger as crianças. Tornou-se hoje claro que o que se pretende é proteger as instituições; e sobretudo a instituição “Igreja”.


Não é um país a sério, obviamente, aquele que não levanta inquéritos rigorosos às instituições de internato católicas. Não estamos em condições de acusar padres às dezenas como foi feito nos Estados Unidos, nem tão-pouco de reduzir a idade de imputabilidade para condenar como homicidas crianças de 10 anos que matam outras – recordando o famoso caso inglês.
O julgamento de Gisberta vai acabar por morrer à porta fechada. Na cena pública portuguesa parece que isto apenas concernia aos homossexuais – caso que se imagina que muitos terão pensado que o transexual teve o que merecia. Uma fractura fatídica levou a que o caso Gisberta fosse discutido pela comunidade homossexual perante o silêncio comprometido da comunidade heterossexual. “Isto não nos diz respeito, é lá coisas dos maricas”, parecia ecoar pelos media. A fotografia de Gisberta foi estrategicamente omitida: como poderia ser classificada imageticamente a inclassificável Gisberta. O que fazer do dispositivo hiper-mediatico que é a fotografia quando ela não encontra categorias para se reproduzir?


A forma como se construiu o palimpsesto sobre Gisberta possui detalhes que são simultaneamente curiosos e aterradores. Um país que se sente incapaz de nomear um “transexual” preferindo escondê-lo sob as roupagens andrajosas de um “sem abrigo” é um país que não está de bem com a sua consciência (e os países também a têm, imaginemos). É claro que as relações dos jovens, do transexual e da instituição – que é no fundo aquilo que o asseptismo do termo “sem abrigo” pretende erradicar dos acontecimentos, como se fosse ele próprio o alibi generosamente oferecido pela sociedade portuguesa – vão ser discutidas à porta fechada.
Portugal é talvez a jangada com que Saramago um dia sonhou; mas nas suas velas impantes leva bem gravada a cruz de cristo.

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