Tuesday, July 18, 2006

As estratégias da morte (1)

A bala passou-lhe bem entre o frontal e a têmpora esquerda. Quando a viu aproximar-se só teve tempo de fechar os olhos e imaginar o buraco que, subsequentemente, após o impacto e o som oco que se produziria no contacto entre a bala e o seu crâneo, ficaria desenhado na seu rosto agora pálido ou mesmo um pouco azulado. O buraco da bala, de acordo com a sua imaginação, seria um ponto negro, de alguma dimensão, digamos com o diâmetro da cabeça de um polegar quando este se prime contra o peito ou contra um pulso, o que implicava uma cavidade média, tendo em conta que a sua cabeça não era pequena, mas também não era desmesurada, nem sequer desproporcionada em relação a um corpo de estatura baixa, a umas pernas cavadas sob um tronco bojudo, mas que não deixava advinhar força ou tão-pouco persistência, como quando comparadas as alturas médias dos homens medievais com a do homem moderno, que embora menores se imaginam sempre com diferente e maior pujança. Essa cavidade, assim como a imaginava quando fechou os olhos e ouviu já dentro da sua cabeça o estridor da detonação, seria uma lura de negros interstícios, variegados interstícios, nenhum se parecendo com o outro de onde um fio concentrado de uma matéria espessa e negra se exudaria como sangue, o sangue como ele o imaginava, uma réplica cinematográfica mas com mais aproximação à realidade, assim como imaginava que o sangue real pudesse ser, algo que nunca tinha visto, quer dizer, sangue a escorrer realmente de uma cavidade real aberta no crâneo por uma bala disparada de uma pistola, que podia distintamente ser identificado pelo negrume acrescentado ao vermelho lustroso da imaginação fílmica. Imaginou também uma súbita sensação de calor concentrada naquele ponto onde a bala impactaria, um calor em tudo diferente do vapor que por vezes se evolava da velha chaleira onde se lembrava de ter bebido café ainda jovem num campo de escuteiros onde as emaciadas pernas das raparigas, que mais tarde haviam de ter varizes pelo peso do carrego dos filhos, assomavam de baixo de uns calções que assintosamente lhes retiravam a feminilidade; e essa sensação de calor, em tudo diferente daquela que a sua memória lhe oferecia, apaziguante e aconchegante, seria no momento da bala lhe perfurar o crâneo, um calor híbrido, um misto de ardor com o brusco enregelar da cabeça. Assim como o imaginava seria como apagar um dardo ardente, acabado de sair da fornalha, crepitante e candente, rebrilhante das veias que o fogo desenha no metal quando este é levado a altas temperaturas ou sulcado de fulvas nervuras como uma folha exultante de seiva, mergulhando-o na água fria de uma cuba de ferreiro, libertando gementes volutas de vapor, adormecidas de imediato, extinguindo-se no ar abafado pelo calor da fornalha. A sensação de calor ou a passagem de um calor brusco para um frio despido, não se faria de modo insinuante nem dotado de uma languidez mórbida, dessa que às vezes se pode detectar nas carícias últimas dos cancerosos nas alas mais recônditas dos hospitais públicos; nem seria como o espreguiçar do corpo de madrugada quando a vida tenta regurgitar-se num esforço primeiro que facilmente se confunde com o derradeiro, revelando-se numa rápida mas tensa pressão nas vértebras até então dormentes do aconchego lívido dos lençóis. Essa passagem, na realidade, era mais modesta, porém mais vinculante à verdade do corpo e à sua condição perecível. Uma mão interna que perfurasse por dentro o crâneo abrindo caminho à custa de espátulas ardentes como dedos esgravatando terra numa mina escura, deixando a estranha sensação de que a bala fora disparada de dentro e que a cavidade se tivesse aberto como um nascituro a rebentar uma placenta que em vez de expelir vida absorvesse morte no momento de inspirar. A rapidez com que imaginava todos estes pequenos actos, que dir-se-iam dotados de vontade própria, de uma autonomia que só se compreendia enquanto parte de uma mecânica interna mais elaborada, portanto proposicional, portanto fundada em razões, apenas se justificava porque finalmente conseguia perceber o conjunto, aquilo que quando determinado pela sua condição compósita fazia sentido na forma como imaginava o acontecimento da bala a penetrar a sua cabeça entre o frontal e a têmpora esquerda.
A última imagem que viu pouco teve a ver com a famosa sequência das cenas mais significativas do correr de uma vida que nos acostumámos a ver representado em sépia e em ritmo acelerado no cinema, mas mais simplesmente um pedaço desgarrado de carne, pontilhado de sangue vivo e com nervos estilhaçados que conferiam ao seu contorno o aspecto de uma esponja marinha arrancada de um rochedo; um pedaço de carne em tudo semelhante aos da banda desenhada. Depois sentiu-se cair.

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