Faltava-lhe sal...
É uma bela história. Podia ser contada numa noite de natal, à lareira, com peúgas a emoldurar os frisos da mesma – e se calhar até foi, fazendo jus à infrene vontade de mortandade a que o humano é dado.
Depois do naufrágio, os barcos salva-vidas juncavam o mar do sul. Eram mais de 5, contados assim à distância, e os sobreviventes cifravam-se em perto de 60. As vagas não tinham amainado, e mesmo o comandante, que se encontrava entre os salvos, homem experiente de convulsões marítimas, não conseguia apagar do seu cenho a preocupação. Nem um barco à vista; a chuva copiosa enregelava os ossos; as mulheres temiam pelos seus filhos. O comandante passava frequentemente as costas da mão pela testa prelada de suor e de água salgada. Um professor de filologia sussurava versos de Horácio para distrair a mente da catástrofe, e era acompanhado por uma cantilena suave que uma das camareiras repetia. Outros rezavam, e por vezes amaldiçoavam deus e as suas potestades.
Ao segundo dia, a água que tinham conseguido trazer para os botes, começava a escassear; a pouco comida, uns retalhos de toucinho roubados à pressa da cozinha, uns potes de mel e umas alfarrobas que não tinham cumprido o seu destino de se tornarem num belo bolo, ainda ia dando, conquanto racionados criteriosamente – era isto que tinham conseguido resgatar na ansiedade de se salvarem.
Ao terceiro dia a água acabara. A urina ia servindo para alguns se desedentarem, o que provocava terríveis espasmos no estômago e vómitos constantes. Apenas algum mel ainda sobejava nos potes cobertos de sal. A chuva parara; as vagas estavam agora como mãos que embalassem os esqueléticos botes nos seus berços. O sol reaparecera; era inclemente e as pessoas resguardavam as cabeças com os casacos e mantas. O primeiro óbito sucedeu então, ao terceiro dia. Uma senhora idosa que já tinha acusado problemas de coração, acabou por falecer por volta das 10 horas da manhã. Os seus olhos, de repente, ficaram muito parados, as pupilas dilatadas e raiadas de sangue, um sobressalto como se fosse tossir. Passados segundos estava morta. Foi também o primeiro funeral entre os náufragos; outros se seguiriam. Sopesaram o corpo, dois homens, um pelos pés o outro pelas espaldas. Sem balanço deixaram o corpo cair ao mar, plof, sem esforço, receberam-no as vagas que depressa o engoliram. Não se ouviu ninguém gritar homem ao mar, apenas um silêncio pesado ligava os tripulantes entre si. Veio então o nevoeiro. Primeiro, insinuando-se devagar; depois cobrindo os espaços entre os botes, entre os corpos, entre os olhos, cobrindo o próprio som das palavras que se trocavam sem destinatário. Quando levantou o nevoeiro, havia mais uma vítima entre os náufragos. Um homem morrera, desta feita por inanição; estava esquálido e rígido, mas adormecera serenamente, sem um rougo. Ao quarto dia a fome era excruciante. Os víveres acabaram; as pessoas entreolhavam-se desesperadas. Sem água, nem comida, apenas o eterno vai-vem das ondas. Nem um barco à vista. Ao quinto dia, mais sete pessoas tinham falecido, todos com idades avançadas. A fome ia fazendo a sua selecção natural, desbastando corpos frágeis e cansados, deixando para mais tarde aqueles cujas raízes se encontram ainda no viço. Mas também estes iam, a pouco e pouco, desistindo. Os funerais já se iam fazendo sem qualquer ritual. No primeiro ainda se ouviram umas palavras de consolo do comandante. Os três últimos foram apenas acompanhados pelo marulhar das ondas com os corpos a serem, um a um, engolidos pela indiferença do oceano. (cont.)
Depois do naufrágio, os barcos salva-vidas juncavam o mar do sul. Eram mais de 5, contados assim à distância, e os sobreviventes cifravam-se em perto de 60. As vagas não tinham amainado, e mesmo o comandante, que se encontrava entre os salvos, homem experiente de convulsões marítimas, não conseguia apagar do seu cenho a preocupação. Nem um barco à vista; a chuva copiosa enregelava os ossos; as mulheres temiam pelos seus filhos. O comandante passava frequentemente as costas da mão pela testa prelada de suor e de água salgada. Um professor de filologia sussurava versos de Horácio para distrair a mente da catástrofe, e era acompanhado por uma cantilena suave que uma das camareiras repetia. Outros rezavam, e por vezes amaldiçoavam deus e as suas potestades.
Ao segundo dia, a água que tinham conseguido trazer para os botes, começava a escassear; a pouco comida, uns retalhos de toucinho roubados à pressa da cozinha, uns potes de mel e umas alfarrobas que não tinham cumprido o seu destino de se tornarem num belo bolo, ainda ia dando, conquanto racionados criteriosamente – era isto que tinham conseguido resgatar na ansiedade de se salvarem.
Ao terceiro dia a água acabara. A urina ia servindo para alguns se desedentarem, o que provocava terríveis espasmos no estômago e vómitos constantes. Apenas algum mel ainda sobejava nos potes cobertos de sal. A chuva parara; as vagas estavam agora como mãos que embalassem os esqueléticos botes nos seus berços. O sol reaparecera; era inclemente e as pessoas resguardavam as cabeças com os casacos e mantas. O primeiro óbito sucedeu então, ao terceiro dia. Uma senhora idosa que já tinha acusado problemas de coração, acabou por falecer por volta das 10 horas da manhã. Os seus olhos, de repente, ficaram muito parados, as pupilas dilatadas e raiadas de sangue, um sobressalto como se fosse tossir. Passados segundos estava morta. Foi também o primeiro funeral entre os náufragos; outros se seguiriam. Sopesaram o corpo, dois homens, um pelos pés o outro pelas espaldas. Sem balanço deixaram o corpo cair ao mar, plof, sem esforço, receberam-no as vagas que depressa o engoliram. Não se ouviu ninguém gritar homem ao mar, apenas um silêncio pesado ligava os tripulantes entre si. Veio então o nevoeiro. Primeiro, insinuando-se devagar; depois cobrindo os espaços entre os botes, entre os corpos, entre os olhos, cobrindo o próprio som das palavras que se trocavam sem destinatário. Quando levantou o nevoeiro, havia mais uma vítima entre os náufragos. Um homem morrera, desta feita por inanição; estava esquálido e rígido, mas adormecera serenamente, sem um rougo. Ao quarto dia a fome era excruciante. Os víveres acabaram; as pessoas entreolhavam-se desesperadas. Sem água, nem comida, apenas o eterno vai-vem das ondas. Nem um barco à vista. Ao quinto dia, mais sete pessoas tinham falecido, todos com idades avançadas. A fome ia fazendo a sua selecção natural, desbastando corpos frágeis e cansados, deixando para mais tarde aqueles cujas raízes se encontram ainda no viço. Mas também estes iam, a pouco e pouco, desistindo. Os funerais já se iam fazendo sem qualquer ritual. No primeiro ainda se ouviram umas palavras de consolo do comandante. Os três últimos foram apenas acompanhados pelo marulhar das ondas com os corpos a serem, um a um, engolidos pela indiferença do oceano. (cont.)
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