Monday, October 01, 2007

A emenda e o soneto

Devo retratar-me perante o comentário que RTavares amavelmente deixou aqui no Qualquer. De facto, entusiasmei-me e tresli o texto de RTavares inventando um “sentir-se português” onde outra expressão se encontrava. As minhas desculpas pela minha deficiente citação. Sucede que o que se encontra no texto original é ainda pior do que o “sentir-se português”. Caso para glosar a da emenda e do soneto. Então que diz RTavares? A propósito da integração dos imigrantes em Portugal, RTavares avança a proposta de conceder a nacionalidade a imigrantes que completassem um qualquer grau de ensino superior. A sugestão parece bondosa. Todavia, remete imediatamente para a questão de saber em que medida são os imigrantes com qualificações superiores mais estimáveis do que os imigrantes desqualificados ou menos qualificados? A resposta é fácil dentro do contexto de uma economia que se pretende “de ponta” e que, como diz o Rui, compete pelo primeiro lugar na corrida à tecnologização com os Estados Unidos entre outros. Este era o projecto da Agenda de Lisboa – ultrapassar os Estados Unidos em termos científicos em 2010.
Dois pontos prévios. Primeiro, interpretar a imigração norte-americana através do “green card” é erróneo. Estima-se que mais de 2.500.000 imigrantes se encontram ilegais nos Estados Unidos. Estes, como é evidente, não contribuem para o desenvolvimento das indústrias high tech, mas sim para o sector dos 3 Ds (dirty, dangerous and difficult). Constituem no entanto uma fatia não despicienda do PNB norte-americano, para além de permitirem a flexibilidade dos termos de contratação; mais ou menos o que a população de imigrantes ilegais faz na maioria dos países. Segundo, Portugal pode querer imitar o modelo Canadiano, que sem dúvida possui razões de sobra para ser aliciante, mas a estrutura de desenvolvimento sectorial portuguesa não é a mesma da canadiana. Portugal tem apostado em grandes obras conducentes a surtos de procura de trabalho para a qual a mão-de-obra imigrante tem contribuído para colmatar a falta de oferta nacional. Ou seja, Portugal quer trabalhadores qualificados, mas precisa desesperadamente de trabalhadores não-qualificados. Com esta estrutura de desenvolvimento sectorial, por que diabo seriam os trabalhadores qualificados privilegiados em termos de nacionalidade em relação aos seus congéneres menos qualificados? Não sei se RTavares se apercebeu da tremenda injustiça que o seu raciocínio encerra.
Mas há mais. Expandindo o argumento, há necessariamente uma correlação entre o esforço académico e a recompensa de ser português que está a ser proposta. Correlação entre esforço académico, como se este ganhasse uma primazia moral em relação a qualquer outro tipo de esforço. Então diz RTavares:
O imigrante terá um estímulo adicional para se qualificar, e o país sentirá que o imigrante se esforçou para ser português.

Devemos por conseguinte entender que o esforço resultante do trabalho na construção civil, no sector da restauração, no sector das limpezas, no comércio retalhista, etc, etc, não merece o mesmo apreço por parte do “país” do que o resultante do esforço académico. Façamos um exercício académico, como deve de ser, para terminar: ponham-se no lugar do imigrante que trabalha e que não tem qualificações superiores, nem condições ou vontade para as obter, e que vê alguém chegado há três ou quatro anos, e este, porque saca um canudo, obtém a nacionalidade. Política equitativa, não é?
adenda: a última estimativa que encontrei sobre imigração ilegal ronda os 12 milhões de pessoas. A cifra reproduzida no texto está manifestamente desactualizada.

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home