Wednesday, January 02, 2008

Aprender a suicidar-se na época do jornal das nove


Falava-se então de “literatura de ideias”. O termo mais correcto será o de romance-ensaio. E falava-se a propósito do dito “projecto literário” de G. M. Tavares. O meu interlocutor deixou cair uma frase plúmbea – com o peso do ecleticismo e sabedoria bibliotecários. Não recordo os termos exactos, mas continha “literatura de ideias”, continha esta expressão, a qual substituo pelo mais conveniente (parece-me) romance-ensaio. Vem este último a propósito de um livro de Vila-Matas que eu andava a ler, mas que me aborreceu; esse é um exemplo acabado de literatura de ideias, ou seja, de romance-ensaio. Ele próprio o afirma. Assim de repente, concebo duas formas de literatura de ideias aka romance-ensaio, ou, em alguns casos, novela ensaística. Um primeiro – que será o último cronologicamente – que usa e abusa do reenvio para obras, ideias, autores, reconhecidos e que apela à aura de consagração com que estes autores, ideias e títulos foram bafejados por um passado hermenêutico e crítico. Aqui, o autor procura sistematicamente levar o autor a subreptícias, ou nem tanto, identificações com uma dada escola, uma dada corrente, uma dada tradição. Encontram-se neste caso, entre muitos outros, mas estes são os que me ocorrem como paradigmas, os dois citados atrás: Villa- Matas e G.M.Tavares – salvaguardando, no entanto, as devidas distâncias. Não será por acaso que as referências de ambos confluem por vezes numa sintonia inesperada: a Europa central; os poetas realistas do Sturm und Drang; os mestres de Kafka, Walser e Musil – os continuadores da vertente germânica da cultura europeia.
Por outro lado, encontramos os próprios do Sturm und Drang com as suas novelas enxertadas de ideias, de filosofias aforísticas, de projectos pensantes. Goethe, Lenz e Buchner, Schiller, servem de exemplo. Talvez Buchner, com a sua novela Lenz, se aproxime mais da novela-ensaio do que qualquer outro; porém, o que são o Wilhelm Meister de Goethe ou Die Rauber de Schiller? Isto é um apanhado arbitrário, claro que sim. Mas percebe-se por exemplo o porquê de uma tão grande multiplicidade de referências, quase circulares, nos escritos de M. Tavares – a personagem Lenz, por exemplo.
O epígono maior desta tradição, porventura o mestre para a geração actual do romance-ensaio, da literatura de ideias, será Borges. Este, é inegável, encontra-se como esteio absoluto na literatura dos dois primeiros: M. Tavares e Vila-Matas. Só que, contrariamente a Borges, que ensaia ideias de forma romanesca, e que por isso teve, e continua ter, tão grande influência sobre as ditas ciências duras e, mais ainda, sobre a filosofia, os nossos contemporâneos da ensaística constroem enredos em torno da literatura, não de ideias. Ou então, as ideias, a existirem, são ideias literatas. É da brincadeira com as referências literárias que surgem enquanto ideias, no sentido em que se pode falar de ideias sobre literatura. As suas obras não são propriamente ricas em rasgos filosóficos; mais curioso, a filosofia onde se alimentam é anacrónica e daí retiram a sua indispensabilidade.
Este reiventar da tradição cultural da Europa central na Península, tem que se lhe diga. Daí que o “projecto literário” de M. Tavares, por heteróclito que seja, fascina e aborrece em simultâneo – ambas condições indecisas e periclitantes (mas sem perigo, como diz Steiner, não pode have génio na literatura). Fascina por que é um enxertar de uma tradição estranha na literatura lusa. E este estranhamento é tanto mais conseguido quanto é operado por uma superidentificação: M. Tavares grita aos quatro ventos que quer ser identificado com esta tradição, da qual, eventualmente, ele se considera um legítimo continuador. Aborrece, porque uma tal estratégia, quando repetida à exaustão, provoca a velha doença – mortal para os literatos desta mesma tradição; mortal para Lenz e para Werther –, a inexorável experiência do enui. É isso: com todo o seu brilhantismo, a sua referencialidade literata, o seu arrojo eclético, a exposição, a raiar o obsceno, desse mesmo arrojo, acaba por se esgotar no mais pesado enui. E se o enui se traduz, a mais das vezes, numa tendência suicidária, onde estarão os suicidas na época da “morte entre parêntises”?

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

aborrecido me ha dejado

V-M

4:47 PM  

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