A rua e os meandros da luta
E se bem que este texto seja muito interessante, ficaram-me os seguintes comentários, após a sua leitura e sem grande reflexão. Haverá com certeza interpretações diferentes. De qualquer das formas, os comentários seguintes, por anárquicos e desestruturados, não dispensam a leitura do texto – que é comprido e denso, mas oferece um prazer hermenêutico só comparável ao da leitura da bíblia.
Não se trata da dicotomia entre o visível e o invísivel, entre o sujeito anónimo e o sujeito heterodeterminado – mas sim de quem controla os termos da visibilidade. Porque visíveis são sempre eles assim que entram em contacto com as instituições produtoras do panóptico. A diferença entre a “festa da diversidade” e os controlos policiais reside em quem controla a estratégia de visibilidade. Se nos últimos, a visibilidade é imposta, portanto opera por uma estratégia de saliência étnica forçada, já no primeiro caso, a visibilidade é, supostamente, gerida pelas próprias minorias. A palavra que é estranhamente evacuada deste texto é “reconhecimento”. Sendo o reconhecimento a vertente ética da visibilidade dos cidadãos, dificilmente este é atribuível no espaço do anonimato. Sem dúvida, devemos a Bourdieu a capacidade de explicitar que o espaço público, longe de ser um espaço abstracto, é um espaço crivado de distinções; distinções essas que obrigam a um comportamento estratégico, mais ou menos consciente, consoante os cenários onde elas são activadas. Mais: o reconhecimento é a lógica sobre a qual se instaura a troca simbólica nas sociedades consumistas como as nossas.
Esta ideia que perpassa pelo texto – repetida até à exaustão por intelectuais como Pascal Bruckner – segundo a qual as “diferenças” são construídas, sobretudo pelo discurso científico e antiracista, possui o seu quinhão de verdade. Contudo, a diferença existe antes de mais no contacto imediato entre dois sistemas que são diferenciáveis. Por exemplo, quando um imigrante entra em contacto com uma instituição do estado da qual não domina a língua, a diferença é imediatamente salientada. Não é necessário o trabalho de categorização levado a cabo pelos antropólogos e antiracistas, como o texto parece indicar. Neste sentido, não é apenas a capacidade de coexistência que é construída a par e passo com as vivências sociais, não existindo nenhum guião pré-estabelecido e podendo estas, na sua arbitrariedade, redundar no confronto ou estabelecer ligações equilibradas. É também a categorização que é produzida nestes encontros, sem necessitar de grelhas categoriais apriorísticas. A cor da pele é um elemento que por mais desejo de invisibilidade que se tenha nesta utopia da “rua universal” dificilmente se consegue que passe despercebida. Ela está lá; funciona como um marcador; e como tal pertence a um sistema de atribuição de estatuto. Dizer que a “rua” funciona como o paradigma da indiferenciação surge como mitigação da empiria que, muito pelo contrário, tende a revelar sistemáticas diferenciações, umas mais organizadas e outras mais fragmentárias.
Em resumo, parece que esta ideia da imposição de categorias pelas autoridades esquadrinhadoras, se alicerça a contrario sensu numa concepção higienizada do espaço público – como se este fosse, pelas suas próprias propriedades um garante de neutralidade. Como se a neutralidade não fosse sempre a neutralidade da maioria, portanto a inversão dessa mesma naturalidade, a ideologia da neutralidade que se encontra sempre ameaçada pelas minorias e pela sua expressão nesse mesmo espaço público. Quando no fundo, o espaço público não é mais do que arena onde se luta pela definição legítima de neutralidade. A “rua” não é um cenário etológico onde as básicas características animais se revelassem na sua plenitude inata. Pelo contrário: a “rua” é um produto histórico, resultado de lutas pela sua ocupação e pelas formas legítimas de naturalização das condições dessas mesmas lutas. A visibilidade das minorias pode ser tanto sinónimo de “encerramento numa identidade”, prisão cultural que não deixa espaço para o indivíduo escolher (mas o que é esta escolha do indivíduo??) como de empowerment – reconhecimento de que existe uma identidade que precisa de lutar para ser reconhecida.
Esta ideia que perpassa pelo texto – repetida até à exaustão por intelectuais como Pascal Bruckner – segundo a qual as “diferenças” são construídas, sobretudo pelo discurso científico e antiracista, possui o seu quinhão de verdade. Contudo, a diferença existe antes de mais no contacto imediato entre dois sistemas que são diferenciáveis. Por exemplo, quando um imigrante entra em contacto com uma instituição do estado da qual não domina a língua, a diferença é imediatamente salientada. Não é necessário o trabalho de categorização levado a cabo pelos antropólogos e antiracistas, como o texto parece indicar. Neste sentido, não é apenas a capacidade de coexistência que é construída a par e passo com as vivências sociais, não existindo nenhum guião pré-estabelecido e podendo estas, na sua arbitrariedade, redundar no confronto ou estabelecer ligações equilibradas. É também a categorização que é produzida nestes encontros, sem necessitar de grelhas categoriais apriorísticas. A cor da pele é um elemento que por mais desejo de invisibilidade que se tenha nesta utopia da “rua universal” dificilmente se consegue que passe despercebida. Ela está lá; funciona como um marcador; e como tal pertence a um sistema de atribuição de estatuto. Dizer que a “rua” funciona como o paradigma da indiferenciação surge como mitigação da empiria que, muito pelo contrário, tende a revelar sistemáticas diferenciações, umas mais organizadas e outras mais fragmentárias.
Em resumo, parece que esta ideia da imposição de categorias pelas autoridades esquadrinhadoras, se alicerça a contrario sensu numa concepção higienizada do espaço público – como se este fosse, pelas suas próprias propriedades um garante de neutralidade. Como se a neutralidade não fosse sempre a neutralidade da maioria, portanto a inversão dessa mesma naturalidade, a ideologia da neutralidade que se encontra sempre ameaçada pelas minorias e pela sua expressão nesse mesmo espaço público. Quando no fundo, o espaço público não é mais do que arena onde se luta pela definição legítima de neutralidade. A “rua” não é um cenário etológico onde as básicas características animais se revelassem na sua plenitude inata. Pelo contrário: a “rua” é um produto histórico, resultado de lutas pela sua ocupação e pelas formas legítimas de naturalização das condições dessas mesmas lutas. A visibilidade das minorias pode ser tanto sinónimo de “encerramento numa identidade”, prisão cultural que não deixa espaço para o indivíduo escolher (mas o que é esta escolha do indivíduo??) como de empowerment – reconhecimento de que existe uma identidade que precisa de lutar para ser reconhecida.
(cheguei ao texto pelo A Terceira Noite)
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