Friday, June 09, 2006

Porque se suicidou Celan?


Lembro-me ainda das águas do Sena, quando o meu corpo nelas se consumia, quando eu me consumia nelas e as resguardava em mim como se do último refúgio real se tratasse. Ficaram à minha espera: eu que mais me aproximei da morte, que a fui dizendo porque caminhava e em caminhando me fui lembrando da sombra, a minha e a outra a que sempre me acompanhou negando-se, mas que se insinuava como a presença da rosa. Recordo também que a rosa, essa mesma, a que me pesava na tampa do caixão desde o dia em que fui caminhando, cresceu-me na boca, enquanto o meu corpo se entregava às águas lodosas do Sena, as benzia, as nutria, as devolvia mais caudalosas e negras. Através da rosa eu interpelei o mundo e só quando ela se anunciou no interior da boca, lustrosa e molhada pelas águas do Sena, eu ouvi cantar no jenseits der Menschen.

Enquanto o sol se esvaecia na sua brancura de esquecimento, assomou na minha fala essa injustiça suprema de me terem, para sempre, feito refém do holocausto e do judaísmo. Eu, poeta judeu, errando ao encontro do inominável, fui nomeado, condenado às grilhetas do Holocausto, pássaro insaciável que me foi destinado como a Prometeu. Por que precisam os homens de justificar a quem lhes escorre a morte dos lábios? Que receio trazem aninhado nos seus peitos esconjurados, tementes dos que em vida se entregaram a uma poesia da finitude? Não, não creio que tenha sido do Holocausto nem da Mittleit judia que a minha palavra se vez portadora. Eu estava mais perto dos homens – à distância de lhes dizer que o gesto era para nada e para ninguém. Qual a virtude mais alquímica? A que canta a vida ou a que canta a morte?

Mit von Steinen geschriebenen schatten, as minhas, as de todos os outros, principalmente as da memória que me traía a horas vagas e desacostumadas da bondade humana. Quando falei ouro pela última vez? Quando foi que disse esta carta para ti meu amor será selada com a brancura do inexistente?
Os mortos falaram por mim, usaram a minha boca para se traduzirem, tornarem a morte humana, recriando-a, como em tempos antigos, como a refeição familiar. Então descemos. Demos as mãos e descemos, usando cada passo no ritual laborioso do perdão.

A mim falam-me os «os rios a norte do futuro», porque neles depositei a esperança de que não mais se invocasse a palavra salvação.


In den Flüssen nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, daß Du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.

Não escrevi sangue, não o uso. As chagas que eu revelei ao mundo foram sempre feitas de sombra. Não desejei a vida como outros, aqueles que se insurgiram e gritaram «antes a vida!». Respondi: para quê a vida se trago a sabedoria da morte.

EINMAL, der Tod hatte Zulauf,
verbargst du dich in mir.

Uma vez. Escrevi que os homens já não me assustavam. Nunca os homens me assustaram. Como poderiam fazê-lo se não tinha expectativas? O que lhes fui dizendo foi que pouco lhes poderia dizer que fizesse diferença. Assim fui-me apagando, gradualmente, como a flor que estiola por sentir que não pertence ao jardim. Disse que o opróbrio seria cometido «quando pregassem a cruz a cristo». Reduzi cada frase ao seu cadáver mais latente – aquele que não se pronuncia, aquele que foge ao fogo de cometer um crime. Afundo-me. Gosto desta sensação de imponderabilidade casta. Digo a morte, mais uma vez, o esquecimento a verdade da escuridão, mas sem temor, sem saudade, ohne Sprache.