Tuesday, July 31, 2007

Por que devemos gostar de Saramago?

Saramago é insultado por quase toda a intelectualidade de direita, mas não só. Uns não lhe perdoam a passagem – despótica, segundo muitos – pelo DN; outros não lhe perdoam o excessivo iberismo, envergado sem rebuço como quem exibe um fato de gala; outros ainda, simplesmente, acusam-no de ser comunista como se a opção política contaminasse todos os seus actos – são portanto mais marxistas do que o próprio Saramago.
Nada disto possui qualquer relevância quando aquilatado com a obra de Saramago. E esse deve ser o único elemento em julgamento. Saramago, aventamos, mostra-se agastado com tanta malevolência, perseguição, mal intencionados juízos, de tal forma que fugiu para Espanha onde o admiram e onde lhe prestam tributo. Mas também isto não passa de acessório e de fait divers.
Saramago merece estar no panteão dos grandes escritores nacionais por algumas razões objectivas. A escrita de Saramago explora uma capacidade efabulatória pouco vista na literatura nacional. Poucos escritores possuem tanta e tão versátil imaginação. Esta tendência vem ao arrepio de uma literatura muito marcada quer pelo naturalismo – herança balzaquiana – quer pelo neomodernismo. A versatilidade de Saramago encontra-se notoriamente nas múltiplas inscrições que ele ensaia nestas duas escolas, enquanto lhes acrescenta o poder de efabulação que falta tanto a uns como a outros. Basta lembrar a Belimunda de “Memorial do Convento” e as suas alucinações proféticas; a recriação de um Ricardo Reis no corpo de um Pessoa e de uma Lisboa por este imaginada; ou a epopeia de uma península separada do resto da Europa a vogar em direcção a outras paragens atlânticas. Mas temos também uma fase inicial de Saramago marcada fortemente pelos tons neorealistas, por exemplo, de um Soeiro Pereira Gomes, cujo expoente se materializa no “Levantado do Chão”. Porém, é preciso prestar atenção à dimensão irrealista do final do livro, revestida de um desejo de utopia, congregado na marcha dos trabalhadores em direcção, julgamos, a um futuro melhor. De tal forma que é possível encontrar um paralelo entre este final e o registo quase que musical – como assinalou Eco - do início do Manifesto Comunista – leia-se: o crescendo. Mais uma vez efabulação; mais uma vez a inversão, ou a negação, de um universo demasiado formalista. E se isso não bastasse, a reconstituição apócrifa da vida de Cristo em “O Evangelho segundo Jesus Cristo” leva ao ápice a capacidade que Saramago tem de reinscrever na textura do material histórico a sua explosiva fantasia.
Até aqui referimo-nos sobretudo a uma primeira fase. Considero que assim se pode caracterizar, dado que as mais recentes obras, embora com o mesmo recorte estilístico, enveredam por um caminho diferente. Em breves traços, este novo caminho prepara uma súmula que reúna o pensamento de Saramago sobre a natureza humana e a emersão desta nas condições sociais; ou melhor dizendo, o homem compreende-se a si próprio e age consoante as condições em que vive. Nada poderia estar mais perto do velho aforismo de Marx “os homens fazem a sua própria história, mas...” do “18 de Brumário”. Será por conseguinte uma fase de teor mais político, através da qual Saramago pretende intervir, literariamente, nos caminhos da emanciapção política dos cidadãos. Esta fase mais programática é igualmente marcada por laivos de grande imaginação, como seja a parábola platónica de “A Caverna” ou o grito mobilizador de o “Ensaio sobre a lucidez”. Não obstante, afiguram-se-me obras menores onde o papel da imaginação serve mais de respaldo para uma ideia, para uma tese, que atravessa todo o livro, do que uma construção fantasista dos personagens e das suas situações.
Todavia, é inegável que num panorama geralmente pobre em termos de literatura fantástica, Saramago rompe com esta modorra herdada e institucionalizada para nos oferecer um universo múltiplo e mutante; caleidoscópio de personagens e enredos que possuem, para além da estrutura ficcionada do género romanesco, verdadeiras incursões no plano do fantástico.
Neste contexto, Saramago é a dois títulos um autor atípico. Primeiro, não está preso a convenções narrativas, nem do novo a todo o custo – esta pressão quase autónoma para a originalidade – nem tão-pouco à herança dos dois grandes vultos literários, Camilo e Eça, com as suas casas senhoriais e genealogias que ainda perpassam por grande parte da literatura portuguesa. Segundo, porque as suas fontes inspiracionais são algo insólitas nos escritores da sua geração. Começando por Kafka, de cujo próprio Saramago se confessa discípulo, passando por Borges, Swift ou Melville, desembocando no Padre António Vieira do qual Saramago herdou a oralidade que tinge as suas frases e a forma de articular as ideias, tão bem expressa no prolongar dos períodos para além do convencionado gramaticalmente. Referências que encontramos (com a excepção do Padre António Vieira) reiteradamente na nova literatura nacional; o que faz de Saramago o mais jovem dos velhos escritores portugueses.
A direita quando ataca Saramago, não está apenas a atacar o homem Saramago – isso seria demasiado fácil. O que a direita teme é o poder disruptivo da imaginação. Algo que se encontra bem patente, por exemplo, no ancilosamente formalístico da escrita de Agostina ou dos romances de Vasco Graça Moura. Uma eterna repetição que não deixa espaço para novos mundos.

Friday, July 27, 2007

Eu queria ser Saramago, lálá lálá lálááá

A homens pretensamente sérios tolda-se-lhes a razão quando se fala de Saramago. Luminárias da nossa praça letrada não conseguem reprimir, nem por decoro, o seu ódio, dir-se-á mesquinho, ao velho escritor. E a acusação é marcial: sem apelo nem agravo – esfole-se!
Leio aqui e aqui que Saramago é mau escritor. Um deles, o Tunhas, nem se dá ao trabalho de elencar razões que sustentem o seu julgamento. É mau porque ele diz que é mau – mai nada! Lembra um tal de Sousa Lara que em tempos invectivava Saramago colocando-o sob o libelo de analfabeto, que não sabia pôr vírgulas e que não semeava onde devia os pontos finais. No Lara, que não subsistiu, como a canção, foi-lhe colocado um ponto final; a Saramago, pelo contrário, foi-lhe concedido o Nobel. Ter-se-á o Lara roído com tamanha ironia, conquanto injusta, do destino? Não interessa, sinceramente. E não interessa porque as acusações actuais são ainda menos especiosas, mas nem por isso menos capciosas. O Tunhas alega ter lido dois calhamaços de ensaios de Coetzee, e talvez por os ter lido, ou só por agora os ter lido, chegou à conclusão que Saramago é mau. Do outro lado, não tão assim afastado, porque as afinidades electivas, como é sabido, encurtam o espaço, diz o Pitta que sim senhora, que concorda e que desde os discursos de Américo Thomaz que não havia nada tão mau na prosa portuguesa. Prosápia não lhes falta. O Pitta também não evoca nenhum argumentário literário, nem tão-pouco uma nesga de cânone que, em virtude das suas capacidades excludentes, pusesse Saramago à míngua de reconhecimento. Se é verdade que Coetzee possui autoridade de sobra para discretear sobre grandes e médios vultos literários, nunca ele comete o pecadilho de dizer, mediocremente, este escritor é mau porque eu acho que ele é mau. Temos portanto o primeiro corolário: o Tunhas emborcou os ensaios do Coeetze, mas não foi por isso que aprendeu o que é criticar um autor. O Pitta é escritor consumado e com provas dadas, mas não é por isso que tem autoridade para criticar Saramago; pelo menos enquanto esta crítica se valer de uma obstinada birra pessoal.

Maddie World

A cara da pequena Maddie enfeita as paredes do Algarve. De Lagos a Vila Real de Santo António, o rosto de Maddie assoma em cada esquina, em cada coluna, em cada cabeleireiro, em cada agência imobiliária. O semanário inglês “News” exaspera por notícias da pequena Maddie, no meio de anúncios de propriedades para venda a preços escandalosos. A Maddie, lá está: grandes olhos assarapantados e risonha como todas as meninas da sua idade que passam férias numa vivenda de luxo no Algarve. É preciso reconhecer que os pais da Maddie puseram meio mundo em polvorosa. É preciso sublinhar que a indigência das forças da autoridade portuguesas foi arrastada pelos grandes media internacionais e ainda o último “News” se insurge perante o facto de o governo português pretender concentrar as forças de segurança em Lisboa devido à presidência europeia. Da Maddie, provavelmente, não vamos mais ter notícias, para além dos seus grandes olhos que surgem inesperadamente (ou nem tanto) de dentro dos correios algarvios.
Mas a pequena Madddie tem um preço, mais precisamente, 10.000 euros a quem oferecer alvíssaras sobre o seu paradeiro. O preço espelha o desespero dos pais. O mundo sufoca com o caso da criancinha desaparecida que não faz mote com o velho caso das criancinhas desaparecidas do doido genial Luís Pacheco, não só por serem estas várias, como também porque o teor do caso era bem diferente. A Maddie não deixa por isso de ser um caso. Assim o transformaram a imprensa, a televisão; e até Lagos que nunca tinha passado das costas da Mauritânia eventualmente pela boca de algum trabalhador senegalês recambiado pelas autoridades portuguesas – desta feita de imarcescível eficiência – anda agora a voejar pelos olhos paranóicos dos americanos de New Jersey. Quem rumou à grande América, com esperança de aí aprender técnicas que já deram provas na captura de terroristas da secretíssima al qaida, foi o pai de Maddie. Socorreu-se do melhor –dizem – instituto do mundo para a busca de crianças desaparecidas. Um dos responsáveis tranquilizava o pai de Maddie com palavras impregnadas de certeza e da prontidão dos grandes ideais. Dizia “we shall do whatever we can to recover your daughter” ou qualquer coisa do género. E o semblante do pai de Maddie descontraiu por momentos perante aquela assunção de eficiência reconfortante. Já não era o terceiro mundo. Nestes pode confiar-se, lia-se no sobrolho subitamente descomprimido do pai da pobre criança.
Do outro lado, na aldeia natal do pai de Maddie, trabalha uma mulher de 30 anos imigrada do Sri Lanka. Para que as mulheres das famílias como a de Maddie possam ter carreira, singrar na vida e ainda terem tempo para beberem chá com as amigas, também elas donas de promissoras carreiras e fazedoras de famílias como as de Maddie, é preciso uma mulher do Sri Lanka imigrar para cuidar de outras Maddies. Muitas Maddies a serem apascentadas por outras tantas mulheres do Sri Lanka e de outros lugares longínquos. Todas estas Maddie, Sue, Ann, Jo, etc, criadas e, de alguma forma, recriadas por mulheres do Sri Lanka que permanecem anónimas porque a imprensa não lhes prestou atenção, senão para as englobar num qualquer número redondo que encha uma parangona num tablóide anti-imigração. Mas ao que ninguém prestou atenção, é que esta mulher, imigrante do Sri Lanka para os bons auspícios das casas abastadas de Stratford-upon-Avon, deixou para trás três filhos, cujas fotografias não vão aparecer em todas as esquinas, nem nas vitrinas dos cabeleireiros, nem nas portas dos correios. Ficaram para trás. Para que a mãe lhes pudesse dar de comer e pagar a educação é preciso que esteja presente para satisfazer as pequenas urgências, os caprichos, as rotinas, as carências de uma qualquer Maddie cujos pais não vão oferecer recompensas a quem recuperar os filhos perdidos da sua nanny.

Friday, July 13, 2007

Imaginando o Leste

Uma recente sequência de filmes do eixo anglo-saxónico mostra com rutilante impressionismo o poder dos esteriótipos. São eles Hostel1 e 2 e Severance.
Tarantino assina, como produtor, o primeiro deste trio. Tarantino é provavelmente, dos realizadores de culto, o mais medíocre da actualidade. Se conseguiu enganar meio-mundo com “Reservoir Dogs” e “Pulp Fiction” – uma variação mais elaborada do primeiro -, foi porque a crítica está demasiado obsecada por tudo o que seja novidade num panorama cinematográfico distendido até à descaracterização. Mas depressa se veria que a estrela de Tarantino era cadente, e nem sequer os três tradicionais desejos o salvavam de cair recorrentemente na mais pura banalidade, repetição e voyerismo. Sim, já me esquecia, deu-nos também Kill Bill1 e 2. Perdoem-me a heresia, mas depois de passar o tal efeito de novidade a única coisa que fica na retina é quão idiota pode um realizador ser com as suas trapalhices manga e os seus acessórios retro qualquer coisa.
Porventura, mais do que os filmes que contaram com a sua paleta de surpresas antecipadas, foram aqueles a quem ele deu a mão que representam seguramente a obsessão ridícula por este estilo de cinema mentecapto. Basta lembrar experiências inenarráveis como “From Dusk untill Dawn” ou a sequela do “El Mariachi” de Rodriguez, filme que em retrospectiva nos podemos perguntar como foi possível admirá-lo! O último desta prodigiosa fábrica de enganos, cuja realização coube a Eli Roth, chama-se “Hostel”, ao qual se seguiu – porque uma desgraça nunca vem só - o seu homónimo, Hostel 2.
Em “Hostel”, ficamos a saber que não há homens suficientes na Eslováquia, sobretudo em Bratislava, por causa “da guerra”. Mas que guerra? A II Guerra Mundial? A avançada do império Otomano sobre o seu congénere Austro-Húngaro? Não interessa, porque para os americanos é tudo igual: houve uma guerra lá para aqueles lados, por isso tanto faz que seja na Eslováquia, como na Croácia, como na Sérvia – é lá p’a Leste!
O facto é que sem homens nativos é preciso jovem prole americana para fecundar tanta pássara esvoaçante. Mais uma vez, o que é a Eslováquia senão os nomes estranhos que os bons dos americanos lêem nas capas dos filmes porno prometendo uma constelação de novas estrelas de alva compleição e dispostas a tudo – ainda por cima bonitas comó raio? Por isso se assimila rapidamente toda uma região a um caleidoscópio porno, povoado de Svetlanas que vão surgindo uma após outra numa sucessão vertiginosa digna de uma matrioska sob o efeito de roipnol. Para os americanos, aquilo ali é um quintal “pornotópico” de pernas abertas para os seus jovens em digressão de fim de curso. E pobres Svetlanas, privadas do membro erecto dos seus conterrâneos masculinos, vítimas ceifadas pela guerra (?), estão ansiosas por receber nos seus tumescentes regaços, os bravos soldados americanos. Mas como não há bela sem senão, estas Svetlanas escondem um segredo obscuro – de uma negritude que nem as mais demoníacas mentes do III Reich poderiam imaginar.
Claro que o Leste não é só putas e bares baratos. Não. É simultaneamente um repositório de sadismo, malevolência e perversidade como não existe em mais nenhum lado. Suspeita-se que exista uma associação subterrânea entre este sadismo manifesto e a herança comunista. Na imaginação do gigante americano, o Leste libertado gerou dois fenómenos: as mentes pervertidas dos filhos da catástrofe comunista; as mulheres que alimentam a florescente indústria pornográfica. Há, obviamente, uma continuidade entre a violência da pornografia e a violência gerada pelo sadismo paroxístico dos ex-comunistas. Se o libertinismo que a primeira promete tem que ser expiado pelas mentes distorcidas do sub-texto cristão de grande parte dos realizadores norte-americanos, a violência extrema funciona justamente como o instrumento da expiação. Foste para pecar porque a carne é fraca; terá que ser na carne que deverás sofrer até ao lmite do suportável. Nisto os dispositivos do pecado e da expiação encontram-se bem vivos no novo cinema de horror.
Contudo, as imagens recriadas de um Leste longínquo e por descobrir, possuem outra peculiariedade. A violência não é instrumental. Severance surge como o exemplo paradigmático de uma violência totalmente irracional que não encontra justificação senão ne própria natureza pérfida dos seus agentes. Se nas representações dos terroristas, em filmes de acção como Força Delta e outros do mesmo género existe, apesar de tudo, uma raiz para a violência – o fanatismo religioso, o poder ilimitado, a destruição do modo de vida ocidental, etc –; nas representações do “Leste” a violência irrompe como um automatismo. Tanto mais (i)natural quanto o seu sadismo é simplesmente jouissance. Daí a continuidade entre o puro gozo sexual, simbolizado pela satisfação imediata e mecânica da pornografia, e o seu reflexo, a violência sádica do pormenor. Esteticamente são ambas contíguas. O gozo da carne nua encontra a sua fetischização no pormenor da tortura, na exposição detalhada da, afinal também ela violação, do corpo. Porque não é da abstracção “violência” que estamos a falar. É da sua concretização minuciosa no corpo através desse mecanismo de esquadrinhamento do mesmo chamado tortura. Neste sentido, estes três filmes não apenas fixam uma representação do Leste, como anunciam a banalidade da tortura, a procura da total sujeição do corpo de outrem. O Leste surge assim como o inominável do sonho americano: pornografia e Guantanamo; sujeição e tortura. Paralelo que o realizador de Hostel, Eli Roth, é o próprio a assumir e que tem vindo a anunciar em diversas entrevistas; curiosamente sem se ter apercebido que para o “expressar” cinematograficamente foi preciso expurgá-lo para Leste. Assim se exorcizam os demónios internos.

Thursday, July 12, 2007

A (i)lógica do ressentimento

Although the work of redressing which needs to be done may appear too daunting, I believe it is not one day too soon to begin. Conrad saw and condemned the evil of imperial exploitation but was strangely unaware of the racism on which it sharpened its iron tooth.

Chinua Achebe, o escritor nigeriano que ganhou o Booker prize deste ano, conta no seu currículo com um
ataque perfeitamente assassino contra o Heart of Darkness. Aliás, foi justamente isso que me suscitou o texto anterior.
Um dos seus argumentos é o de a obra ser “racista”. Achebe é retratado em Elisabeth Costelo como o intelectual africano par excelence. O que isto significa é que Achebe tem uma ideia muito concreta do que deve ser a cultura africana; uma ideia política e politizável dessa mesma cultura. Daí não advém nenhum mal ao mundo. Mas uma posição demasiadamente ancorada num entendimento culturalista da literatura pode ser grotescamente enviesada, como eu penso que esta é. Entendo por um entendimento culturalista da literatura, sobretudo neste caso concreto, uma perspectiva que privilegia as linhas de fractura e as deslocações através do eixo branco-negro. As dicotomias em que este eixo se desdobra são bem conhecidas – civilização/primitivismo, educação/selvagem, lógica/ilogismo, resumidas no par canónico cultura/natureza. Achebe analisa esta obra de Conrad, em particular, sempre através deste prisma, ou seja, de oposições racializantes. A mulher negra que vive com Kurtz, segundo a interpretação de Achebe é o contraponto selvagem da mulher branca londrina que ama Kurtz na metrópole. A primeira é descrita como um animal coleante, a segunda como a mulher educada e contida, como convém a uma dama londrina. Depois temos o rio. O Thames, na entrada, seguro e de águas plácidas, não apresentando qualquer risco para a navegação. O Congo, ao contrário, perigoso, imprevisível, tumultuoso, enfim, ingovernável. Temos também os nativos que pelas suas feições e movimentos se assemelham aos animais que se acoitam na selva – donde aliás saltam abruptamente ao longo de toda a narrativa – por oposição aos gentlemen da administração colonial. Kurtz, neste sentido, encontra-se numa zona intermédia, uma zona charneira onde as definições deixam de ser tão nítidas. É engraçado que Achebe não se demore muito sobre a personagem de Kurtz. O seu objectivo é provar que o Heart o Darkness é racista, no que poderá eventualmente ter razão. Mas tal facto não significa necessariamente que se deva concluir que, por isso mesmo, não passa de uma obra menor. E é neste aspecto que devemos estar vigilantes e rejeitar a leitura culturalista de Achebe. Lendo a crítica corrosiva de Achebe é difícil não concordar que estamos em presença da famosa retórica do ressentimento. Mais, que estamos em presença de um exemplo daquilo que H. Bloom cunhou de “escola do ressentimento”. É, com efeito, tanto uma “escola”, como uma perspectiva impregnada de ressentimento. Não se coloca em causa a possibilidade, e até a obrigatoriedade, de analisar o discurso intrinsecamente colonialista que colora todo o texto. Importa, no entanto, afirmar que daqui não se segue que uma obra possa ser valorada segundo critérios de qualidade que, segundo esta lógica, seriam forçosamente intersectados pelo seu impacto positivo ou negativo, impacto esse de pendor moral. Não deixa de ser curioso como Achebe se concentra no Heart of Darkness, enquanto obra racista, nunca chamando à colação essa outra fantasia colonialista, porventura arreigadamente mais colonialista ainda, que é o Nostromo. Será porque as dicotomias racializantes não encaixam tão perfeitamente? E no entanto, o mesmo olhar paternalista, a mesma lógica da missão civilizacional, o mesmo olhar depreciativo sobre os nativos perpassa por todo o livro. É facto que a dicotomia branco-negro não é mais operativa; mas a mesma crítica pós-colonial pode ser perfeitamente aplicada a Nostromo com os mesmo benefícios hermenêuticos. Mas isto equivaleria a resvalar para fora da esfera do ressentimento. Num escritor africano não seria mais compreensível uma crítica moral que não o ligasse historicamente à obra em questão. Melhor dizendo, a força de uma tal análise perder-se-ia caso o lugar de vítima estivesse vedado ao seu crítico. É aqui que o “ressentimento” se impõe e traduz não tanto uma especial conexão com o conteúdo da obra, o que lhe poderia outorgar maior autoridade na sua interpretação, mas antes uma sobreposição à matéria da obra. Traduz, no fundo, uma deslocação, não do texto, mas do lugar do crítico, assumindo este último um lugar privilegiado que o dotaria, putativamente, de um acesso único à “verdade” da obra; lugar esse que é imediatamente caucionado pela cor da sua pele.
Regressando a Nostromo, mais do que a concentração nos arquétipos que percorrem o Heart of Darkness, será mais instrutivo encontrar paralelos entre o heterodoxo Kurtz e o mítico Nostromo. Ambos são figuras que se encontram para além da ordem sua coetânea. Ambos se rebelam contra aquilo que se convencionou chamar de “sistema”. Em ambos se encontra aquele excesso que desequilibra a normalidade. Nostromo é-nos apresentado como um homem de coragem e resistência incomuns. Em certa medida faz lembrar o famigerado tenente Blueberry de Giraud – ou ao contrário, mas a angústia da influência permite estas liberdades assincrónicas. Há outros paralelos, estéticos, entre as duas obras que são igualmente de salientar. Quando Marlow e o seu vapor vogam sem rumo por entre o denso nevoeiro da selva africana, é difícil não recordar Nostromo e o seu companheiro de viagem perdidos no mar-alto, envoltos na mais ameaçadora escuridão. São ambos momentos preparatórios para uma revelação; momentos de impasse que efectuam um corte na narrativa como se necessário fosse um último teste à resistência dos homens antes da ulterior, e prometida, revelação. Têm muito de mitológico, ambos os momentos. Não conheço melhor descrição do silêncio, em literatura, do que este vogar sem rumo na mais acabrunhante escuridão que nos é relatado em Nostromo. Chamar-lhe-ia, o momento literário, termo que significa o espaço textual que singulariza um livro.
O que pretendo salientar é que a crítica pós-colonial exerce uma violência exacerbada sobre as obras. Na análise de Achebe, Heart of Darkness é retirado do seu contexto, tanto histórico como literário, para paradoxalmente ser posteriormente injectado de apenas alguns aspectos, dir-se-iam, traços civilizacionais, dos quais o autor retém os que mais lhe convêm para sustentar a lógica do ressentimento. Sem dúvida que quer Heart of Darkness quer Nostromo se encontram imbuídos de um padrão moral colonialista, de trejeitos afins ao Orientalismo, assim como Said o caracterizou. Sem dúvida também que estes trejeitos não são inócuos e que a sua sedimentação através das imagens, metáforas e parábolas que as obras albergam se traduz numa reificação do poder de matriz colonialista. Porém, uma coisa é ler as obras tendo essa matriz presente; outra coisa é julgá-las porque elas são informadas por essa mesma matriz. Nada é mais pobre para a literatura do que julgá-la segundo uma agenda de emancipação social.

The horror, the horror!

O Heart of darkness de Conrad possui diversas dissemelhanças com a sua adaptação cinematográfica, o conhecido Apocalypse Now. A primeira é a figura de Kurtz. Na representação de Marlon Brando, Kurtz é um homem imponente, pesado, de gestos demorados e lânguidos que se confundem com os de um scheik ou de um imperador romano. Na descrição de Conrad, Kurtz é um homem esquelético, com as omoplatas perfeitamente desenhadas sob uns ombros descarnados, os braços compridos e adejantes como a ossatura de um pássaro. Pelo seu corpo perpassa a aura da doença, do esgotamento, do último suspiro do moribundo. Os olhos são cavados e por vezes inexpressivos, mas guardam aquela nitidez de alguém que sabe que a morte se aproxima. Que contraste com o Kurtz-Brando, com a sua postura ameaçadora e o olhar alucinado de um Serial-killer em noite de matança!
A segunda dissemelhança prende-se com a morte de Kurtz. Este morre de facto; mas não é assassinado, e a mão de Marlow (o narrador) serviu mais para o desterrar numa liteira do que para o assassinar com um punhal. O anjo assassino cuja representação cabe a Martin Sheen não encontra paralelo no eloquente Marlow e nos auspícios do seu barco a vapor. Kurtz acaba por morrer na viagem de regresso, uma morte inglória e sem heroísmo pontuada pelas famosas palavras – essas sim retidas na adaptação de Coppola – the horror, the horror! A diferença é que não há qualquer batalha titânica – mesmo na sua dimensão psicológica – entre o bem e o mal, figurados pelo embate, tanto físico como psíquico, entre Sheen e Brando. Mas a mais fundamental das omissões, quanto a mim, encontra-se no facto de a mulher que absolve Kurtz pelo poder do amor não ter qualquer paralelo no Apocalypse now. No segundo, a história de Kurtz morre ali, nas densas florestas do Cambodja. Assim como continua na mente de Marlow na elegante metrópole londrina. O amor de uma mulher que diz ser a única a compreender Kurtz é acompanhado pela admiração, melhor dizendo, o fascínio, do homem que empreendeu a viagem mais arriscada da sua vida pelas brenhas do desconhecido, apenas para enfrentar o enigmático Kurtz. Quando esta mesma mulher o interroga sobre as Kurt’s famous last words, Marlow evita o “the horror” e mente, dizendo que estas foram o nome da mulher que sempre o amou. Nem ela podia esperar outra coisa, anuindo que só essas poderiam ter sido as suas últimas palavras. Porque não quer Marlow magoar a mulher que sempre amou Kurtz e que tem ele a ganhar com isso? A resposta, alvitro, encontra-se no nome “Kurtz”. Como alguém repara durante a narrativa, Kurtz possui a mesma sonoridade de Kurz, que em alemão significa “curto”, “pequeno”, “breve”, “rápido”. São portanto aproximações fonéticas. Julgo que o mistério de Kurtz não se encontra na possibilidade de ele ser a personificação do mal, como sugere a interpretação de Coppola, mas antes de ele ser a personificação da vida, com o seu correspondente lado negro, obscuro. O arquétipo a que Kurtz convida prende-se mais ao vitalismo nietzchiano do que à maldade mefistofélica. Se Kurtz é um problema, é-o na medida em que rompe com as regras do sistema, na medida em que já não é passível de ser controlado pela máquina do império. A curiosidade de Marlow por Kurtz é inteiramente correspondida quando confrontado com o reino de liberdade que este último construiu, longe do cinismo civilizacional. Não entro na análise da estrutura imperial que é patente em toda a obra e que Said teve o mérito de nos oferecer as coordenadas. Com isto quero dizer que não me sinto propriamente à vontade com as leituras pós-coloniais de alguns romances da viragem do século – não creio que acrescentem grande coisa, nem que esclareçam o suficiente. Parece-me que mais importante do que esta estrutura implicita, é a explícita exploração dos limites do humano e da sua psicologia. Só assim se pode compreender que Marlow pronuncie a seguinte frase que contém uma suma beleza aterradora “We live as we dream – alone”. Este é o segredo de Kurtz; é esta a mensagem que a brevidade da sua vida pretendeu contrariar.

Monday, July 09, 2007

Há, mas são verdes!

O Live Earth teve um certo sabor amargo. Não é que tenha divergido muito do seu predecessor Life Aid em matéria de parafrenália e contribuições, ressalvando os avanços técnicos e as novas estrelas. Mas há qualquer coisa na produção musical, artística, no "show bizz", o que lhe quisermos chamar, actual que falseia imediatamente estas iniciativas recobertas com a patina da moral samaritana. Ouvir as pussycat dolls, que têm mais de pussy do que de cat, a cantar o vibrante e magnético refrão “don’ t you wish your girl friend was hot like me” naquilo que se assemelha ser a canção mais sexista e fútil dos últimos 50 anos esmorece a energia benfeitora mesmo da alma mais caridosa. No meio daquele desperdício de recursos a pergunta ingente seria, mas que tem isto a ver com a saúde da terra? Que realidade telúrica se pode esconder nestes esganiços que possa irmanar os elegíacos “cantos” de Whitman? Lá apareceu Al Gore na sua viagem de promoção à custa do efeito de estufa e das mazelas da estratosfera. Vi o filme que produziu em mim um efeito de estucha. Gostei da forma profissional e mestria com que Al Gore faz os slides sucederem-se uns aos outros em perfeita sincronia com o arrazoado ambiental. É de fazer inveja a qualquer amador do powerpoint. A mesma cadência, o mesmo perfeccionismo, podia ser detectado nos desempenhos das estrelas pela terra – não fosse a atonia que as estrelas, quando privadas da tecnologia de estúdio, demonstravam acintosamente. Berreiro em desgarrada; sem playbacks nem truques de caixa de mistura, o unplug é um horror para as novas promessas do pop. Numa palavra: não cantam nada. Só isto já gerava mau ambiente que chegasse. Mas não chega. Visto bem todo aquele excesso de luzes e pirotecnia anunciava a nova sociedade da informação e esta, porventura, só será compatível com a qualidade ambiental se foram utilizadas criteriosamente lâmpadas de halogéneo. O que eu espero vivamente que tenha sido seguido durante os preparativos de tão imorredoira iniciativa! E todavia tudo aquilo ressumava a disparate. Mesmo as admoestadoras palavras de Al Gore soavam a má produção de série B, um tanto ou quanto gore.

Este Gore, o que já andou em corridas presidenciais e asseguraria a mesma caso o dito presidente se finasse, identifica o calcanhar de Aquiles do futuro terrestre na falta de utilização das chamadas tecnologias verdes. Não sei se verde tem a ver com o caldo, mas assim como assim eu mergulharia o Aquiles até o submergir sem que ficasse calcanhar ou tornozelo ou sequer dedo do pé de fora. Que quereis dizer, ó velho Tirésias? Digo eu, porque do velho, do Tirésias, pouco sei e julgo que não estaria inclinado para tão sarnento assunto; dizia portanto, que a machadada final seria justamente nos padrões de consumo. Ó horror. Ou, the horror the horror que vou citar por aí. Ou, mas se assim fosse onde caberiam as pussycats, as madonnas e por aí afora? Pois não cabiam. Assim como o Elton John pouco diria aos mortos de fome do Sudão e aos desidratados do Darfur. Ah, mas isto é a terra, e a terra toca a todos; assim se a fodermos é a todos que fodemos! Até pode ser. E há uma certa beleza neste ecumenismo da perdição – o final ou é total ou é apenas uma má mímica do desejo escatológico. E nisto seria eu secundado por algum Sionista mais inconformado. E afinal a terra caraças? Pois a terra tem que se lhe diga. E o que se oferece dizer assim às primeiras é expresso por uma equação que tem tanto de singelo como de irredutível: o consumo excessivo obriga à produção excessiva; os recursos são escassos, como não nos cansamos de aprender logo nas primeiras páginas do velho e carcomido Samuelson; logo, se continuarmos a ser impelidos a consumir cada vez mais saltando para uma diversificação geométrica é natural que a produção tenha que acompanhar o ritmo; ao acompanhar o ritmo, a produção vai exigir cada vez mais dos recursos, actualmente escassos. É um ciclo vicioso, à boa maneira dos ciclos e dos nós górdios. O que Al Gore não se atreve a dizer é que, para arrepiar caminho, tal como com o nó, é preciso cortá-lo. Cortar o nó significa cortar nas pussicats, nas madonnas e afins. E isso não seria muito bem visto pelo mesmo capitalismo desorganisado que inventou este late comer designado “tecnologias verdes”. Assim dizia Jacinto Romarigães, a propósito das soluções para o estiolar da terra: há, mas são verdes.

Friday, July 06, 2007

olha quem fala....

De que se fala quando se fala do controlo dos media e das notícias pelo governo? Fala-se de supostas pressões que o governo exerce sobre os produtores da informação, os meios de comunicação social. Como se toda a instrumentalização da informação só pudesse vir do estado. A verdade é que ela vem antes de mais dos prórpios meios de comunicação social, ou melhor, dos seus proprietários e da sua hierarquia interna, sobre os produtores directos, ou seja, os jornalistas. Mas isso, diria um liberal, é a política interna das empresas de comunicação. Enquanto que as pressões governativas para uma informação que seja conforme aos seus objectivos é criticada, e bem, já as manipulações grosseiras dos meios de comunicação privados são aceites exactamente pelo facto de serem privados. A instrumentalização das notícias, quando é feita por interesses privados, passa a ser ponto de vista ou opinião.
É este o estado de coisas que permite que Balsemão diga o que disse sem que ninguém o critique. Ou que os comensais não se tenham desatado a rir com alguém que diz defender a liberdade de informação, mas defender no mesmo discurso a concentração empresarial dos meios de comunicação social. Estes gajos são uns pândegos.

Europa sentimental

http://www.youtube.com/watch?v=_GccMzbgOrY

A Europa não é só sexo e orgasmos

Thursday, July 05, 2007

MIL e uma razões para desconfiar do abaixo-assinado




São rápidas e aqui não vão ser analisadas exaustivamente. No fundo, as razões para não assinar esta petição prendem-se com os signatários. Um movimento denominado Movimento Informação e Liberdade que conta entre os signatários nomes como Manuela Moura Guedes, Eduardo Moniz e, last but not the least, José Manuel Fernandes, só pode ser para a pândega. Seria um pouco como ter o Bush signatário de um movimento para a paz mundial ou o Papa pertencer a um movimento a favor da interrupção voluntária da gravidez. A contradiction in terms, pois claro.
Entretanto, para que se perceba que os nomes dos signatários de um abaixo-assinado dizem muito das intenções que lhe estão subjacentes, ver este exemplo.
Mas se quiserem escalpelizar o assunto, é ler aqui

Cambada de hipócritas!



Há muita merda na publicidade. Merda sexista, discriminatória, racista, e outros pecadilhos da moral e dos bons costumes. A publicidade é mesmo assim, é um reino que não está para ser absolvido pela consciência, mas sim pela sua eficácia. Que os orgasmos do cinema europeu impressionem tanto estas mentes puras significa que há ainda uma imersão – eventualmente não intencional – no caldo viscoso da senhora de fátima.
O clip publicitário sobre o cinema europeu tem a virtude de mostrar que as quecas europeias são bem mais sonoras que as americanas. Ou não tivessem os últimos que adaptar para a sua língua o francesismo “french kiss”.




Coisas engraçadas sobre imigração pelas bocas dos portugueses

Sun Tzu dos pobrezinhos


Fundamentalmente, o
que pretendi foi chamar
a atenção para os aspectos
comunitários e psicológicos
da liderança.
A liderança não é uma
ciência, é uma arte (...)

A propósito de um seminário sobre líderes de associações de imigrantes


Do poder da ideologia

“Um total de 240.957 imigrantes estabelecidos em Espanha trabalha por contra própria, o que implica que um em cada seis estrangeiros se tornou empresário.”

Para quem não sabia, o BI deste mês esclarece que se se trabalhar por conta própria é-se empresário. Má sorte ter nascido puta!

Foste embora mamã, não me deixes aqui...

“A Odisseia de Henrique"


A sinopse diz que é qualquer coisa sobre um rapazinho que percorre a América Latina para ir ter com a mãe, mas desta feita aos States. Belas recordações de quando o Marco percorria as montanhas verdejantes à procura de sua mãe.

Let’s come together, shall we?


Portugal tem uma falha tectónica que o separa da Europa. Saramago já tinha tido essa premonição, só que a explicação que ele oferecia para essa discontinuidade não era, a outrance, a correcta. A falha encontra-se especialmente alargada nos nossos liberais; mais propriamente nos nossos intelectuais liberais. O mundo é um paraíso de liberdades; o homem é dono e senhor de si mesmo; o indivíduo é sagrado, o deus das nossas virtudes. Tudo é liberdade, liberdade a que tudo exalta e a que tudo permite. Excepto o sexo.
Se quisermos delinear os contornos dos liberalismos, dos neoliberalismos e de outras emancipações individualizantes, uma das coisas que não podemos deixar de reparar é o tradicionalismo, em última análise a omissão completa, com que o sexo é perspectivado. Este fenómeno tem tendência a reproduzir-se. E raramente se encontram liberais em Portugal que se sintam verdadeiramente em casa no domínio do sexo.
As reacções dos ditos liberais da blogosfera ao clip de promoção do cinema europeu são a este propósito esclarecedoras. Por exemplo, um homem culto e inteligente como FJV insurge-se contra o vídeo no seu blog, rematando o seu post com um peremptório“eles andam a brincar” - os rabinos, acrescentamos nós. Como nunca o vi insurgir-se contra a visionação da cona da Paris Hilton em todos os ângulos e conformações, nem tão-pouco contra a paroxística aparição das mamas da Pamela Anderson, pergunto-me porque será que esta sucessão de orgasmos faz tintilar a consciência púdica de FJV (e de muitos outros!). A resposta que mais rapidamente me ocorre é: não é o sexo que os chateia; eles não gostam é de cinema europeu! Principalmente quando este vem gemido e palpado, suado e contraído, esmagado e distendido, e com muita carninha à mistura, então vade retro, deus nos acuda, satanás belzebu vira para lá o cu! E suspeita-se que é mesmo das cenas de cu que lhes advém a revolta. O cu, ultimamente, anda na blogosfera às mãos-cheias, nádegas e nádegas carnudas a merecerem tanta atenção e porfia que até o Botto ficaria estarrecido por tanto fascínio anal. Verdade seja dita, são outros os motivos que levam à fixação anal da blogosfera: o HIV e a discussão aqui já comentada sobre as maleitas da utilização do proibido buraco.
Sodoma caiu! A Europa se continua por este caminho de libertinagem e perdição não se salva do fogo divino. Tenham medo; tenham muito medo.

Wednesday, July 04, 2007

Teoria da conspiração

Espalhou-se a ideia de que vivemos num sufocante totalitarismo antidemocrático. Na blogosfera, na imprensa escrita, na televisão, são inúmeras as intervenções e testemunhos nesse sentido. A ideia não decorre de uma constatação genérica, discurso especializado sobre as agruras e novidades do hipermodernismo que tivesse a intensão de denunciar e analisar a nova sociedade de controlo. Pelo contrário, a ideia que tem sido reiterada até à exaustão prende-se com uma subterrânea ligação entre este putativo estado de controlo absoluto e o governo socialista. Aqui aparecem as mais disparatadas associações: desde o Ppereira e a horda de extrema-direita do Blasfémias e quejandos a equacionar a situação actual com o pesadelo Orweliano até ao latir do VPV no pasquim Publico a suspirar por tempos mais serenos onde as quinas ainda enfeitavam uma bela lapela de cor bége.
Há pelo menos duas ideias que perpassam nesta litania; as duas, quanto a mim, tão inteligentes quanto cínicas e mentirosas. Primeiramente, uma decorrência natural (estrutural) do ideário socialista para uma sociedade totalitária. Esta é a forma mais exagerada, mas porventura também aquela que provoca um impacto maior. As frases feitas vendem bem no mundo dos tablóides. Esta vertente apresenta o comportamento do partido socialista actual como a sua real natureza; uma espécie de revelação da sua verdadeira identidade que só poderia desembocar no controlo absoluto. Segundo esta linha de raciocínio, todo o socialismo, mesmo o socrático, acaba pervertido naquilo que em essência sempre sonhou ser: um Estado totalitário de poder concentracionário.
A segunda linha é mais branda e advoga que as formas censurantes deste governo socialista são qualitativa e quantitativamente diferentes das dos anteriores governos. É com Sócrates, dizem os seus arautos, que as liberdades se restringiram à sua menor expressão – porque o homem é despótico por natureza (lembra-se o jargão do quero posso e mando aplicado frequentemente a Sócrates) e porque quem lhe faz frente não resiste nem mais um dia. Um Calígula dos tempos actuais, portanto. Esta segunda vertente da paranóia libertária encontra a sua expressão mais enfática nos artigos de ABarreto.

Seja como for, a mensagem central é a de que se assiste a uma superlativização do poder socialista na sociedade portuguesa. Esta teoria, que tem muito de próximo com uma banal teoria da conspiração, parte do pressuposto de que a sociedade portuguesa era transparente e livre antes da chegada dos socialistas ao poder governativo. Elabora-se portanto consoante duas falácias, a saber, a sociedade portuguesa é transparente e os seus cidadãos são livres de optar, a sociedade portuguesa encontra-se refém de uma estratégia de sabotagem das liberdades individuais, estratégia essa que é reconhecível pelo proliferar do aparatus do poder. Esta proliferação não se restringe à mera constatação da distribuição de lugares públicos pelos membros do partido do governo, algo que seria prontamente assimilável a uma estratégia partidária. Vai muito para além disso. Assim, pode PPereira fazer soar os sinos a alertar a população contra a via verde, o cartão do cidadão, etc (estranho é que deixe de fora o telemóvel) num artigo que tem tanto de disparatado como de cómico (No Público de 26 de Maio de 2007 sob o título “Uma vida, uma ficha”). Todo o artigo sugere que esta parafrenália de tecnologias do poder foi implementada pela mão centralizadora de Sócrates. PPereira acordou para a evidência do controlo orweliano com a ditadura socrática; acordou portanto, tarde.
O que faz pena é que os “tempos que correm” mereciam de facto uma análise das deficientes liberdades e da gradual supressão dos direitos. Eventualmente enquadrada na conceptualização da hipermodernidade, que me parece ser o modelo teórico que melhor capta as modificações sociais e políticas pelas quais temos vindo a passar. A hipertrofia descabelada das críticas à conduta socialista esconde a exígua atenção prestada a estas dinâmicas, bem mais fundamentais para perceber o clima sufocante para onde as democracias actuais nos conduzem. Sucede que estas estão muito para além da efemeridade de um qualquer governo socialista.

Tuesday, July 03, 2007

La Racaille, aprés PPereira


Num texto pseudo-poético no Abrupto enumeram-se inúmeras coisas que interessam ao blog e ao seu autor. Uma delas é "a canalha revolucionária". A "canalha revolucionária"? Um gajo até fica parvo!

O tempo, a decomposição do tempo, a fragmentação do tempo, o tempo real, o tempo virtual, a poeira do tempo, naturezas mortas, poesia americana, inglesa, francesa, latina e grega, poesia portuguesa antiga, o padre António Vieira e o padre Manuel Bernardes, romancistas russos, pedagogias diversas, confessáveis e inconfessáveis, sentimentos não-românticos como a prudência e a virtude, os pecados todos, mortais e veniais, Deus, a história, os livros, as capas dos livros, a cor dos livros, os livros numa estante, os livros no chão, uma pilha de livros, o cheiro dos livros, ler os livros, feeding the monster com os livros, a leitura, o papel, o ecrã, a máquina de Turing, as bibliotecas, as máscaras, as personae, Chekov, o que nos faz falar, o que nos faz calar, planetas, estrelas, asteróides, galáxias, buracos negros, o universo, a mentira, Bernardo de Clairvaux, os clássicos, as traições, homens (e mulheres) maiores que a vida, a "luz do Norte", os diários, a decadência, a parafernália dos devices, viagens, vulcões, terramotos, maremotos, tempestades, perturbações, Don Juan, nostalgia, heimatlos, as formas antigas da sensibilidade, a "psicologia das massas", Veneza, o xadrez, a canalha revolucionária, jardins, o Inverno e o Outono, histórias aos quadradinhos, o trabalho, a memória, ficção científica, listas, filias diversas, country music, Borges, MyLife Bits, os media, a massagem e a mensagem, coisas que "m' espantam e m' avergonham", a Rede, os blogues, o "pimba", a hagiografia, o Islão, a fé dos simples, a descrença, o Aleph, o zénite e o nadir, D. Quijote de la Mancha, responder duro aos que nos tomam por parvos, a liberdade, a libertinagem, os eremitas, as torres de marfim, Albert Camus, Kafka, Valery, Pepys enquanto autores de blogues, livrarias, supermercados, centros comerciais, o "consumo de massas", ideias, gadgets, o Papado enquanto fio da história, os jornais, a erudição, a televisão, os dicionários, enciclopédias e o hipertexto, o que está lá fora, quase tudo, tudo.

Tempo da matança

Uma das coisas que mais passa despercebida às análises macro-estruturais, do tipo marxista, do poder é as pequenas, múltiplas e intricadas micro-relações de poder que acontecem diariamente numa organização. Très foucaultien, mon ami! Não o que eu aqui quero é expressar o meu ódio, até desbocadamente, em relação aos filhos da puta que andam sob a asa das chefias. Quando os marxistas, de todos os teores e quilates, vêm com a conversa do patrão-empregado, esquecem esta verdade banal: entre o patrão e o empregado intrometem-se variadíssimas camadas de cabrões, chupistas, filhos dum corno, que fazem as delícias da arrogância e do despotismo nos seus ademanes estudados e chistes alambuzados com a própria baba. São estes que matam. Os patrões estão lá tão longe como o Sol está de Plutão. E todavia precisam deste exército de vermes, e vice versa, este exército de vermes vai-lhes comer à mãozinha enquanto arregaça a cuequinha ofertando reverentemente o traseirinho. Estas chefias intermédias, as que fazem o trabalho sujo aos ditos patrões, são autênticas cascavéis. São estes que asseguram o poder, as formas de sujeição e a sua delegação dentro da organização. São estes cabrões que inscrevem nas suas condutas diárias a distância hierárquica. São estes borregos que aproveitam todas as oportunidades para reafirmar o seu poder revestido de sobranceria e desrespeito.
Uma das estratégias mais correntes, e também mais caricatas, destes cornudos é anunciarem que não têm tempo. Nunca têm tempo! Estão sempre com mil afazeres e por conseguinte a atenção que podem dispensar tem que ser mendigada, esmolada, implorada. Aí atingem o seu reinado de glória! É aí que sentem a plenitude da sua autoridade; autoridade que não é racional, no sentido do barbudo de Heidelberga, mas simplesmente brutal, arrivista, despótica. A escassez do tempo é manobrada com mestria por estes aprendizes de feiticeiro da subjugação. Sabemos que o tempo entrou definitivamente nas nossas práticas – e entrou de forma asfixiante e manietadora. Não ter tempo é dizer que se está muito ocupado; não ter tempo para outra pessoa ou assunto é relegá-la para os confins da escala de prioridades. Não adoram os médicos rever-se nas suas listas de espera qual espelhos que devolvem a medida exacta do seu poder, o simétrico da escassez do seu saber?
Mesmo que estes merdas passem a vida a bater punhetas nos seus escritórios privados e individuais, só para afirmarem a distância que lhes merece os títulos, hão-de sempre dizer que não têm tempo. E nós, os outros, os que temos tempo, não temos posição para os mandar levar no cu.

Monday, July 02, 2007

“Like a man waking in a grave”


The Road é romance estranho, oblíquo na sua mensagem e difícil de empatizar às primeiras. Fotografia cinzenta e árida, num crescendo de dor, desespero e solidão, eis o correr da Estrada que não acaba nem segue para nenhum lado. É o livro que agarra na tipicidade do road trip americano e o vira de pernas para o ar. Dir-se-ia que o sonho americano não encontra resgate na Estrada. O velho “on the road” como visão do pioneirismo da descoberta do homem de acção, do aventureirismo do self-made man, não tem equivalente no “The Road”. Por isso arrisco ver (ler) no livro uma crítica ao modelo americano tal qual o conhecemos. Há uma catástrofe que tem a dimensão do mundo. Há um país devastado do qual não há salvação. Mas sobretudo há um deambular sem destino aparente, e mesmo que esse destino chegue é só para confirmar que o deambular tem que ser forçosamente permanente. A transumância do cowboy? Não há vastos prados a perder de vista, nem linhas do horizonte como promessas adiadas. O cinzento, opaco, do ar carregado de cinzas apenas mostra que a conquista chegou ao fim: o sol mal vislumbrado por entre a cortina de sujidade irrespirável em que o ar se tornou; o mar no seu mortal ulular já sem vida para além do movimento das vagas. Não há esperança. O antigo território de fronteira de que falava Kenedy tornou-se no asfixiante espaço do medo e da desolação. América, América para onde foste que até os homens se comem uns aos outros?

Panaceia Universalis - o gesto redundante



Article 23



Everyone has the right to work, to free choice of employment, to just and favourable conditions of work and to protection against unemployment.
Everyone, without any discrimination, has the right to equal pay for equal work.
Everyone who works has the right to just and favourable remuneration ensuring for himself and his family an existence worthy of human dignity, and supplemented, if necessary, by other means of social protection.
Everyone has the right to form and to join trade unions for the protection of his interests.




Os Direitos Humanos são a nova religião. Não o digo como forma tanto enfática quanto vazia, mas porque tal como todas as religiões também esta possui os seus acólitos que são tão ou mais dogmáticos como qualquer catecista. Acrescentaria, contudo, que os primeiros se afiguram mais perigosos. O nome é usado com uma jactância que até aleija os ouvidos. Segundo estes Mormons dos Direitos Humanos basta citar uma qualquer obscura convenção e o problema fica resolvido. Os imigrantes ilegais não têm direito à saúde, sobretudo a tratamentos de longa duração? Não interessa, agita-se a convenção número não sei quê assinada na cidade não sei que mais e já está – problema resolvido. Pois, porque as convenções internacionais têm precedência sobre o direito nacional. É apenas questão de saber sacar da convenção mais apropriada para o respectivo problema. Escusado dizer que isto soa a música de câmara aos políticos e demais, também eles acólitos, do neoliberalismo. Afinal já está tudo resolvido: folheie-se os inúmeros catrapácios da fábrica humanitária de Geneva e lá salta uma convençãozita, se for caso disso até para o pé chato. O facto de não haver correspondência entre a letra da convenção e a prática parece preocupar pouco este bando de encomiastas da missão humanitária. Isso são meros detalhes. Nas suas cabeças sofredoras pelos desmandos da humanidade apenas perpassa a bondade (relativa) da respectiva convenção e a capacidade “lobistica” de uma dada organização.
Se houvesse aplicação directa do que diz uma determinada convenção não havia mais que preocupar. Mas na realidade existe um hiato entre as duas coisas e esse é precisamente ocupado pela actividade “lobistica”. Se para activar um preceito consagrado numa das convenções é preciso antes de mais recorrer a manobras “lobisticas” onde fica então a “verdade” da convenção? Melhor dizendo, se é preciso convencer uma determinada parte que, em virtude de possuir os recursos necessários, detém igualmente o poder para efectivar uma convenção, onde está então a sua força jurídica?

A Desg(raça)?

Já faz paragonas nos jornais. Anda gente preocupada na chamada esquerda chique. Os arautos da antidiscriminação vertem lágrimas amargas por essa perda. Do que é que se trata? Trata-se da machadada que foi assestada nas afirmativa action nos Estados Unidos. A ressolução do supremo rescende a fascismo e quanto a isso há poucas dúvidas. Mas a afirmative action tem que se lhe diga e não me parece assim tão mau que veja o seu termo seja em que governo for. A afirmative action em Holliwood possibilitou-nos ver os negros no papel de heróis que de outra forma estariam ainda a carregar malas em filmes de época sobre o South Dakota e a Louisiana. Mas isto é Holliwood que tudo recicla e tudo doura.
No acórdão faz-se eco das perturbantes razões contra a “racialização da política estatal” o que é um disparate hipócrita porque cada vez que há cortes nas ajudas sociais o efeito só pode ser racializante. Dito de outra forma, cada vez que se privatiza mais o sector da saúde o impacto é sobre as populações mais desmunidas, neste caso os afro-americanos. Da mesma forma, quem levou com a maior ventania durante o furacão Katrina foram os afro-americanos porque eram os que viviam nos piores sítios e os que tinham menos recursos para sairem da cidade. Por isso a racialização pré-existe a qualquer política estatal. O que me leva então a não discordar com os cortes na afirmative action?
Primeiro, a afirmative action tapa o sol com a peneira. Ao determinar quotas para uma população o que faz é reconhecer a assimetria dessa mesma população na estrutura de distribuição de recursos. Segundo, a afirmative action tenta corrigir uma situação, sedimentada historicamente, através do recurso a cosméticas demográficas.
Estou convencido de que nada foi pior para a luta contra a pobreza, a exclusão e a exploração do que o programa antidiscriminação. Não é tanto que este seja o bastião de todos os males como apregoam os conservadores e os radicais de direita. Mas quando esta agenda é manipulada e cinicamente usada para encobrir a tríade anterior, então temos um claro caso de pior a emenda do que o soneto. Enquanto os empregadores das grandes multicionais se preocupam muito em ter um menu variado à disposição para reconhecimento do cardápio multicultural, leis selváticas no mercado de emprego passam incólumes. Não admira portanto que os empregadores sejam atraídos pelo canto da sereia da antidiscriminação, enquanto se estão borrifando para os direitos dos trabalhadores. A agenda da antidiscriminação promove um segundo aspecto, porventura ainda mais prejudicial. Se as reivindicações sociais reflectiam uma base de apoio transversal e as lutas pelos direitos tinham um horizonte universalista, o programa antidiscriminação rege-se por orientações particulares e procura gerir casos de excepção. Dir-se-ia que de uma agenda emancipatória se passou para uma agenda correctiva.
Igualmente interessante é observar como os termos foram invertidos por esta obsessão pela discriminação. Assim será discriminação o que se caracterizar por um factor específico considerado como diferenciador, mas no objecto do próprio acto; e não é o acto que é discriminatório. Por conseguinte, ser despedido só é discriminação quando este factor específico se encontra na equação e pode ser invocado; porque quando ele não está presente, é um acto perfeitamente ajustável às circunstâncias estratégicas de uma organização. Esta translação do acto para o objecto é, obviamente, uma circunvenção da luta política. O direito à habitação passa a ser o direito a não ser discriminado por razões outras do que a simples efectivação desse direito, seja para quem for. Como se pode aceitar que o problema seja ser discriminado na habitação porque se é de cor e não o facto de não se ter acesso à habitação? Parecem as duas coisas iguais, mas não são. A primeira prende-se com um direito individual a segunda enuncia uma solução colectiva, mormente de distribuição de recursos. É justamente a passagem do colectivo ao individual que encontra o seu simétrico na passagem do “acto” para o “objecto”.

Hey Joe!


Berardo é a face do burgesso português. Neste caso, o burgesso rico, muitíssimo rico. Aquele que está sempre a atirar o dinheiro que tem à cara dos outros e que despreza o conhecimento e a intelectualidade. Berardo não vive num espaço antinómico como alguns se apressam a salientar: então como poderia ele desprezar a intelectualidade e comprar tanta arte? – crispam-se alguns, do mesmo lado “burgessante”, com os caninos salientes em defesa de sua majestade, o Joe. Neste conluio de “fachos” reconvocados com os capitalistas da nação impera aquilo que mais nojo mete no Portugal contemporâneo, a sabujice a quem tem o poder monetário, a quem pode comprar e vender sem qualquer respeito por aquilo que se compra e vende. Nesta animosidade contra Mega Ferreira mostrada por parte da blogosfera encontra-se a admiração tacanha pelo self-made man a quem se outorga o direito de escarrar em tudo e todos. O negócio que Berardo conseguiu do Estado português é uma afronta. Assim como é uma afronta os termos a que Berardo recorre para se referir a este contrato e à sua colecção em geral. Não me surpreenderia se Berardo tivesse alguém a escolher as obras de arte, um marchant d´art privado a quem Berardo confia os seus milhões para que faça bons investimentos. A maneira enfatuada com que Berardo fala da sua colecção; o que não diz sobre ela e o que deixa entrever de redundante e trivializante levam a pensar que Berardo tanto podia ter uma coleção de arte como de cachimbos que o resultado seria o mesmo.

I beg your pardon?

Numa conferência em lisboa Paul Gilroy contava que Gordon Brown, numa recente visita a um país africano, afirmara que estava na altura de nós (os britânicos) pararmos de pedir desculpa (pelo colonialismo, pela escravatura,etc). Que era altura dos governos africanos assumirem a responsabilidade pelo destino dos seus países, bem como as culpas pelo atraso económico dos mesmos.
Paul Gilroy dizia que, nos últimos 30 anos, tem andado à escuta, com muito cuidado, mas que nunca ouviu desculpas nenhumas.
Por cá a mesma coisa, já ouvi essa conversa centenas de vezes, "é preciso acabar com os complexos de culpa em relação ao colonialismo, blá, blá". Acho politicamente inócuos os pedidos de desculpa colectivos, mas quando me ponho a olhar à minha volta, para todos os cantinhos, pergunto-me a mim mesmo, onde é que anda tanto sentimento de culpa? É que bem vistas as coisas, temos mesmo muita razão para nos sentirmos culpados.

Sunday, July 01, 2007

As nossas liberdades. E as deles....

Voei recentemente da Inglaterra para Portugal. O embarque em Heathrow foi simplesmente de pesadelo. E nos dias seguintes sei que foi ainda pior. Agora, com o estado de alerta em que se encontram as forças de segurança inglesas, as medidas de segurança devem ter lançado os aeroportos no caos total.
Observo no jornal da TV2 um homem que diz que isto seria diferente se não fossem os cobardes que se escondem por detrás de máscaras e atiram aviões contra edifícios.
Por muito que detestemos o terrorismo que derrubou as torres do WTC podemos chamar-lhe tudo menos cobarde. Cobarde, quem está disposto a pagar com a própria vida a dedicação a uma causa, por muito detestável que ela nos pareça? A quem está disposto a usar o próprio corpo e a vida como arma? Quantos de nós, nas nossas sociedades de conforto, estaríamos dispostos a fazê-lo? Ah, pois, é a cultura deles, a religião, eles acreditam naquela cena das setenta virgens no céu...
Basta ver no Iraque, a quantidade dos que se suicidam para atingir os inimigos. Talvez valha a pena lembrar que a vida por aquelas bandas vale um pouco menos do que por cá. Que as expectativas de chegar a velho para quem não está disposto a aceitar uma ocupação estrangeira são provavelmente limitadas.
Para as populações do Iraque e da Palestina o incómodo também vem dos aviões. Ou melhor, das bombas que estes despejam sobre eles. Enquanto o turista inglês teme a ameaça de bomba, eles têm de aprender a viver com elas.
Chega pois de dizer que é a cultura de morte dos terrorista ou, pior, dos muçulmanos. Que eles odeiam as nossas liberdades e o nosso estilo de vida. O chamado terrorismo islâmico é uma questão política, que tem raízes históricas bem concretas, ligadas ao contexto de colonialismo e neo-colonialismo das potências ocidentais, que dominam o médio oriente desde o século XIX. É preciso topete para dizer que os colonizados odeiam a liberdade dos colonizadores! Marxismo vulgar, dirão. Cada vez mais acho que o que é preciso na política é Marxismo vulgar.