Monday, December 31, 2007

sem acentos

A morte de Benazir nao me surpreendeu. O que poderia surpreender numa morte anunciada? So se fosse a cronica (grande trocadilho). Mas e exactamente isso. E apesar de estar sem acentos, quero afirmar que o que surpreende na morte de Benazir e a cronica da sua morte anunciada. Surpreende porque a mentira se tornou um resquicio da banalizacao da opressao. Surpreende porque a maior democracia armada (como a cunhou PPereira, luzindo-lhe os olhos com uma conviccao de justeza e de bondade), os Estados Unidos nao sabem fazer outra coisa senao mentir. Nem e tanto que estes - os Estados Unidos, a patria da liberdade - mintam especialmente mais do que os outros. A diplomacia e um enredo de mentiras. Mas surpreende igualmente que devamos acreditar neles - esta entidade confusa a qual devemos jurar lealdade: in god we Trust and joint venture!
O mais provavel? O assassinato de Benazir por Musharraf ou pelos seus proceres. O mais improvavel, a al qaida ter alguma coisa a ver com o assunto. E Bush e o seus conselheiros a venderem ao mundo que estavam preocupados:; que Benazir era o seu candidato; que a democracia no Paquistao so podia ser defendida por uma mulher como Benazir, e mais a treta do costume.
Bandeira a meia haste na CNN. Um sorriso compungido assoma na boca da locutora. Por tras uma velha fotografia de Benazir sobrevoando fantasmagoricamente o tempo da sua vida. Nem mais palavras serviriam de epitafio.
Ninguem e louco. Ou melhor: ninguem e suficientemente louco para, nao sendo louco, arriscar a morte. Benazir deve ter tido garantias dos servicos secretos americanos. Porem, como ja vem sendo habito, enganaram-se. Terao dito que, sim senhora, que lhe dariam cobertura, que nao se preocupasse, que o Paquistao estava a beira de uma viragem historica, mais ou menos o que dizeram a Sadam quando este bombardeava o Irao.
E Benazir la foi. Saiu do seu exilio dourado para acabar nas maos de um bombista - daqueles, Benazir!, os que sao verdadeiramente loucos, os que se fazem explodir porque acreditam numa causa. Estes sao os loucos.
Por outro lado, Benazir foi a mais louca de todos. Acreditou na diplomacia; na diplomacia de Bush. E arriscou. Para mim so o fez porque tinha garantias. As mesmas que foram dadas em relacao as armas de destruicao macica do Iraque. As mesmas honestas garantias que sao dadas pelos mesmos servicos secretos americanos de que o Irao quer rebentar o mundo com bombas atomicas. E foi. Arriscou. Quis participar na onda de mudanca que varria o Paquistao; mais, quis ser a origem dessa onda. Acreditou na diplomacia.
A guerra e a continuacao da politica por outros meios, julgava-se. Benazir nao estudou com atencao a nova cartilha dos neoconservadores: a morte e a continuacao do imperio pelos mesmos meios - desde que possa ser imputada a al qaida.

Frustrações de 2007

Não faço listas. Nem elenco acontecimentos marcantes. Marcantes? Como se um ano pudesse estabelecer fronteiras entre o que é marcante e o que deixou de o ser. Por exemplo, considero marcante a recuperação daquele formato cabotino onde Pacheco Pereira defronta António Barreto no paroxismo da redundância. E esta expressão, tanto pedante como coxa, tem que se lhe diga. Mas não penso que isto, esta coisa, tenha marcado 2007. Não deixa por isso de ser marcante - para mim (evidentemente), para o país, para a sanidade mental dos espectadores.
A expressão anterior merece ser explicada, assim como o pouco simpático adjectivo "cabotino". Convenhamos que desde há muito que Barreto versus Pereira é um ersatz, que paradoxalmente devolve a justa medida da nossa democracia: o debate nem sempre representa diferença.
O exemplo mais ilustrativo deste paradoxo é sem dúvida este ensaiar de posições artificiais, este arremedo de Bouvard e Pécuchet para uma época televisiva; esta emulação de Dupond e Dupont. E aqui temos o cabotino e o redundante.
Por isso foi marcante vê-los regressar, agora entrevistados por uns jornalistas do Expresso cujo olhar assombrado fica preso a cada palavra proferida pelos profetas da política portuguesa.
Gramsci definia o seu intelectual orgânico como alguém ligado a uma organização. Na sua organicidade de intelectuais, poderia dizer-se que estes dois intelectuais se ligam aos media; é este o seu papel orgânico no Portugal actual.
A páginas tantas discutem os dois a questão do BCP. Ambos deixam transparecer uma preocupação (sincera? Penso que sim) pelo iminente desaparecimento do maior banco privado português. Nas palavras de Barreto, ressoa ainda o predicado "maior" emprestando-lhe uma caução moral pela simples quantidade. Como se o desaparecimento da cosa nostra, lá por ser o maior grupo mafioso da Itália, nos devesse contristar. Para não variar, Dupond diz "sim, é preocupante, o desaparecimento do maior banco privado português"; e logo a seguir, acrescenta Dupont "eu diria mesmo mais: é preocupante o desaparecimento do maior banco privado português". E há perigos que espreitam: a alienação do BCP por um qualquer grupo privado espanhol; pior, a nacionalização do BCP!
Por mim tanto se me fazia. Um bando de mafiosos que se oferecia a si próprio remunerações para além do imaginável...Qual quê: obscenas, pornográficas, escandalosas, e o caraças. Por isso, perder o BCP? Meu deus, que catástrofe, que apocalipse! Como viveremos sem o BCP? Sem o rosto simpático, honesto e profissional de Jardim Gonçalves? O BCP, esse bastião da moral; encontro entre a espiritualidade "opusdeica" e a materialidade do capital - do capital porco! E as preocupações dos nossos intelectuais orgânicos mais queridos é que o BCP desapareça. Para eles, o avanço do Estado (a ingerência, mais certo!) para dentro do BCP significa um perigoso revés para a iniciativa privada. Não interessa que o maior banco privado português fosse comandado por um conluio de mafiosos, de escroques, de vigaristas multimilionários. Não. O problema, o que abala as fundações da nossa moral nacional é que venha aí uma nacionalização. Os dois intelectuais sabem bem que não vem aí nenhuma nacionalização. Assim como aposto que sabem igualmente que a passagem de Vara da Caixa para o BCP anuncia mais uma privatização no horizonte do que o seu contrário. Se sabem isto, podiam também dizer que os negócios pouco claros do BCP em armamento, tráfico e lavagem de dinheiro, são material explosivo para ser deixado ao acaso. A "interferência" de dois "agentes" do Estado apenas implica que o governo quer ter algum controlo num polvo que está fora de controlo. E se isto soa a comissário Catani, é porque estou convencido que em relação ao BCP precisávamos de uma "operação mãos limpas".
Acontecimento marcante? Sem dúvida. Apenas temo que irá continuar a marcar por muitos e bons anos. Feliz 2008 no país da "Cosa vostra".

Sunday, December 30, 2007

mais um dia

Confesso que emudeci por uns tempos porque me encontrava em estado de choque. A razão de uma tão periclitante condição foi esta. E eu que nem me referia a ele; como poderia eu meter-me com alguém que sabe russo como quem faz amor, amor verdadeiro, etc, etc... Quem sabe russo, sabe checo, e quem sabe checo sabe eslovaco, e por sua vez quem conhece eslovaco percebe croata que, nem mais, adivinharam, é parecido com esloveno; ora quem sabe esloveno dá um pulo ao sérvio como quem assalta um quiosque de salsichas, daqui é sempre a descer, pelo Montenegro até à Albânia. Ou seja, é alguém que consegue perceber metade das línguas da Europa. Nunca, mas nunca, ousaria eu tecer sequer uma consideração negativa a alguém que se afadiga diariamente em tornar Dostoievsky e Tchekov acessíveis a toda uma cáfila de brutos que se babam perante tais sumidades (dos quais faço honradamente parte, entenda-se).
Acabo com um grande bem haja, para o blog que me dá a conhecer posts como este.
Convenhamos que é uma estocada assestada onde dói.

Retratação


Não me interpretem mal. Considero o Gonçalo M. Tavares o melhor escritor da nova geração, mesmo que não me identifique com aquilo que alguns chamaram de o seu projecto literário. Desde cedo que admiro a sua poesia - desde "O livro da dança" (acho que é assim) e do "Investigações, Novalis". Tenho mais dificuldade em empatizar com o projecto O Bairro; e por vezes o seu pedantismo de bibliómano deixa-me desconfortável. Tirando isso, M. Tavares constitui uma revelação literária.

Todavia, não morri de amores pelo "Jerusalém"; ou seja, não me rendi. Devo concluir que estou mais inclinado para a sua poesia e para as pequenas histórias do que para os romances - que não são romances propriamente ditos: obras intercaladas com espíritos movediços; memórias literárias deslocadas e com uma tal multiplicidade de referentes que se perdem na sua indexação.

Dito isto, M. Tavares surpreende. Sim, a prosa cortante e sólida fere como um machado fende a carne de uma árvore.

Wednesday, December 26, 2007

Se de ti me esquecer, ó Jerusalém



Acabo de ler “Jerusalém”, o tão celebrado quanto premiado livro de Gonçalo M. Tavares. Apraz-me dizer que M. Tavares não é um escritor adulto. Ou melhor: é um escritor que se encontra ainda confundido com as dores de parto da escrita. Nesse sentido, reitera tudo o que é cliché, chegando por vezes (muitas) a raiar a mais ostensiva infantilidade. O que alicia, ou aliás, ofusca tanta gente nesta escrita pueril, ultrapassa o meu entendimento. Esteticamente, naquilo que se poderia atribuir a uma obra como o seu quinhão de fruição estética, o seu valor é nulo. Mal escrito; recorrendo a soluções de uma evidência desconcertante; com um vocabulário reduzidíssimo para que as suas frases, tiradas, paradoxos e piscares de olho à filosofia ocidental passem por ser mais do que simples arremedos de outras coisas mais consistentes e vastas. Assim se passa do tratamento do mal – a eterna questão do mal – para o padecimento, senescência, decadência do corpo, através de pequenas charadas, efeitos óbvios que não surpreendem (ou não deviam surpreender) nenhum leitor que se preze. Significa isto que as dezenas de luminárias que lhe dedicaram as mais variadas louvaminhas estão todos errados? Sim, tudo leva a crer que sim. E digo isto com a imodéstia de alguém que passou duas horas a ler “intensidades”, “eficácias”, “absolutamente claras”, completamente absurdas”; meninos maus à compita com “homens maus”, cheios de “agressividade” e etc. Se isto visa supostamente ilustrar o mal, afigura-se-me uma das tentativas mais canhestras com as quais já me cruzei. A literatura sobre o mal não se faz anunciar com fanfarra e esporas de cavalo no chão de mármore (de Aljezur). É subtil; revela-se gradualmente, e nunca por nunca se nomeia directamente – talvez por isso é que a religião inventou tantas metáforas para o identificar. Por exemplo, o Heathclif do Wuthering Heights – aí está uma personificação do mal, do mal absoluto que se vai denunciando à medida da urdidura. O que se passa em “Jerusalém”, é um esforço infantil de construir uma personagem que equacione o mal. Esforço gorado, posto que tem que se dizer “este homem é mau!” Os traços físicos, o físico, a explicitação do material – a sistemática aparição dos termos materiais, materialidade, materializado, etc – por oposição ao espiritual é concretizada com a mesma subtileza de um elefante num jardim japonês (variante da loja de porcelanas mais consonante com o século asiático que se avizinha). Daqui surgem as frequententes referências à “materialidade” das coisas e à “espiritualidade” de outras coisas, por vezes de acções, numa salganhada que parece inteligente, mas suspeito que não seja.
Se esteticamente é uma tortura, ou seja, se o seu valor literário aproxima-se do zero, no terreno das ideias não estamos melhor. O livro, como já vem sendo hábito nos escritos de M. Tavares, procura situar-se num território híbrido entre filosofia e literatura; entre ideias e imagens. Quanto a ideias, são de uma magreza que só os corpos dos campos de concentração apreciados por Theodor podem servir de comparação. Desde a ideia mal concebida de uma escala de maldade humana, que o escritor encontrando-se sem soluções para um passo demasiado comprido a que arriscou, afasta abruptamente, revelando um manobra tanto efusiva quanto inconsequente; até ao permanente reenvio para a redescoberta da religião, do ser religioso, tudo se arrasta num invocar penoso de outras leituras, outros tempos, outras autorias. Aliás, inventar uma escala de maldade humana para depois explicar que a história da humanidade é paralela à do indivíduo e que ambas resultam do equilíbrio entre forças negativas e positivas é de bradar aos céus – muito Zen, muito new age, muito qualquer coisa que a mim me soa àquelas tentativas de originalidade que usualemente os jovens com ambições a escritores cometem (como se fosse um crimo, pois então) quando andam no liceu. Conheci alguns.
Não esquecer o nome “Spengler” numa das personagens, mais uma erudita piscadela de olho que vale, opino, para o ego desmesurado do escritor.
Chegando aqui não vale a pena acrescentar muito mais. O livro, eventualmente, impressiona pela sua pós-modernidade; pelo seu vaidoso colear por entre mestres como Kafka, Musil, Krauss; com uma diferença: estes escreviam boa literatura e não se contentavam com sobrevoar umas curiosidades de café. Talvez gostássemos de ter o nosso Kafka. Porventura, já que temos um Ronaldo a jogar no Manchester, e agora com o rosto a encimar qualquer taipal citadino (nem o Mao insistiu tanto no culto da personalidade), gostaríamos que chegasse o nosso Musil; sobretudo para toda uma fileira de encartados letrados a quem qualquer sintoma de realismo provoca repulsa.
eu acho que não. E para que conta a minha opinião quando nomes como Saramago, Hélia Correia e Eduardo Lourenço tecem rasgados elogios? Para nada, obviamente. E se me encontro às avesas com os restantes (sem excepções, ao que parece) sou eu que devo estar enganado. Não preciso, nem quero, ser absolutamente moderno; e muito menos pós-modernaço. Resta-me a consolação de não ter largado quinze euros por uma tão descomunal pastelada.

Thursday, December 13, 2007

Expirar...lentamente

Cheguei sôfrego ao outro lado da plataforma, onde me acompanhavam todas as noções que, normalmente, guardo no bolso do casaco, apenas para ocasiões onde tudo pode, ou deve, precipitar-se. Nessas ocasiões: é quando sinto o coldre gelado da pistola, bem no fundo do bolso do casaco, carregado de noções quase tão mortíferas quanto a peste ou a tortura ou a vantagem de morrer frente a um pelotão de fuzilamento: rápido, eficiente, exemplar. Posso sempre atirar-te com noções para cima; e que se te cravem na goela como bicos esfomeados de pardais é coisa que não me impressiona quando as uso. Amor, por exemplo. É de uma escatologia pura – a lembrança, o puro reconhecimento desta palavra, conceito, acção, futuro, desejo; mas nunca, por nunca, o que se pode alcançar quando se tornam as palavras demasiado violentas, ou viciosas, ou cediças – como a maldição, o despojo, a caricatura de um sentimento – os sentimentos!: essas belas naturezas curvilíneas, que se sufocam, pois então, bem no contacto com a terra, com o seu centro traumático, esse da terra, que não deixa espaço para vislumbrar uma nova palavra, um novo idioma, uma nova moral, uma nova conquista. Hoje, escuridão.

Neste blog escreve-se a metro

Poderia ser o meu lema

Wednesday, December 12, 2007

Assalto no aeroporto

Bruxelas é o paradigma europeu. Bruxelas é o retrato da Europa; o arquétipo da Europa burocrática. Melhor ainda, é a capital do excesso. O trânsito é excessivo; o movimento é excessivo; o dinheiro é excessivo. E onde o excesso mostra o seu real efeito é no aeroporto. Gigantesco, com milhares de pessoas diariamente. Pessoas dos mais variados pontos do mundo. É um vespeiro de tecnocratas e executivos. E não é com má intenção que lhe chamo vespeiro. É mesmo assim: os corpos que por lá se deslocam, se acontece colidirem com outros é para os matar, sepultar, irradicar. O típico europeu, com certeza. O aeroporto congrega o pânico do mundo; único sítio onde te pedem para descalçar os sapatos para os sondar numa máquina de detectar metais. Isto é progresso – prodigioso e imparável! Se tivesse que escolher uma palavra que simbolizasse o aeroporto de Bruxelas, seria eficiência. Nem por isso. Não é bem isso. Trata-se de tentação da eficiência. Sucede que o aeroporto é obeso; e na sua obesidade, ao invés de descontrair, contrai as artérias até mais não. Por isso, em vez de celeridade, temos filas monumentais nas quais ficamos durante tempos esquecidos porque o progresso equilibra-se com a paranóia e a eficiência com a obsessão.
(por acaso, a fotografia é do aeroporto de Warwick)

Interlúdio musical

Uma discussão que anda para aí a circular, para a qual não sou tido nem achado, mas que vou, daqui do empíreo onde me encontro, dar a minha cavadela. A discussão é sobre o comum, as virtudes da democracia ou a falta dela, e novos modelos para a vida em sociedade. Em traços largos, e expansivos, é sobre o futuro da esquerda e que modelos deverá ela propor.
Porque a discussão é gigantesca, apenas me debruçarei sobre um dos lados: aquele que gostaria de denominar o anarquismo elegante. Este politiza, politiza, mas afunda-se num diletantismo vazio, terminológico, verborreico e inócuo.

A discussão sobre as fronteiras entre o público e o privado é secular. Pelo menos, é tão velha quanto as tentativas de definição da distância entre a oikos e a agora iniciada pelos gregos. A intersecção entre estas duas dimensões da vida em sociedade conhece actualmente, porventura, um novo estímulo. Mas esta facção do pensamento de esquerda acantona-se praticamente apenas de um lado da dicotomia: a agora. Com efeito, o aspecto político é dissecado até à exaustão. Mas que é feito do oikos? Os gregos tinham o problema resolvido: os escravos tratam das questões materiais; a urgência da sobrevivência não se coloca, porque o oikos está garantido pela própria estrutura de exploração. O novo discurso parece assim acentuar a politização em detrimento da produção. Nada de mal, até aqui. Contudo, o fôlego desta visão enquadra-se mais no domínio da utopia do que do projecto social. Nem os seus proponentes negariam isso: a ideia de um projecto social está, irremediavelmente, ligada às estruturas de dominação que terão que ser varridas.
Esta versão faz justiça às suas capacidades analíticas, ou seja, é eficaz em identificar males, corrupções de ordem diversa, bloqueios da liberdade e da autonomia. É, no fundo, uma boa grelha para diagnosticar. Infelizmente, não tem nada para propor em alternativa. Ou melhor, tendo muito a dizer sobre politização, não diz nada sobre produção e tão-pouco sobre distribuição. Na sua radicalidade afunda-se em aporias sistemáticas. Por exemplo, é capaz de dizer que a divisão social do trabalho não é mais do que contingência histórica, e que assim como nem sempre existiu, poderá igualmente ser superada, esquecendo-se de demonstrar o que poderá substituir o trabalho.
Ou então, apresenta-se radicalmente contra qualquer forma de liderança, esquecendo-se de dizer o que fazer do poder. Estou ciente que estas críticas podem cair facilmente no jargão idealista. O que é isso do trabalho, separado da prática; e o que é isso do poder, sem poderosos, etc? Seja.

O principal elo entre os membros desta facção é não quererem Estado. Em última instância rejeitam qualquer forma de liderança. Na verdade, a liderança materializa a corrupção da democracia. Uma democracia só é democrática sem líderes. A bem dizer, nem é isso, é a democracia que surge como modelo opressivo e só com a sua supressão se alcança uma sociedade realmente libertária. Ora o que é válido para o Estado, especulo, será válido para uma organisação. Ou seja, a fórmula anti-autoritária ecoa as mesmas premissas para qualquer prática minimamente sistematizada. A democracia representa apenas a sistematização política de uma prática imanentemente libertária. Logo corruptora dessa mesma prática. Mas então o que fica em lugar da agora? Democracias constituintes. O poder da multitude. E nunca chegamos a saber o que une a multitude; o que a torna coesa. Será que ela existe em permanente estado fluído? Diz Negri, não conseguindo descalçar a bota hobbesiana, que é o amor. O amor uniu os primeiros cristãos; retornará agora em forma de produção do social na sociedade de rede. Esquecem-se que o amor só uniu os primeiros cristãos até começarem a matar-se uns aos outros, a excomungarem-se, a distinguirem-se; até Niceia, finalmente.

Nas suas versões mais alegóricas, faz-se tabula rasa da maioria das instituições, e, num ímpeto refundador, diz-se adeus ao Estado, à família, à justiça e até à...honestidade. Afigura-se-me como exagerado selar todas estas dimensões como burguesamente impróprias. Thomas Moore também elaborou uma utopia onde os oceanos que rodeavam a ilha eram limonada (ou seria laranjada? Ou mesmo cerveja?). Contudo isto aproxima-se mais da ficção científica, e ninguém teria dúvida, nem o próprio Moore, que assim seria. Esta linha de pensamento, parece-se também com uma estranha utopia, mas desta feita sem ficção. Porque não tem nada para ficcionar. Em parte porque rejeita, em essência, o próprio projecto moderno da futurologia utópica. Por outro lado, porque a sua excessiva concentração nos aspectos políticos da coesão social permite-lhe apenas reformular um ideal de política. Reparem que a discussão que travam não é menos idealista: serve-se de termos como liberdade, autonomia, comum, Estado…tudo desencarnado das suas práticas e instituições. Ou melhor, rejeitando as configurações sobre as quais estes termos foram equacionados – e, em certa medida, consubstancializados – na modernidade, tais como: democracia-parlamento-partido-estado-providência-publico-privado, e por aí fora – não tem, contudo, outras a propor. Por conseguinte, a discussão não é de diversas facções de esquerda, mas antes de diversas redefinições do espaço da política. Que a discussão se tenha acantonado à esquerda só mostra o quanto o projecto liberal – superado actualmente pelo paradigma neoliberal – evacua estas preocupações do seu horizonte.
Dizer isto não equivale a negar a importância desse mesmo espaço da política, quer para a esquerda quer para a direita. Porém, e tendo em conta que a discussão à direita ou é amarfanhada (que termo bonito!) num nacionalismo atávico, onde se procuram ressuscitar valores que, propugna-se, consistem justamente nos alicerces dessa mesma política, ou então é simplesmente esconjurada pela chancela do indivíduo e da morte da sociedade (a la Tatcher), cria-se a ilusão segundo a qual a direita passa bem sem este tipo de porfias.
Contendas, nem sempre são guerras para ou por alguma coisa. As duas alternativas entre esquerda e esquerda aqui propostas em baixo, soam-me a exagero. Nem sequer lá vejo as duas esquerdas. Interpreto-as mais como duas versões técnicas de um desejo de esquerda. De mais esquerda. Por um lado, o “negrismo” com que me tenho ocupado nas últimas postas. Essa tradução de vulgata de Deleuze que por esse facto possui a virtude de o tornar em certa medida acessível. Se o projecto deste último tinha em parte os seus alicerces na criação de conceitos, é ainda uma batalha conceptual que nos oferecem deste lado da objurgatória – estamos perante um caso típico de muita agora e pouco oikos. Do outro lado, também na sua tecnicidade, e dada a escassez de referências de esquerda, mais concretamente, de modelos, de interpretação da economia, não lhes resta senão escarafunchar (belo termo) no keynesianismo, na esperança de que o mal tivesse sido a guerra fria e não o falhanço do modelo keynesiano. Caso patente de muito oikos e pouca agora.
E no entanto, inclino-me mais para a coerência da segunda abordagem do que para o diletantismo da primeira. Explico porquê. Mesmo que o neokeynesianismo da segunda pareça às vezes de cabeça para baixo com o mundo em que vivemos, ainda vai respondendo à pergunta “o que fazer”. Pergunta que só por má-fé pode ser atribuída exclusivamente a Lenin, e apenas por que assim intitulou uma das suas obras. É que, pelo menos desde Tucídides, que se coloca a pergunta – que fazer?-, sobretudo quando se levou nos cornos. Como dizia Hobsbawm no outro dia: os vencidos são sempre os que fazem as perguntas, porque os vencedores só têm certezas (mas isto em francês, que fica ainda mais bonito).

Estamos fodidos ou o paradoxo de Alice

Antes de me abalançar no quarto e último aspecto da crítica que pode ser dirigida a Negri e aos seus discípulos, não resisto a comentar o texto de Zé Neves sobre as perguntas e as respostas. Começando por dizer que, não sei se por ironia poética, o texto foi publicado duas vezes, exactamente o mesmo, ipsis verbis, mas num post com fotografia de pegadas evanescentes, ou então, de segue-me as pisadas na areia, ou então, por aqui passaram dinossáurios e noutro sem ilustração. Mas, nem sequer é esta necessária, dado que o texto, lá por ser encimado por imagem bucólica de veraneio (quase contraditório) não fica por isso mais claro.
Ficamos sem perguntas e sem respostas. Mas ficamos a saber que o problema da esquerda é questão de perguntas e respostas. Note-se, no entanto, que isto não é o problema da humanidade desde pelo menos Sócrates; isto é o problema da esquerda.
E é bem verdade que a direita não tem problemas destes. Por isso, as mais das vezes, sabe o quer e para onde quer ir. Por isso, quando faz perguntas já tem as respostas que pretende ver dadas. Talvez isso não seja muito revolucionário. Concordo que fazer perguntas para as quais as respostas estão dadas de antemão contém pouco de subversivo. E não me refiro a atentados terroristas ou golpes de estado. Mais simplesmente à subversão dos termos usuais em que as questões são colocadas. Porque, como dizia Wittgenstein, tudo aquilo que sabemos é aquilo para que temos palavras. Neste caso, palavras é o que não falta, sem que por isso fiquemos a saber mais. E nisto de perguntas e respostas, ter respostas para as quais não se tem perguntas, ou não ter perguntas para não ter respostas, não andam longe uma da outra. O texto do Zé, esclarece-nos a esse respeito, com um bom pedaço de prosa analítica que mais parece saído da loucura de Alice do País das Maravilhas. A propósito desta, acho que o Lewis Carroll responde ao Zé e às suas convulsas dúvidas.

And here Alice began to get rather sleepy, and went on saying to herself, in a dreamy sort of way, “Do cats eat bats? Do cats eat bats?” and sometimes “Do bats eat cats?”
for, you see, as she couldn’t answer either question,
it didn’t much matter which way she put it.

Monday, December 10, 2007

Political Compass

Quem é a esquerda, no debate entre a esquerda e a esquerda?

Por que luta o Zé (2)

O terceiro aspecto prende-se com a imanência da revolta. Esta ideia não é a minha; é roubada a Laclau. Por qualquer razão desconhecida, tanto Negri como o Zé pensam que existe uma espécie de imanência na revolta. As pessoas querem revoltar-se; apenas o poder da soberania as impede. Este pressuposto é uma inversão do paradigma hobesiano. O Leviathan é necessário para controlar a guerra de todos contra todos. Aqui, o Leviathan impede a união de todos contra o soberano. A forma como Negri chega a esta conclusão é ambígua. Por um lado, o poder soberano nunca é poder total – é sempre poder partilhado. Ou seja, o poder do soberano está dependente da aquiescência dos súbditos. Por outro lado, o poder soberano é uno; ou seja, congrega a aquiescência dos súbditos numa unidade. A soberania só pode ser exercida através da unidade. Daí que o poder do múltiplo se oponha ao poder do uno, quando a multidão quebra com a aquiescência. Os múltiplos braços e corpos que estão no interior da éfigie do soberano começam a falar na sua língua – suspeita-se que numa heteroglosia. Mas se existe um entendimento do papel constituinte deste múltiplo na sua verticalidade, o que dizer quanto à sua horizontalidade? Por que razão, não descamba este último novamente no “homo homini lupos” anterior ao Leviathan? Quem é que nos garante que o múltiplo não é sobretudo um múltiplo conflitual?
Para além disso, o facto de a relação entre soberano e multidão ser biunívoca parece ser mais uma descrição da relação de poder do que uma especificidade de o poder soberano. Luhman, há muito que insiste que o poder é partilhado, que existe sempre numa relação biunívoca; que mesmo quando se pretende absoluto, o poder tem que possuir uma margem de cedência, ao limite, aquilo que é apontado por Negri, a sobrevivência dos súbditos: poder soberano sem súbditos, não tem existência. Mas se esta biunivocidade é constitutiva de qualquer relação de poder, porventura onde Negri quer chegar é à anulação de qualquer relação de poder e nao apenas o poder fundado na autoridade (cont.).

Saturday, December 08, 2007

Por que luta o Zé?


O excelente texto de Zé Neves só aparentemente coloca dificuldades de interpretação. É que o Zé é, salvaguardando as distâncias, o Negri português; e as críticas que podem ser apontadas ao segundo servem mutatis mutandis para o Zé Neves.
Há pelo menos dois aspectos muito mal esclarecidos no texto do Zé Neves – assim como se apresentam como problemáticos nos escritos do Negri.
O primeiro é a ideia do comum. Para o Zé como para o Negri, o comum é uma evidência. Mas se para o Negri, a produção do comum necessita da mediação de um factor externo às dinâmicas da luta – o amor – para o Zé, para quem o termo parecerá com certeza desactual e primário, nada produz o comum. Ou melhor, dir-se-ia que o comum surge no momento da luta; na própria contingência da acção da multidão. Convém reparar que na sua recusa anti-sistémica, o Zé aceita implicitamente a contingência da luta, isto é, a contingência da acção da multidão. Se para o Zé o horizonte é o da união transfronteiriça entre os grevistas do Vale do Ave e os grevistas chineses, este exemplo resolve o problema da contingência da luta. O exemplo é, ele próprio eficaz, na evacuação da inconsistência. O que para Negri não é assim tão evidente. Explicando melhor: para Negri existe uma correspondência, ou melhor, uma adequação entre, por exemplo, as lutas dos tute bianchi e dos camponeses de Namara. Segundo ele, são ambas expressões de uma defesa do comum através da qual a multidão reaparece. Mas será isto verdade? Só quando deixamos o plano analítico da contingência, e integramos estes dois momentos da acção da multidão numa realidade sistémica, as diferenças se tornam relevantes. Primeiro, se os tute bianchi protestavam por estarem excluídos das instituições da sociedade de consumo – a precaridade do vínculo salarial, a exploração das horas de trabalho, etc – e pretendiam portanto mais integração; os camponeses de Namara defendem um equilíbrio ecosistémico que existe por exclusão das dinâmicas dessa mesma sociedade de consumo. Assim temos que enquanto os tute bianchi querem ser incluídos – reivindicando capacidade para discutir os termos dessa integração, é verdade -, os camponeses de Namara querem permanecer excluídos. Donde, as lutas só surgem como similares na sua contingência, mas não na sua pertença sistémica.
Da mesma forma, os exemplos do Zé resolvem automaticamente esta inconsistência que pertence mais à crença do que à produção do social. Quando o Zé agarra nos exemplos dos trabalhadores chineses e dos trabalhadores do Vale do Ave, o que ele salienta é um mesmo vínculo com o trabalho, melhor, com o modo de produção capitalista, e isto difere pouco do internacionalismo operário da segunda internacional. Claro que pouco terá a ver com uma perspectiva pós-nacional da democracia – que, teria que se discutir com mais tempo, recuso a aceitar prima facie -, mas mais simplesmente com a identificação de classe segundo o lugar ocupado por esta no esquema de exploração capitalista. Em resumo, a luta que une, que unifica, digamos, a multidão, não só não

O segundo aspecto é a ilusão do comum. Aqui quer o Zé quer o Negri abraçam uma noção do comum que é no mínimo utópica; em última análise aproxima-se de um émulo do comunismo primitivo. Também aqui entra a noção de contingência contra o sistema. O comum, assim como é perspectivado, só na escala da contingência surge como “a voz de todos”. Quando esta é transposta para uma temporalidade mais duradoura, o comum tem que se organizar. Talvez a ideia de uma pecking order sirva para ilustrar o que quero dizer com a “organização do comum”. Ou então, o conceito de rotinização do carisma, segundo Weber. Neste caso, os momentos onde o comum surge como a “voz de todos” são momentos que se aproximam da revelação carismática. Só que estes, como bem viu Weber, não sobrevivem na instabilidade, terão que criar rotinas, rituais, em última instância tornar-se racionais. O carisma é justamente o que quebra com o adquirido, com a estabilização da regra; mas por isso tem uma temporalidade diferente. Acrescentemos à ideia de rotinização o conceito mais actual de pecking order – como pode o comum significar a “voz de todos” resistindo à constituição de uma pecking order? Nem Negri, nem o Zé Neves explicam. Na sua crença anti-sistémica, o Zé percebe a luta como o momento fulcral da constituição do comum. Mas para que luta o Zé? Ou trata-se de luta pela luta, um pouco à maneira da revolução permanente? Luta por melhores condições distributivas? Por mais justiça social? Por mais mercado? Por mais capacidade decisória? À partida, dir-se-ia que por todas elas, consoante a contigência das lutas; ou seja, consoante o cahier de dolences dos grupos reivindicadores. Donde, não há uma luta que se justifique mais do que outras – as lutas dos grupos reaccionários contra o aborto, são tanto expressão da multidão como as manifestações de Génova. Ou não sendo, resulta pouco claro por que razão, sendo elas uma manifestação do comum, não possuem o mesmo estatuto moral de outras lutas, que o Zé defenderia? Da mesma forma, as manifestações por mais mercado dos grupos conservadores na Venezuela podem (e devem) ser integradas na expressão da multidão.
Regressando à pecking order, esta aparece como princípio da institucionalização. O que institui o quê, é um pouco a questão do ovo e da galinha. A verdade é que não se conhece instituição sem pecking order, nem pecking order que não procure estabilizar-se numa instituição. Pode ser que o esforço seja justamente o de anular a pecking order – ideias como a de superação da liderança ou os desígnios libertários, enquadram-se nesta pretensão de destruição de toda e qualquer pecking order. Só que estamos perante uma contradição, porventura insanável: a luta visa impor uma pecking order – qualquer luta! Daí que a injunção zizekiana de uma alternativa bartlebiana se afigure mais consequente. A única forma de restituir o comum na sua forma não corrompida – para usar um termo que aparece amiúde no Negri, e que o Zé adopta quase com a mesma frequência – é a da recusa: I would prefer not to! (cont.)

Friday, December 07, 2007

A voz do dono

Escreve Pacheco Pereira que "Putin é muito mais perigoso que Chávez". O PP é quase sempre um excelente oráculo da agenda de política externa dos EUA.

Os Herdeiros


A comparação entre Nazismo e Comunismo é moeda corrente na ciência política e nos meios de comunicação social. O último capítulo em Portugal foi a capa da Atlântico com o Che. Teve o burburinho desejado. Esperemos que não tenha tido nem metade das vendas desejadas. Passada a irritação, inteiramente compreensível, podemos perguntar-nos oque é que permite a conservadores-liberais e liberais-conservadores comparar o che a hitler. Parece que é afinal um mesmo desprezo pelas vidas humanas concretas em nome da construção do homem novo. Pelo menos segundo Rui Ramos. Isto dito por um gajo que apoiou a invasão americana ao Iraque só pode dar vontade de rir.
Na verdade porque é que direita tenta com tanto afã empurrar hitler para a esquerda? Muito simplesmente porque lhes é embaraçoso tê-lo no retrato de família. Se alguém é herdeiro de hitler, é a direita. E não o digo pelo facto, nada despiciendo, de hitler ser de direita. Hitler e os liberais conservadores partilham o mesmo anti-comunismo, o mesmo respeito pela autoridade e pela propriedade, a mesma sacralização das desigualdades sociais, a mesma inferiorização de povos e culturas não-europeus, agora disfarçada de culturalismo na sua celebração dos valores ocidentais.

Wednesday, December 05, 2007

Showing them the finger

não mete nojo esta compulsão da direita usar o termo "canalha" sempre que se refere a quem não comunga dos seus ditames?
não era tempo de recuperarmos o "fascistas" que tanta crítica tolerante tem tentado renunciar? Só a mera utilização do termo (canalha, racaille, etc) me deixa de pé atrás quando estes gajos vêm falar de liberdades. E quanto a isso, só podemos responder

Tuesday, December 04, 2007

Porcos no espaço


O texto do Pedro Arroja publicado pelo Arrastão, suscitou reacções diversas, desde a apreensão até à ira. Porém, a mais estranha, conquanto mais convencional, foi a de dizer que não vale a pena discutir o que diz este senhor, porque as suas opiniões nem sequer são dignas de discussão.
Todas as opiniões são dignas de discussão; sobretudo as mais perigosas. No texto de PA o que menos interessa, a meu ver, são as suas opiniões sobre a homossexualidade. Não são surpreendentes e integram-se naquilo que alguém chamou de articulação ideológica. Em traços largos, o palavrão tem o condão de sinalizar que se alguém é racista, antisemita, conservador, nacionalista, tem uma forte probabilidade de ser homofóbico e outras atitudes assimptóticas. Poder-se-ia dizer que é uma variação da escala de personalidade autoritária de Adorno.
O que interessa no texto do PA prender-se-á sobretudo com a ciência económica e com a sua ambição (desmesurada?) em encontrar uma racionalidade trans-histórica. PA não é um simplório (embora tenha ideias que o façam parecer), não é um John Do a quem ninguém reconhece autoridade. PA é uma figura pública; teve participações radiofónicas e televisivas; e quando apareceu – ainda me lembro – veio envolto numa aura de enfant terrible da economia – um economista intelectual contra o mainstream. Por isso dizer, deixem lá esse senhor, que ele coitado...não colhe como sendo a melhor atitude.
A ideia de uma racionalidade trans-histórica, em muitos economistas, serve-se de uma teoria auxiliar; que só aparentemente lhe é auxiliar. Na verdade, é a da racionalidade que é auxiliar dessa outra, cujo pronunciar do nome faz qualquer incauto tremer e cuja autoridade se tornou inquestionável: a teoria da evolução darwiniana.
Reparem que os economistas quando querem explicar o que se encontra subjacente em modelos cujo mobil é a racionalidade (trans-histórica) recorrem, acto contínuo, à teoria da evolução; mais especificamente ao seu mais importante postulado, a selecção natural. Parece que sem esta última, a pressuposta racionalidade desmoronar-se-ia como um frágil castelo de cartas. Ora bem, não sendo biólogo nem especialista na teoria da evolução, daquilo que vou lendo, fico com a sensação que os economistas têm uma vulgata. Esta vulgata funciona grosso modo como a sua precedente marxista: é gazua que enfia em qualquer buraco; abre qualquer fechadura. E, por esse facto, ficamos sempre satisfeitos com os resultados. Contudo, quem percebe destas questões, tem muitas dúvidas sobre esta vulgata. De tal forma, que as interpretações mais recentes vão num sentido muito mais heterogéneo, bem mais dubitativo, do que a linearidade da vulgata parece assumir.
Cabe perguntar se não era já tempo de alguns economistas começarem a interrogar a sua vulgata que fazem passar por ciência séria e por explicação universalista? (sem que isso signifiqu recorrer aos exageros das teorias da discursividade=identidade, nem à culturalização extremada das práticas). É que se calhar os porcos não têm asas porque um porco voador causaria grande desconforto aos colegas.

O referendo e a imprensa

Nestas coisas de liberdade de imprensa, a imparcialidade é sempre de louvar. Como já vamos estando acostumados, a imprensa “livre” vendeu por esse mundo fora que a reforma eleitoral se resumia a eternizar Chávez no poder, consagrando-lhe a possibilidade de um mandato vitalício. Esqueceu-se, distraída, como sempre, que a reforma consta de mais de 70 artigos diferentes, que foram referendados pelos venezuelanos. Quem ler a reforma da constituição, se não for magnata do petróleo ou especulador bolsista, é difícil perceber em que é que ela é limitadora das liberdades.
Isto, em nada obsta que a resposta tenha sido um não. Menos crasso do que a imprensa espanhola e opositora tem andado a vender – há regiões inteiras que apoiaram o sim -, mas sem dúvida um não. Para além de uma ditadura que referenda uma reforma constitucional (nunca antes visto!) o que mais tinha esta – a reforma, bem entendido; não a ditadura – que tanto preocupava os democratas ocidentais? Ficam aqui alguns exemplos:

Artículo 73. Serán sometidos a referendo aquellos proyectos de ley en discusión
por la Asamblea Nacional, cuando así lo decida la mayoría de los Diputados o
las Diputadas integrantes de la Asamblea. Si el referendo concluye en un sí
aprobatorio, siempre que haya concurrido no menos del treinta por ciento de los
electores y electoras inscritos e inscritas en el Registro Electoral, el proyecto
correspondiente será sancionado como ley.

DÉCIMO SÉPTIMO. Se reformó el artículo 82, en la forma siguiente:
Artículo 82. Toda persona tiene derecho a una vivienda adecuada, segura,
cómoda, higiénica, con servicios básicos esenciales que incluyan un hábitat que
humanice las relaciones familiares, vecinales y comunitarias. La satisfacción
progresiva de este derecho es obligación compartida entre los ciudadanos y
ciudadanas y el Estado en todos sus ámbitos.

Artículo 87. Toda persona tiene derecho al trabajo y el deber de trabajar.
El Estado desarrollará políticas que generen ocupación productiva y adoptará las
medidas sociales necesarias para que toda persona pueda lograr una existencia
digna, decorosa y provechosa para sí y para la sociedad. La libertad de trabajo no
será sometida a otras restricciones que las establecidas en la ley.

Artículo 90. A objeto de que los trabajadores y trabajadoras dispongan de
tiempo suficiente para su desarrollo integral, la jornada de trabajo diurna no
excederá de seis horas diarias o de treinta y seis horas semanales, igualmente, la
nocturna no excederá de seis horas diarias o de treinta y cuatro horas semanales.
Ningún patrono o patrona podrá obligar a los trabajadores o trabajadoras a
laborar horas o tiempo extraordinario. El Estado promoverá los mecanismos para
la mejor utilización del tiempo libre en beneficio de la educación, formación
integral, desarrollo humano, físico, espiritual, moral, cultural y técnico de los
trabajadores y trabajadoras, de acuerdo con la ley respectiva.

Talvez o exemplo do referendo devesse ser seguido na Europa democrática no que respeita a decisões que envolvem a vida de milhões de cidadãos.
Como disse um dos homens fortes da oposição: ganhou “o mercado e uma sociedade normal”. Resta saber para quem.

E mesmo assim...


A derrota de Chávez coloca uma questão muito singela: por que razão, ainda assim, estariam quase 50% de pessoas inclinadas a aceitarem uma nova constituição?
O escândalo em torno da proposta referendada possui tanto de absurdo como de ingénuo. A lei que limita os mandatos não evita que as facções se eternizem no poder. Exemplos como o México com o PRI (uma contradição – um partido revolucionário institucional!) ou a nossa conhecida França, são manifestações práticas de como a democracia não garante a rotatividade. A menos que se pense que Sarkozy é fundamentalmente diferente de Chirac; o que, para todos os efeitos, está mais ao nível da crendíce do que do registo empírico.
O México do PRI é ainda mais ilustrativo desta manipulação da permanência no poder. Ninguém negará que se trata de uma democracia; e todavia conseguiu manter o mesmo partido na presidência durante 70 anos antes de ser derrotado pelo PAN de Fox. Engana-se, porém, quem pensar que a vitória de Fox significou uma mudança no poder. Nada poderia estar mais longe da verdade. O Partido da Acção Nacional de Fox, apenas baralhou os dados. Muitos dos seus membros são renegados ou renegaram a eternização do PRI no poder, para mais tarde enfileirarem ou criarem os seus próprios partidos enquanto oposição a esse mesmo PRI. Não por acaso, a democracia mexicana está, ultimamente, eivada de acusações de falsificação de resultados eleitorais – quer pela oposição quer, o que é mais caricato, pelo partido do poder. Ao nível da rotatividade, o México pode ser visto como um pacto de regime onde uma oligarquia riquíssima divide o poder estatal entre si.
Nesse sentido, as reacções contra a proposta de Chávez são no mínimo ignorantes. E laboram num erro de perspectiva, segundo o qual a democracia institucional, enquanto procedimento, garante uma rotação que equilibra, e não vícia, o exercício do poder. Não é garantido, como prova o exemplo do México. E se assim é, não são profissões de fé a respeito da democracia procedural que devem ser opostas ao desiderato chavista agora chumbado pela maioria dos venezuelanos; mas antes um questionamento sobre a verdade da rotatividade democrática e sobre as suas reais consequências.

Monday, December 03, 2007

Trans-versão


O corpo, é o corpo, é o corpo. Em princípio estamos minimamente de acordo que os papéis sexuais são construções sociais. Ou seja, o género resulta de atribuição de papéis. Mas não o sexo. A diferença entre género e sexo é difusa; por sê-lo é que as instituições exercem uma tal pressão para a consonância entre atribuições e funções. Também é evidente que não é possível separar esta discussão da sua correlata sobre a estrutura familiar. Dando um salto gigantesco, será porventura porque a estrutura familiar se flexibiliza que a diferença entre sexo e género se torna mais visível. Ora parece-me que se há lugar onde esta é perturbadoramente fracturante é no caso da transexualidade. E isto não se encontra ao nível de um discurso sobre a transexualidade; a crítica, a haver, - e teria que ser explicada a sua necessidade para além da vontade, algo diletante, de atacar o dualismo cartesiano – teria que ter em conta a condição perturbante do transexual. Perturbante no sentido de desestabilizador de um sistema categorial que se pretende fixo. Porém, não vejo nem interesse nem necessidade de uma putativa crítica. Se alguma coisa, a transexualidade é a ruptura com o simbolismo do patriarcalismo; isto é, constitui em substância a crítica a esse mesmo sistema. Pela mesma ordem de razões, o discurso sobre a homossexualidade é o lugar epistemológico que pode confrontar a família tradicional.
Neste sentido, dever-se-á separar o testemunho directo do transexual do discurso sobre a transexualidade. Afigura-se-me que no discurso da inconsistência entre corpo e “eu” não existe uma armadilha patriarcal – no sentido de uma reificação do género -, mas mais simplesmente uma constatação de incompatibilidade; ou melhor, pode-se dizer, alvitro, que as combinações assim como surgem ao “eu” são desestabilizadas. A técnica possui um papel não dispiciendo nestas conturbações do “eu”, dado que aumenta as possibilidades combinatórias entre sexo e género. Agora, lá por um papel ser aprendido, não quer dizer que não suscite incoerências, insatizfações ou deslocações. Fazer equivaler um discurso do género com a realidade do mesmo (o papel), é aceitar uma visão estrutural-funcionalista ao limite. Bem pelo contrário - e isto é tão novo quanto Freud -, a cisão entre as exigências do colectivo e os impulsos individuais, provocam uma tensão permanente. Domesticar estes impulsos é parte da função da sociedade – do significant other.

A minha insistência em termos como perturbação, desestabilização ou afins, não reside em nenhuma tentativa de rotular como anómalo ou de encerrar a transexualidade no recanto da aberração ou da patologia. Muito pelo contrário. Julgo que a inconsistência entre corpo e eu se faz sentir em muitas ocasiões, em heterossexuais e homossexuais. Julgo também que é desta inconsistência que uma significativa parte dos problemas do foro psíquico, como depressões, neuroses, etc, surgem. Quanto mais não seja porque esta consistência está constantemente a ser posta à prova pelos múltiplos estímulos a que estamos sujeitos. Terá consequências igualmente para obesos, anoréxicos, magros, gordos, feios, bonitos, etc, etc. Nem seria de esperar outra coisa, numa sociedade que associa o sentimento de si – para glosar uma expressão comummente famosa – à imagem.
Daí que a transexualidade, e a dissonância que o discurso do transexual expressa, pode ser considerada uma espécie agudizada desta inconsistência; mas em termos de sexo, não de género. Melhor dizendo, e retirando as conotações de patologia que alguns destes adjectivos encerram, consiste numa subjectividade diferente daquela que é programaticamente incorporada pelo binómio sexo-género. É um assunto sério; psicologicamente sério.

Vícios públicos virtudes privadas


É uma inversão do célebre princípio de Mandeville. Serve para assinalar que a ideia segundo a qual somos livres de cacetear quem nos apetecer em privado desde que mantenhamos a compostura em público, dá pelo nome de hipocrisia. E nisso vejo-me forçado a reconhecer que Francisco José Viegas tem razão. Ou se leva a coisa até às últimas consequências ou se bane tudo e mais alguma coisa. A segunda deixa-me desconfortável. A primeira, é a que dá estalo, por isso parece ser a boa conduta – a que, possivelmente, levará à boa sociedade.
Porém, vejo-me obrigado a concluir que quer Daniel, na sua defesa de um hipocrisia metódica, quer FJV, no seu arrazoado mecânico (e já se tenta explicar porquê) estão enganados.
A melhor maneira de encarar o problema é deitar o bebé e água do banho, ambos pela janela fora! Começando pelo politicamente correcto. Para já, não é correcto – no sentido de, logicamente correcto ou correcto na prática – reduzir qualquer questão de discriminação aos supostos exageros do politicamente correcto. É uma arma de arremesso eficaz para o lado que não está verdadeiramente preocupado com as reais consequências da discriminação. Para além de que se torna fácil argumentar com um artifício de ocasião; e isto quer seja para detractores quer para defensores. Diz o Daniel que, por não conhecermos o interlocutor, ou o mais o público mais vasto, temos que ter em conta que podemos estar a ferir susceptibilidades. E diz mais: diz que a distância é a mãe de todas as curas. Isso é verdade até certo ponto. Por mim, gosto mais de pensar que são os choques que nos levam à cura – estilo terapia de choque. Não serve para tudo, é verdade. Mas serve para as categorias irritantes. Melhor: serve para exorcizarmos as categorias irritantes. Melhor ainda: serve para convivermos, sem as sacralizar, com as categorias irritantes. Num mundo sem categorias, não existira humor – fosse ele público fosse privado. Quase se diria que o humor existe porque as categorias são profanáveis, e que o bom humor profana. Não vale a pena pensar num humor asséptico; tal coisa não existe. Por essa mesma razão, é bom que não exista um espaço público asséptico. Mas seja para qualquer acepção: para católicos, para judeus, para o que for. Todavia, vejo-me forçado, agora, a dar razão ao Daniel, a vida é mais madrasta. Uns controlam o humor enquanto outros se vêem constrangidos a obedecer às suas categorias. Não são as minorias que o controlam, porque senão, não seriam minorias. Os negros – e preocupa-me sempre quando uso este termo, com o seu quê de esclavagista, de sertão -, não contam anedotas sobre brancos. Se calhar até contam, mas não passam na televisão.

O problema está, porém, que o objecto desta discussão não existe. Discutem uma anedota – ou a possibilidade de parodiar algo – quando nem uma coisa nem outra suscitaram a discussão. Ao contrário do Maradona, na sua erupção heterossexual, com caralhos à mistura (desconfia sempre de quem muito repete o termo) e brejeirices de menino de cascais (no que faz lembrar aquele tipo que escrevia no DN, com uma crónicas imbecis sobre como ser macho – mas que eu até achava piada), não acho que isto tenha nada a ver com defesas de orgulho seja ele gay ou hetero. Contudo, já disse o que tinha a dizer aqui.
O que é quase histriónico é este marialvismo dos novecentos? Oitocentos? Secular!, digamos, do FJV e do outro, que deu a ideia: “hetero que é hetero não precisa de mostrar que é hetero”. Para além da imensa boçalidade da frase, o que quererá isto dizer? É de macho! Não sei em que mundo vivem estes senhores – aposto que é Portugal, high society, início de século XXI - mas com conversa desta, não tarda e terão que mudar para orgulho gay. É que isto já não se usa.
Não deixa de ser curioso que por trás da frase “quem é hetero não precisa de mostrar que é hetero” surge uma intenção defensiva. Homem que é homem sabe que é homem – e isto são naturalizações, melhor dizendo, são insistências, digamos que, ao limite do absurdo, homem que é homem nem pronunciaria a frase. É que a mera frase faz impender a dúvida. As certezas têm que ser sempre registadas em fórmulas que condensam, e reiteram, a trivialidade da dúvida.

Com o que eu não concordo


Não concordo com o texto do Daniel que é uma elementar aplicação do princípio virtudes públicas vícios privados (muito mandeviliano!!!)

Não concordo com o texto abaixo sobre a trans-sexualidade por achar que é uma distorção foucaultiana que só vê discursos e seus dispositivos – grosso modo, bem entendido, pois esta interpretação, estou em crer, é ela própria uma distorção do Foucault - e não vê a realidade do corpo (sim, porque quer se queira quer não, o corpo vive e morre, e se bem que isto afigura-se ser pouco mais do que o rifão que popularizou Lili Caneças, temo que seja uma verdade universal)

Não concordo que a honestidade seja uma conduta ultrapassada e burguesa. Julgo que é um traço de personalidade e que se tornou mais necessário do que nunca. Nem todas a virtudes burguesas são más.

Não concordo com este aluvião de chistes, pequenos aforismos, frasezinhas engraçadas, que passa actualmente por génio ou literatura. Entre pastiches de Oscar Wilde e reinvenções de Kafka, mais valia aceitar que não se tem nada para escrever.

Sunday, December 02, 2007

The time is out of joint


Malta, borrifem-se no Tiepolo. Nós é que estamos a dar, segundo o David Lourenço Mestre. Diz ele que visitar o nosso blog é o mesmo que ir ao museu. Na verdade, é mais tipo museu de história natural do que museu de obras de arte, uma vez que ele nos compara a fósseis e a testemunhos do paleolítico. Pronto, é verdade que ele se escusa a dar argumentos para fazer de nós relíquias perdidas nas brumas da memória. Mas argumentos para quê? Na verdade, toda a gente percebe porquê e o David não precisa de explicar porque é que estamos fora do tempo. De acordo com Jacques Rivette, a evidência era a marca do génio em Howard Hawks. Neste caso, a evidência é a marca da mediocridade no David. Mediocridade preguiçosa, que procura a cumplicidade do senso comum maioritário. E que senso comum? O liberal, pois claro. Independentemente da validade ou da justiça das ideias, se elas não estão de acordo com a vulgata liberal (uma redundância, de resto) é porque não são modernas. Para estes gajos ser do seu tempo é defender as ideias que mais convêm aos senhores do capital e do império.
Mas numa coisa ele tem razão. Oponho-me ao capital, ao imperialismo e à honestidade. Esta última, sim, é uma novidade na acusação, que acolho com agrado. O agrado com que constatamos que afinal alguém nos compreendeu. Sempre achei que um dos grandes problemas à esquerda é a falta de oposição a valores e instituições que, sendo próprias do capitalismo e do parlamentarismo, não são suficientemente criticadas. A honestidade, na sua concepção burguesa, é uma delas. Bem como os tribunais. E o trabalho. E a família. De nada vale acabar com a propriedade privada se ficam de pé os sustentáculos institucionais e ideológicos da sociedade burguesa. Veja-se o que aconteceu na União Soviética.

O sexo de dentro


Como é que se faz uma crítica da trans-sexualidade sem se juntar ao conservadorismo tradicionalista e católico? Acredito que o género é uma construção social e que, independentemente das diferenças orgânicas, as diferenças na codificação do comportamento de género espelham uma sociedade patriarcal e heterosexista. A construção da identidade de género é aliás bastante precoce, desde o berço, diria eu. Basta ver como se constrói, através de objectos como a roupa e os brinquedos, a identificação de género dos bebés e das crianças. Ser “Mulher” ou ser “Homem” corresponde portanto a um conjunto de práticas socialmente determinadas. Não estou com isso a dizer que as diferenças orgânicas entre os sexos não são relevantes, apenas que os comportamentos sociais de cada género são não-naturais ou, se preferirem, são construções sociais.
Paradoxalmente, é isto que muitos dos discursos que justificam a trans-sexualidade me parecem negar. O que é que significa um indivíduo do sexo masculino dizer que se sente mulher? Ou que se sente mal no seu corpo? Esta ideia parece sugerir que existe um “eu”, uma identidade independente do corpo, algo parecido com uma alma. Não custa de facto reconhecer nesta divisão do ser humano entre “interior” e “exterior”, a velha dicotomia corpo/alma, que encontrou no pós-modernismo uma nova variação: entre o “eu” exterior, socialmente condicionado, e um “eu” interior, o verdadeiro núcleo da subjectividade individual. Basta ouvir as muitas rubricas de psicologia na rádio, ou folhear a já extinta (felizmente!) revista Xis.
Ora quando alguém que tem um corpo do sexo masculino diz que vive no corpo errado, não só está a afirmar que existe uma “alma” independente do corpo, como também que essa alma, essa interioridade, é sexuada. O que reforça a naturalização dos papéis de género.

Saturday, December 01, 2007

Estadofobia


A constatação que nos deixa mais perplexos: os tipos que passam a vida a malhar no Estado, em blogs como o Blasfémias, o Atlântico, e nos seus blogs pessoais, vai-se a ver e trabalham para…o Estado. Ou melhor, recebem dinheiro do Estado. Seja em centros de investigação, seja em universidades, enquanto professores e assistentes, recolhem o seu pecúlio da teta estatal. Quando se esperaria que esta gente andasse a constituir empresas, a investir em capital produtivo, em provar diariamente que o Estado é o colosso que nos manipula, manieta, destrói a iniciativa e nos transforma em madraços irremíveis, não – anda tudo pendurado em empregos estatais ou financiados pelo mesmo. Quando se esperaria que desprezassem nem que fosse a ideia de ter que assinar um contrato com esse Moloch da vida contemporânea, que a mera hipótese de ser um assalariado desse esbulhador da iniciativa privada, os colocasse numa rigidez para além do rigor mortis, não – ele são bolsas do Estado, projectos do Estado, institutos do Estado…e até comissões políticas no Estado. Alguns, não contentes com a pequenez do Estado nacional, rumaram a outros estados de maior envergadura: os assessores da Comissão, instalados em Bruxelas e a dizer mal do…Estado.
Seria exagero dizer que vivem apenas do Estado. Claro que não, mas que disparate! O ordenados do Estado não chegam para o nível de vida que qualquer verdadeiro liberal que diz mal do Estado almeja. Têm duplos empregos, triplos, quádruplos; ganchos e dar uma mãozinha ali e aqui; fazem uns favores a uns amigos, escrevem um artigo para o compincha do jornal, ou da revista; e ganham uns royalties com as suas publicações.
E bem esperamos que quebrem as grilhetas dessa instituição malfeitora chamada Estado; mas por qualquer razão – força centrípeta de origem desconhecida, torvelinho inesperado nas águas plácidas do liberalismo – eles resistem. Por lá ficam a vogar como se não mais conseguissem encontrar a saída do reino dos mortos.
Incoerência? Só se for do Estado, que lhes devia fazer a vontade e dar-lhes a liberdade. Afinal, somos todos nós que pagamos para o seu encarceramento.