Monday, July 31, 2006

Ganas

Dá-me ganas ver Qana bombardeada sob o pretexto de ser um refúgio do Hezbolla. Os israelitas são pouco imaginativos – caso contrário não veneravam um muro – e bombardearam Qana outra vez. Desta feita mataram civis e crianças. O coro de carpideiras internacional acode de imediato quando a coisa lhes cheira a massacre de criancinhas. Enquanto se mata e esfola e tortura anonimamente está tudo bem; mas quando salta para as primeiras páginas crianças recolhidas dos escombros provocados pelas bombas israelitas, é um Deus nos acuda. A dita comunidade internacional suporta tudo menos ver criancinhas despedaçadas. Por isso a UNO ficou em choque (ainda a tempo!), mas o Conselho de Segurança não condenou o sucedido. Por conseguinte, o Ministro israelita congratulou-se e agradeceu a caução moral que lhe foi aferecida pela dita comunidade internacional. Rice, pensando principalmente nos seus rebentos enquanto jogavam basebol num quintal das traseiras no Harlem (ou num jardim em Filadélfia) teve um rebate de consciência e lá terá pensado: matar a eito ainda vá, mas quando as criancinhas aparecem nas fotografias pelo mundo fora já não pode ser. Por isso escondeu o seu sorriso de ocasião com que andava a brindar os líderes mundiais e lá compôs um ar compungido.
E todavia a dita comunidade internacional tem formas consumadamente esquizofrénicas de responder aos acontecimentos. Crianças já as havia mortas desde o início do conflito, crianças em monturos já as havia desde que os israelitas começaram há sete meses a bombardear a faixa de Gaza e crianças assassinadas já podiam ser vistas nos sites internacionais e nos blogs libaneses e sírios. Onde está então a surpresa? Arrisco uma tese estapafúrdia que se serve da psicanálise. A ONU, que serve mais ou menos de diapasão da dita comunidade internacional, reviveu os acontecimentos de 1996 quando as suas instalações em Qana, precisamente, foram bombardeadas. Como na psicanálise o reviver do trauma conduz ao seu desbloqueamento e, logo, surgiu a condenação internacional.
O facto de ter sido uma réplica de 1996 – com a diferença de que na altura morreram capacetes azuis – apenas demonstra que Israel bombardeia a seu bel-prazer não se importando minimamente com as consequências.
Não é estranho que assim aconteça. Para Israel o problema é liquidar os árabes e tudo o que se interponha no caminho desta resoluta decisão é obstáculo a abater. As crianças libanesas, segundo o prisma israelita, são futuros árabes que se oporão às pretensões expansionistas de Israel. Matá-los, não é, nem pode ser visto, como colateral damage – eles são o principal alvo a abater. Donde, quem olhar bem para a cara do representante de Israel nas reuniões da ONU não pode deixar de surpreender no seu fleumático semblante uma subtil satisfação.
Anti-semita eu? Estou é farto que me tratem por parvo!

Saturday, July 29, 2006

Nojo



Vi as imagens que me disseram para ver. Vi as imagens e tentei dar a ver. Um disse-me que não tinha tempo e que era facilmente impressionável; outra disse-me que não podia ver miúdos baleados e a sofrerem. É dificíl dar a ver. Ninguém quer ver. A injunção de Celan “Vai e vê” fica apenas pelo vai – vai-te embora, vou-me embora, fui-.me embora, etc. Que espécie de consciência fugidia é esta que não quer ver?
E, todavia, as bombas caiem, as pessoas morrem inceneradas, os miúdos são baleados, as atrocidades acontecem.
Vejo o sorriso de Rice na primeira página de um jornal internacional. Vejo os ditos cínicos, viciosos e hipócritas – há alguém que detecte anti-semitismo nisto? Pois que seja...- do primeiro ministro de Israel: controlem o Hezbolla. Sim controlem, para os podermos exterminar melhor. E vejo na televisão turca os hospitais mal apetrechados; pessoas a chegar com membros esfacelados por uma bomba incendiária, outros a serem despejados de barcos e a serem levados em cadeiras de rodas, outros com partes do corpo que deixaram de existir espalhados pelas ruas de Beirute; e o pânico, o terror, o medo, na cara dos Libaneses que não sabem o que fazer no meio das avenidas derruídas. Vejo isto tudo - na televisão turca, vejam bem. Porque o Ocidente da liberdade mostra-nos antes as duas vítimas dos atentados terroristas em Haifa. E do outro lado, na Cisjordânea, uma mulher chora porque voltaram a matar-lhe os filhos, os que restavam (e quando é que pararam de lhos matar?) e as casas estão destruídas em derredor, e os palestinianos morrem novamente.


E vejo na televisão turca aquilo que não vejo nas televisões europeias, embora um paranóico comentador de ocasião jure que existe uma conspiração jornalística contra Israel. Conto os mortos no Guardian e não consigo compreender quando me dizem que é uma resposta equilibrada e justa da parte de um país que foi atacado.
Vejo Rice e Bush afirmar que talvez seja prematuro para um cessar fogo e vejo Blair e Bush rirem em conferências de imprensa e mais tarde voltarei a ver a Aljazira com as fotografias das crianças libanesas soterradas nos escombros de Beirute.

Vejo tudo isto. Vejo por mim, pelos outros que não quiseram ver, por aqueles que nunca verão.

O Nojo que me consome tem uma ordem: Israel, América, mundo livre.

Friday, July 28, 2006

Variações sobre o Grito de Munch





(como fiquei em casa de manhã em convalescência (de quê? De vinho, poesia ou de virtude - à vossa escolha) resolvi escrever e bostar. Quem bosta muito, não atrofia o bestunto.

Freud is dead. Long live Freud!




Porquê insistir na psicanálise? Num artigo recente Zizek explica a necessidade da psicanálise nos tempos que correm. A relação entre as pulsões e o controlo exercido pelo exterior é hoje mais urgente de analisar do que alguma vez foi. A tensão permanente que se estabelece entre estas duas dimensões – os impulsos internos e a ordem simbólica exterior ou o Grande Outro – é da ordem do trauma. Este por sua vez é revelado através da panóplia de deslocamentos enunciados e caracterizados por Freud – histeria, narcisismo, etc. A acção do Grande Outro é, naturalmente, castradora. O que leva a reduzir as pulsões internas a um sentimento de falta, um vazio que não pode ser preenchido nem pela ordem simbólica nem pelo sentimento de si, ou a consciência de que “sou”, vazio esse que Freud designava por “pulsão de morte” e que Heideger, num registo mais ontológico, denominou de “ser para a morte” (Sein zum Tod).
Este é em traços muito gerais e simplificados o eixo de compreensão que a psicanálise tem traçado para o comportamento humano. A empresa de Zizek passa por renovar este esquema analítico e aplicá-lo às condições do capitalismo pós-moderno. A melhor análise que eu conheço desta aplicação na obra de Zizek encontra-se no final do Ticklish Subject. Nesta última parte, Zizek procurou mostrar a aplicabilidade analítica do seu esquema psicanalítico. Os resultados são surpreendentes, não tanto porque trazem algo de novo, mas porque instalam Zizek no muito debatido campo, sobretudo para as ciências sociais, das reflexões sobre a possibilidade da ordem e da coexistência dos seres humanos. Em suma, do problema hobesiano.

Zizek não tem um Leviathan para oferecer, mas tem uma teoria da acção. Em verdade, não se pode confundir a visão de Zizek com a maioria das tentativas de elaborar uma versão coerente das questões que se levantam sobre o nosso “viver em comum”. Pelo contrário, se alguma coisa, Zizek procura antes a possibilidade de romper com a ordem. Mas como sabiam bem os teóricos políticos orgânicos do princípio do século XX (Carl Schmidt, Michael Oakeshott) o conhecimento, e presença, do inimigo é fundamental; donde Zizek não despreza o conhecimento da ordem e da sua construção social. O “dare” zizekiano no final do Tiklish Subject possui uma estranha ressonância com as injunções neoliberais. É, todavia, difícil perceber a quem é que ele se refere. Será aos refugiados palestinianos de Jenim? Aos sem terra do Sertão brasileiro? Aos sans papiers da Ilhe de France? Aos desempregados do Continente? Aos marcianos, como sublinha Laclau?

Zizek tem-nos habituado às suas contradições e ele próprio está permanentemente a jogar com ambiguidades e duplicidades – a suas análises são tudo menos lineares. No final do Parallax View o “dare” anterior é substituído pelo “I would prefer not to” do Bartleby de Melville. O “dare” era já seguramente um “arriscar” a retirada. O tema da retirada não é novo. Adorno e grande parte da escola de Frankfurt, pelo menos até Marcuse, insistem na mesma solução. Só que em Zizek ele tem outras conotações. Começa, por exemplo, pelas diatribes mantidas com os teóricos das ciências cognitivas. A este respeito Zizek parece querer reabilitar a velha noção do sujeito contra as ferozes tentativas de desontologização de que este é alvo por parte da neurobiologia. A psicanálise, quer nos seus primórdios com Freud, quer na sua versão sintática com Lacan, precisa de um sujeito consciente. Só assim faz sentido a inversão entre a acção consciente e a inconsciente. A resposta ao inconsciente por parte da neurobiologia é que ele é apenas uma caixa negra, mas assim que for aberto é tão decifrável como o resto. Nem traumas, nem vazios, nem faltas. Massa cinzenta, simplesmente.

O Líbano de novo

Entre o cinismo sinistro de PP e a lucidez certeira de VM parece que ambos laboram no mesmo erro. Tanto um como outro julgam que Israel quer a paz. Israel é um estado bélico que vive à custa da guerra. É um estado onde as múltiplas gerações foram incorporadas militarmente e que, em virtude dessa experiência, nem se reconheceriam se de repente passassem à reserva territorial. Israel não quer a paz. O melhor que lhe pode acontecer é ter inimigos por todos os lados. Nisso, foi o mentor dos Estados Unidos e não o contrário, e ambos compreenderam como proceder enquanto estado bélico. Não por acaso, o campo de experimentação do seu belicismo é para ambos o Médio Oriente.
No seu brilhantismo retórico, PP justifica a política externa israelita pelo velho dilema entre a virtude e a necessidade. A segunda ganha e é por isso que, segundo PP, tanto a esquerda como a direita fazem exactamente as mesmas opções militares. Curioso, porque olhando para a política externa norte-americana ou inglesa dir-se-ia que o binómio se derreteu e fundiu numa unidade coerente. Também aqui as opções miltares e geoestratégicas da esquerda e da direita pouco diferem – e não por necessidade, obviamente.

Não seria melhor, o que parece decorrer da própria singularidade dos casos, começar a acreditar que não há, nestes países, diferenças entre a direita e a (pressuposta) esquerda tout court?

Inércia

A minha cabeça andava ao contrário. Quero dizer: quando apanhava o elétrico, para os lados do cemitério da Ajuda, em vez de se deixar cair para trás com a inércia do arranque inclinava-se para a frente como a desobedecer às mais elementares leis da física. Nos aviões acontecia mais ou menos a mesma coisa. Quando arrancavam os aviões e o impulso resultante da aceleração das turbinas vencendo o peso dos próprios e das camadas de ar que sobre eles repousam, a cabeça não se sentia atirada para trás, mas ao invés espetava-se bruscamente para a frente chegando mesmo a bater no banco do passageiro da frente. O contrário acontecia com as travagens. Quando o carro travava, aquele movimento comum de inclinação do corpo para a frente em virtude do peso da cabeça não se efectuava, acontecendo antes a projecção da cabeça para trás e a consequente opressão das costas contra o banco do automóvel. Na montanha russa, quando as íngremes subidas em velocidade acelerada obrigam o corpo e a cabeça a cair para trás parecendo que esta última quer ficar por ali a pairar, no meu caso, a cabeça inclinava-se num movimento furioso para a frente, o corpo a segui-la, parecendo que se queria antecipar ao carro chegando primeiro ao acume da estrutura por onde serpenteava o carril. Inversamente, quando as descidas a pique colocavam o corpo em risco de ser violentamente projectado para fora do carro e ser esmagado pelo correr dos rolamentos metálicos, a minha cabeça forçava o tronco para trás reclinando-se no sentido contrário dos restantes passageiros chegando por vezes a embater no rosto surpreendido do passageiro de trás. Mas quando, chegado ao destino, travava ruidosamente e todos os corpos eram atirados para a frente, o meu recostava-se confortavelmente no assento como se uma mão lhe puxasse a camisola e o quisesse por ali reter para mais uma volta. Nas motorizadas, quer de pequena quer de grande cilindrada, eu constituía uma surpresa enquanto pendura. Se a moto parava de repente, o condutor, habituado a receber o peso do corpo do pendura nas suas costas ficava surpreendido, quando não consternado, ao verificar que o peso se deslocava para a parte de trás da mota dando a impressão que se tratava de uma tentativa de aceleração.
Um dia, na prancha de saltos da piscina municipal de Moscavide, complexo que encima as zonas renovadas da Expo, paredes-meias com o bairro social das carmelitas descalças da paróquia de S. Lourenço, lancei o corpo em corrida pela pista fora. Ao projectar o corpo para a frente, já imponderável no ar, os pés sem contacto com a terra, o corpo erguido e retesado sobre a massa de água inerte à minha frente, o vento sentindo-o fresco e sibilante no rosto e na nuca, o sol dardejando-me as costas empurrando-me para a água, a cabeça negou a gravidade e puxou-me para trás. O movimento teve tanto de brusco como de inusitado. Em vez de me lançar recto em direcção à água executei uma espécie de mortal à retaguarda que me fez bater com a cabeça no betão da prancha de saltos, aquela donde até Alcochete podia ser vislumbrado quando o nevoeiro não o cobria invejosamente; ou mesmo a Moita com a sua patética biblitoteca a assomar como túmulo egípcio que acabasse de ser desenterrado. O choque provocou uma concusão no occipital que ficou fracturado em quatro sítios.

O Líbano

Uma voltinha pelos blogues e vemos que o Líbano não faz parte das nossas preocupações. Os académicos narcissistas e os politiqueiros profissionais estão mais ocupados em esgrimir argumentos sobre pensões ou em divulgar os seus discos preferidos, acompanhados daqueles dixotes comuns como “eu hoje dei com os cornos nisto” como se isso interessasse a alguém. Nesta bolha de vaidade e de ego mal mesurado que é a blogosfera portuguesa há pouca preocupação com o Líbano e o massacre que por lá se vai levando a cabo. A única honrosa excepção que vale a pena ler e reler é Boaventura que como sempre diz em poucas palavras quase tudo o que é necessário. Ver e dar a ver? – disseste. Ninguém quer sequer pensar nisso.

Adenda: PP, como sempre fiel à atoarda, também fala do Líbano. Mas melhor fora que não falasse. Primeiro porque vem sempre com a conversa da falta de isenção dos jornalistas. De uma vez por todas, nós sabemos que ela existe, mas é no sentido contrário ao que pensa PP. Segundo, porque faz um elogio a Israel que nas actuais circunstâncias só pode ser considerado imoral e bárbaro. Por mais que se apoie Israel dizer que a relação de forças, numa altura em que morreram já mais de 500 civis libaneses enquanto Israelitas morreram 35, não é desequilibrada é gozar com o leitor. Embarcar na conversa do PM Israelita segundo a qual a intervenção militar é “equilibrada”.

Africanistas



Das contribuições para o estudo das relações inter-étnicas e para a formação identitária dos imigrantes são a destacar os trabalhos de Pena Pires e de Machado Pais. Para além do reconhecido mérito teórico e metodológico dos dois investigadores há um segundo eixo que possuem em comum - e de forma que dir-se-ia, aguerrida – e que é o facto de ambos os investigadores sentirem particular desconforto com a cor da pele. Dito assim parece uma boutade simplista e ignorante. Mas olhando mais de perto, para aqueles que estão familiarizados com os seus trabalhos, não pode deixar de notar-se que grande parte do seu esforço académico – e não só – culmina numa tentativa de “branquiamento”, Duas das últimas intervenções dos autores aqui considerados servirão para ilustrar este ponto.

Primeiro, FLM e uma recente reconceptualização do termo “segunda geração de imigrantes”. É de notar que estas piruetas conceptuais, que devem mais ao ócio do academismo do que propriamente a avanços científicos, são comuns na sociologia da imigração portuguesa e encontram-se particularmente associadas ao discurso em torno da integração dos imigrantes. A respeito do termo segunda geração propõe FLM que se substitua por filhos de imigrantes. Segundo o investigador os imigrantes partilham mais com a sociedade portuguesa do que aquilo que o isolamento conceptual do termo “segunda geração” admitiria; principalmente, porque já não são imigrantes. Isto é a lógica da batata: não são segunda geração, porque já não são imigrantes, mas são filhos de imigrantes porque, fora da condição imigrante, mesmo que apenas dos pais, não sabemos como denominá-los. Ou seja, se a lógica fosse levada ao limite ficaríamos sem objecto sobre o qual conceptualizar. Mas o que é que se ganha em chamar à segunda geração de imigrantes “filhos de imigrantes”? Aparentemente, nada. A mesma reificação que é temida – e podem ter a certeza que é o discurso da reificação que serve tenebrosamente como pano de fundo – surge duplicada na expressão “filhos de imigrantes”. A uma porque nos relembra as continuidades geracionais (algo que FLM quer evitar ou pelo menos condicionar a outros factores) simbolizada em expressões como a “filha da peixeira”; a outra porque, e isto é que é curioso e paradoxal, nega a própria especificidade de uma segunda geração de imigrantes que o termo “segunda geração” encerra. E porque é que, perguntamo-nos, o termo serve para os Portugueses – a geração mais jovem, a geração mais velha, a segunda geração após o 25 de Abril, etc- e não serve para imigrantes? Estranho. Consequentemente, dizer que porque já não são imigrantes não faz sentido falar-se em “segunda geração” pode ser também aplicado à expressão filhos de imigrantes – se já não o são porquê referir-lhes a paternidade?

Tuesday, July 18, 2006

Narcisismo


“At every stage of life the same gap recurs: children deemed good-looking by peers or adults have a 40 per cent greater chance of finishing their schooling without mishap, just as new employees judged good-looking by their colleagues at work and their professional milieu have a 40 per cent greater chance of regular promotions and an ascending career, and will be likely to meet the handsome young man or attractive young human who will help them rise in life, etc”

Hervé Juvin, L’avènement du corps citado em Perry Anderson

As estratégias da morte (1)

A bala passou-lhe bem entre o frontal e a têmpora esquerda. Quando a viu aproximar-se só teve tempo de fechar os olhos e imaginar o buraco que, subsequentemente, após o impacto e o som oco que se produziria no contacto entre a bala e o seu crâneo, ficaria desenhado na seu rosto agora pálido ou mesmo um pouco azulado. O buraco da bala, de acordo com a sua imaginação, seria um ponto negro, de alguma dimensão, digamos com o diâmetro da cabeça de um polegar quando este se prime contra o peito ou contra um pulso, o que implicava uma cavidade média, tendo em conta que a sua cabeça não era pequena, mas também não era desmesurada, nem sequer desproporcionada em relação a um corpo de estatura baixa, a umas pernas cavadas sob um tronco bojudo, mas que não deixava advinhar força ou tão-pouco persistência, como quando comparadas as alturas médias dos homens medievais com a do homem moderno, que embora menores se imaginam sempre com diferente e maior pujança. Essa cavidade, assim como a imaginava quando fechou os olhos e ouviu já dentro da sua cabeça o estridor da detonação, seria uma lura de negros interstícios, variegados interstícios, nenhum se parecendo com o outro de onde um fio concentrado de uma matéria espessa e negra se exudaria como sangue, o sangue como ele o imaginava, uma réplica cinematográfica mas com mais aproximação à realidade, assim como imaginava que o sangue real pudesse ser, algo que nunca tinha visto, quer dizer, sangue a escorrer realmente de uma cavidade real aberta no crâneo por uma bala disparada de uma pistola, que podia distintamente ser identificado pelo negrume acrescentado ao vermelho lustroso da imaginação fílmica. Imaginou também uma súbita sensação de calor concentrada naquele ponto onde a bala impactaria, um calor em tudo diferente do vapor que por vezes se evolava da velha chaleira onde se lembrava de ter bebido café ainda jovem num campo de escuteiros onde as emaciadas pernas das raparigas, que mais tarde haviam de ter varizes pelo peso do carrego dos filhos, assomavam de baixo de uns calções que assintosamente lhes retiravam a feminilidade; e essa sensação de calor, em tudo diferente daquela que a sua memória lhe oferecia, apaziguante e aconchegante, seria no momento da bala lhe perfurar o crâneo, um calor híbrido, um misto de ardor com o brusco enregelar da cabeça. Assim como o imaginava seria como apagar um dardo ardente, acabado de sair da fornalha, crepitante e candente, rebrilhante das veias que o fogo desenha no metal quando este é levado a altas temperaturas ou sulcado de fulvas nervuras como uma folha exultante de seiva, mergulhando-o na água fria de uma cuba de ferreiro, libertando gementes volutas de vapor, adormecidas de imediato, extinguindo-se no ar abafado pelo calor da fornalha. A sensação de calor ou a passagem de um calor brusco para um frio despido, não se faria de modo insinuante nem dotado de uma languidez mórbida, dessa que às vezes se pode detectar nas carícias últimas dos cancerosos nas alas mais recônditas dos hospitais públicos; nem seria como o espreguiçar do corpo de madrugada quando a vida tenta regurgitar-se num esforço primeiro que facilmente se confunde com o derradeiro, revelando-se numa rápida mas tensa pressão nas vértebras até então dormentes do aconchego lívido dos lençóis. Essa passagem, na realidade, era mais modesta, porém mais vinculante à verdade do corpo e à sua condição perecível. Uma mão interna que perfurasse por dentro o crâneo abrindo caminho à custa de espátulas ardentes como dedos esgravatando terra numa mina escura, deixando a estranha sensação de que a bala fora disparada de dentro e que a cavidade se tivesse aberto como um nascituro a rebentar uma placenta que em vez de expelir vida absorvesse morte no momento de inspirar. A rapidez com que imaginava todos estes pequenos actos, que dir-se-iam dotados de vontade própria, de uma autonomia que só se compreendia enquanto parte de uma mecânica interna mais elaborada, portanto proposicional, portanto fundada em razões, apenas se justificava porque finalmente conseguia perceber o conjunto, aquilo que quando determinado pela sua condição compósita fazia sentido na forma como imaginava o acontecimento da bala a penetrar a sua cabeça entre o frontal e a têmpora esquerda.
A última imagem que viu pouco teve a ver com a famosa sequência das cenas mais significativas do correr de uma vida que nos acostumámos a ver representado em sépia e em ritmo acelerado no cinema, mas mais simplesmente um pedaço desgarrado de carne, pontilhado de sangue vivo e com nervos estilhaçados que conferiam ao seu contorno o aspecto de uma esponja marinha arrancada de um rochedo; um pedaço de carne em tudo semelhante aos da banda desenhada. Depois sentiu-se cair.

Thursday, July 13, 2006

Profiteroles

Leio nos lábios de Materattzi: “tu mamma a estato en lo negocio della prostitutioni; soni tuti terrorista: tui sorella, toi fratello, tuti, tuti quanti...”. Houve tempos, em que a têmpora dos homens se aferia pela maneira como conseguiam comer um leitão inteiro ou arrancar um dente careado sem anestesia. Nesses tempos os insultos eram “vai pó caralho, filho da puta” ou “cona da tua mãe” ou ainda “comer no cu ó paneleiro”, mas nunca a palavra “terrorista” se usara antes. Sinais dos tempos, portanto.
Um insulto deste jaez iliba certamente o perpetrador do acto mais bárbaro, porque se puta está bem, puta terrorista é demais! A resposta da mãe de Zidane não se fez esperar e esclareceu-nos prima facie quanto à justeza do primeiro dos apodos. Disse a velha e combalida senhora “de Materazzi je veux rien qui son colhons dans un plate”. Daqui pouco se infere sobre o terrorismo da família de Zidane, mas deixa poucas margens para dúvidas quanto aos maneirismos caseiros donde brotou a sua personalidade. Seja como for nenhuma insinuação racista ou política está implicada, nem sequer, parece-nos, subliminarmente, nos impropérios da mamma. Materazzi é claro que compreendeu e disse imediatamente, apostado em repor a verdade –embora não tenha dito: a verdade vai ser resposta – que ele próprio tinha um respeito inabalável pela sua falecida mãe e que por isso nunca lhe passaria pela testa insultar a puta terrorirsta da mãe do Zidane. Quem usou a testa foi Zidane e fê-lo em duas ocasiões diferentes: primeiro para enfiar uma cornada em Matterazzi; segundo, porque depois de muito pensar e de ser aconselhado pelo seu manager chegou à brilhante solução de que o pior insulto que actualmente se pode proferir é terrorista!
Fontes anónimas e crianças surdas mudas importadas directamente do Sri Lanka juram que Matterazzi terá dito: “a tua mãe é uma terrorista do Hezbolah, votou Hamas nas últimas (ele tem sentido de humor) eleições palestinianas, passa férias na Síria, perfilhou o filho bastardo de Bin Laden e come kebap ao pequeno almoço”. Como disse Zidane em entrevista “há coisas que um homem não pode aguentar”.

A mulher ausente e a canção de papel

Descrevendo pegas e poltergeists. As ruas alimentadas de putas de todas as nacionalidades providenciam um colorido de outros tempos; um colorido belle epoque com sida, gonorreia e hepatite à mistura. Entretem-se a tirar as pestanas postiças e a voltar a colocá-las com a precisão de um cirurgião hepático. Nota-se já, e porque o colorido da idade mata como um veneno-minuto ou esmaece a vontade como uma febre terçã, as finas rugas cravadas a punhal a descairem obscenas dos cantos dos olhos e das comissuras dos lábios. O olhar está farto, agastado de pedras sem sono e de noites sem poente, e perdido como na saliva de um animal moribundo afoga-se o cigarro comprimido pelo excesso de vermelho que não se torna sangue, pelo lado da garagntilha, da mordaça, da trela de diamantes para caniches de luxo, pelo sangue que se derrama doente. E assim a rua lhe vai passando por entre as pernas: carros e bicicletas e outros veículos não-identificados. Corre a rua que abocanha transeuntes, os despe e atira para o lodo que se acumula nos interstícios da calçada. O passo que a leva, marcial e altivo, o passo de puta, com kilómetros na espinha vergada pelos algozes (sempre os mesmos: o gordo e suado, o magro e dispeneico) que a vão levando do redil para o pasto do pasto para o redil em gestos bovinos acompanhados por sons de balas a silvar, de pulmões sem oxigénio ou talvez de roncos de grandes leões-marinhos prostrados em glaciares.
A fita do olhar, a que se desprende e corre rua abaixo – nunca amanhecendo cedo, nunca dizendo palavras soltas – a fita, essa, a da menina azul que brinca no jardim com o cadáver da avó, essa, a fita, a da menina que deslocou um tornozelo e agora adormece aninhada nos braços putrefactos da avó cadavérica, a fita, essa, a que cerimoniosamente é cortada pelas parcas no lusco-fusco de uma dor de dentes, essa fita, a que se prende a um carnaval de olheiras, a braços gesticulantes de pústulas e a vozes esmagadas de saudade, a fita, essa fita, a que se corta, a que se corta rejeitando, a que se corta, essa fita, rejeitando o âmago da terra, o ventre e a canção de papel.

Entre o nada e a morte prefiro uma feijoada à transmontana

Há sempre um fremir desconcertante nesta ideia do escrever para o nada, para coisa nenhuma, para interlocutor algum ou para olho nenhum. Escrever para o nada é interpelar directamente a morte – tu sabes, tu que me ouves e entras na cabeça que se destinou a chegar tarde e a revelar a matança bem depois do festim. Escrever para ti: nada - o enamoramento da distância ou a virtude completa da irrelevância.
Do nada apenas esperamos. A hora da dor é-nos sempre devolvida com a bonança.

Tuesday, July 11, 2006

The greatest con on the history of mankind!




...diz o vilão do Código da Vinci sobre a possibilidade de desmascarar o segredo, guardado ciosamente pela igreja católica de Roma, segundo o qual Jesus foi casado e deixou descendentes.
Vi o filme e finalmente inteirei-me do fenómeno da Vinci que tem desestabilizado tanta gente boa e honesta. Em matéria de argumento o filme não pode andar muito longe do livro. Por conseguinte, a primeira ilação que de ambos se pode retirar é que o argumento é de uma fragilidade confrangedora. Esquecendo a ideia central – que pelo vistos até foi plageada – a urdidura, a decifração e os detalhes do maior segredo da história da humanidade são tristemente patéticos. Donde se conclui que o livro tem o sucesso que tem porque é fácil – um page turner.
Ficando pelo filme: não chega a ser um bom thriller nem um bom filme de aventuras nem tão-pouco um bom filme de mistério. Mas suponho que o essencial do filme espelha o essencial do livro. E o que temos no filme? Para decifrar o maior enigma da história da cristindade é apenas preciso ir a casa de um lord inglês beber chá que ele conta-nos. O mais são correrias e malevolências de uma seita secreta que subsiste no próprio seio da igreja católica. Dan Brown não se deu muito ao trabalho para explicar a coisa. Tinha roubado a ideia central a uns desgraçados que não viram tusto, grana, pilim, verdes, metal sonante, massa, cacau, bastando-lhe apenas arranjar maneira de a embrulhar da forma mais apelativa. Como sequelas desta empresa brotam agora documentos, uns romanceados outros fiéis à veracidade histórica, uns verosímeis outros carnavalescos, opúsculos e papiros e ainda pegas e aventais com a última ceia e os mistérios que nela se resguardam. És tu o Rei dos intrujões? Pergunta Pilatos a D.Brown - Du hoc dicis...

Monday, July 10, 2006

O Papão


O caso do Papa que não vai ter na missa um primeiro ministro ou do primeiro ministro que não vai à missa de um papa. Este é um caso protocolar e só a atenção que suscita, enquanto caso protocolar, já é exasperante. Os papas têm demasiada dimensão – crepuscular, porque sempre aureolada pela sua pressuposta beatificação. Os papas fazem política – sempre fizeram – geralmente encapuçados pela mensagem ecuménica. Não admira portanto que o papa vá a Espanha para uma homilia sobre a família. Ora bem, isto seria de somenos, como os católicos têm protestado, e só poderia ser colocado no plano da livre profissão da fé, se os pressupostos sobre a família defendidos pela Igreja fossem inócuos. Mas não são.
Aliás o argumento invocado pelos católicos, nestas ocasiões, possui sempre o mesmo pendor – o de que a liberdade da fé que se professa apenas concerne ao próprio e portanto não deve ser assunto da esfera pública nem alvo de mecanismos decisionais comuns, vide estatais. Bem longe vão os tempos da evangelização e do proselitismo; ou pelo menos assim parece. Contra toda a evidência argumentativa por parte dos católicos e ao arrepio da liberdade da fé, o papa faz constantes e sonantes anúncios dos preceitos católicos e dentro destes da moral que encerram. A família é mais um tema na qual a moral católica quer reconquistar o seu quinhão. É redundante lembrar que a família tem sido nos últimos cinquenta anos razão privilegiada de investimentos políticos e que passou por ser o locus de uma revolução cultural que pretendia ver nela a estrutura básica do poder e da opressão. Por conseguinte, não há nada de inocente na discussão da família. Mente a grande família católica quando justifica estas preleições públicas como simples questão de fé.
Benedito XVI possui a este respeito ideias claras. Por exemplo, a condenação intransigente da homossexualidade proclamada publicamente pelo papa não fica pelas consequências a nível de crença – cada um é livre de acreditar naquilo que quiser -, mas em tempo de aceitação de facto e de protecção de jure de práticas sexuais alternativas, assemelha-se a um sombrio e nefasto anacronismo. Sombrio porque reflecte uma concepção de família como estrutura reprodutiva da comunidade humana – algo que desagrada a homossexuais e feministas por igual -, nefasto porque contraria as tentativas de lutar contra a discriminação de que são alvos ambos homossexuais e mulheres.
Se, como afirmam os católicos, o papa é livre de proclamar a sua fé para a comunidade de católicos, já não possui o mesmo direito enquanto chefe de Estado – ou pelo menos estaria sujeito às sanções da esfera pública a que normalmente estes se sujeitam. O papa, e os católicos, pretendem um estatuto de excepção para o seu líder; um que combine simultaneamente o excepcionalismo sagrado de um chefe religioso com os privilégios políticos de um chefe de Estado.

Friday, July 07, 2006

Que bem prega frei tomás, faz como ele diz, não faças como ele faz.

De entrevista em entrevista, de artigo em artigo, Vasco Pulido Valente, Maria de Fátima Bonifácio, Maria Filomena Mónica e Rui Ramos fazem o favor de nos explicar que as coisas já não podem ser como eram. O estado social europeu está morto, pelo que temos de nos adaptar aos novos tempos, que é como quem diz, temos de nos safar no mercado e deixar de contar com o estado como garante de emprego, de segurança social, saúde, educação, etc, etc. O problema da sociedade portuguesa, segundo eles, é que ainda vive na miragem desse estado social que já não tem condições de existir e continua a exigir do estado o que ele já não pode dar. Deixemos agora de lado os conteúdos para prestarmos atenção a quem os veicula. É que esta gente trabalha toda para o ICS, o que quer dizer que, em termos de trabalho para o Estado, estarão entre os mais privilegiados. Podem dedicar o seu tempo à investigação sem grandes preocupações de dar aulas. Ao contrário dos portugueses que desprezam e insultam, têm um vínculo laboral seguro, justamente aquilo que acham que os outros não podem ter. Para cúmulo disto, tanto Maria Filomena Mónica como Vasco Pulido Valente publicam os resultados da sua investigação em editoras comerciais, e não na editora universitário do ICS. Ou seja ganham o seu salário, pago pelo estado, e em vez de porem o fruto desse trabalho, pago pelo estado, ao dispor da instituição pública para onde trabalham, põem-no a render numa editora privada. Numa coisa têm razão, este estado é mesmo uma bandalheira.

Thursday, July 06, 2006

Gisberta Closed



O caso do transexual Gisberta incomoda por diversas razões: pela brutalidade, pela irracionalidade, pelo sadismo, pela malevolência, e por outros opróbrios à dignidade humana. Mas uma das razões de fundo que não está directamente relacionada com a violência física e psíquica do acontecimento e que deixou uma sensação de mal-estar pairante é sem dúvida o silêncio comprometido e acabrunhado da sociedade portuguesa. Não me refiro aos média, que dele fizeram o espectáculo possível, omitindo no entanto, e ao arrepio daquilo que costuma ser seu hábito, os pormenores escabrosos; nem tão-pouco me refiro à vox populi que habitualmente prontifica-se em acusações e em processos de intenção. Refiro-me sobretudo a quem teria por responsabilidade reflectir sobre estes assuntos, tentar enquadrá-los dentro de um horizonte de compreensão, encontrar-lhes uma causa ou pelo menos averiguar do seu sucedido. O desconforto mostrado por opinadores regulares e outros de ocasião deixa entrever algo com o qual a sociedade portuguesa ainda não encontrou a serenidade. Esse “algo” misterioso passa obviamente pela assunção dos papéis sexuais, pela permeabilidade do discurso da masculinidade e pela ambiguidade das pulsões sexuais e intersecta, bem no âmago, o imaginário familiar e a moral católica.

Ao aduzirmos razões não nos faltam cenários possíveis e todos eles plausíveis dentro das estruturas organizacionais envolvidas e dos actores – e não apenas os perpetradores directos do acto – participantes. Recordo-me que uma vez uma velha colega de faculdade que entretanto se voluntariara para trabalhar numa dessas instituições de regime de internato contou-me que era hábito os miúdos sodomizarem-se com paus de vassoura. O registo escabroso da acção não pode deixar de alertar para o paralelo que pode sem esforço ser traçado entre as práticas assumidas pelos internos e os actos cometidos sobre Gisberta – também esta foi violada repetidamente com paus. Por conseguinte, o discurso que coloca os acontecimentos do Porto sob a ordem da anomalia falha o essencial: não estamos perante um acto anormal, mas sim perante uma acção “normal” que extravasou as paredes que a continham enquanto reservada a uma “anormalidade estruturante”. A justificação dada por um dos prelados é disso assaz ilustrativa. Segundo o prelado a acção dos miúdos não foi uma “acção”, no sentido de dotada de autonomia, mas sim uma “reacção”: era porque a transexual os assediava que eles decidiram, supõe-se, pôr cobro à situação usando - e aqui as justificações do prelado parecem pateticamente pusilânimes -, de extrema violência e sadismo. Para este prelado o acto justifica-se automaticamente enquanto reacção a um outro acto de tal forma imoral que só poderia ser respondido com extrema violência. Ninguém se lembrou de colocar o prelado perante o simples facto de que nem todos os miúdos com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos violam transexuais, torturando-os e sodomizando-os com objectos, mesmo quando por estes são assediados. E todavia esta é a pergunta que se impõe. O prelado teria dificuldades em responder, não porque a inquirição fosse demasiado complexa ou sinuosa, mas porque sabe perfeitamente a resposta. Neste caso a acção-reacção dos miúdos é “normal” e aceitável porque a prática retira o seu modelo de um outro lugar; ou seja, o prelado encontra-se consciente de que não é a primeira vez que estes miúdos em particular se envolvem nestas práticas em particular e que portanto a sua repetição, mesmo quando levada ao extremo, não é encarada com a surpresa das acções dificilmente classificáveis, mas antes com a tolerância de quem partilha do mesmo contexto possibilitador e produtor de tais actos. Não admira portanto que o prelado se regozijasse com o facto de o julgamento decorrer à porta fechada – para proteger as crianças, reza sempre a mesma litania. Na Casa Pia tudo se moveu com grande secretismo –excepto a denúncia dos suspeitos do costume – igualmente para proteger as crianças. Tornou-se hoje claro que o que se pretende é proteger as instituições; e sobretudo a instituição “Igreja”.


Não é um país a sério, obviamente, aquele que não levanta inquéritos rigorosos às instituições de internato católicas. Não estamos em condições de acusar padres às dezenas como foi feito nos Estados Unidos, nem tão-pouco de reduzir a idade de imputabilidade para condenar como homicidas crianças de 10 anos que matam outras – recordando o famoso caso inglês.
O julgamento de Gisberta vai acabar por morrer à porta fechada. Na cena pública portuguesa parece que isto apenas concernia aos homossexuais – caso que se imagina que muitos terão pensado que o transexual teve o que merecia. Uma fractura fatídica levou a que o caso Gisberta fosse discutido pela comunidade homossexual perante o silêncio comprometido da comunidade heterossexual. “Isto não nos diz respeito, é lá coisas dos maricas”, parecia ecoar pelos media. A fotografia de Gisberta foi estrategicamente omitida: como poderia ser classificada imageticamente a inclassificável Gisberta. O que fazer do dispositivo hiper-mediatico que é a fotografia quando ela não encontra categorias para se reproduzir?


A forma como se construiu o palimpsesto sobre Gisberta possui detalhes que são simultaneamente curiosos e aterradores. Um país que se sente incapaz de nomear um “transexual” preferindo escondê-lo sob as roupagens andrajosas de um “sem abrigo” é um país que não está de bem com a sua consciência (e os países também a têm, imaginemos). É claro que as relações dos jovens, do transexual e da instituição – que é no fundo aquilo que o asseptismo do termo “sem abrigo” pretende erradicar dos acontecimentos, como se fosse ele próprio o alibi generosamente oferecido pela sociedade portuguesa – vão ser discutidas à porta fechada.
Portugal é talvez a jangada com que Saramago um dia sonhou; mas nas suas velas impantes leva bem gravada a cruz de cristo.

Merdial de Futebol





Perdemos. Desta vez doeu demais. Morra o Scolari –PUM! Morra o árbitro –PIM! E a cabeça do Figo? Posta a prémio, seria seguramente o mínimo. Temo que já não valha nada, caro Dr. Ah, sim? E a BOLA é redonda, o mundo é redondo e a cabeça é redonda – isso não lhe diz nada? Com franqueza, não vejo onde quer chegar. Quero dizer: o que será do futebol do futuro?

Este mundial teve uma virtude, mostrar que, na senda da teoria dos sistemas, também o sistema futebol se encontra em declínio, degenerescência, senescência. Os jogos foram chatos (haverá outra palavra para aquilo?), sem surpresas, desmotivantes, irritantes. Jogos decididos a penalties; jogadores que forjam faltas como se a isso se lhes ativesse a mestria (o que nem é verdade) – mas foi uma constante deste mundial: jogos decididos pela arte de fingir.
Depois os árbitros, a tirar foras-de-jogo milimétricos, como se o futebol fosse ciência exacta que, por virtude da modelização, se pudesse tornar experimental. Modelos computorizados, rectas perfeitas (ridículo, num jogo em que por virtude do atrito e da ergonomia nunca se atirou uma bola que tomasse uma direcção recta – isto não é billhar, valha-nos Zeus) E aí está – a palavra! Aquilo parece científico; experimentação com grupo de controlo e tudo. Dá a impressão que tudo está estudado ao pormenor, as posições dos jogadores, como marcar ao homem, para onde se vira habitualmente o Ronaldo, como e quando arranca o Del Pierro, onde deve o Henry fabricar a falta, etc. Uma peça de teatro não necessita de tanto ensaio. Resultado: tudo previsível e jogos já não decididos por jogadas, mas por acidentes.

Outra desgraça: tanto perorou o Senghor pelo rendez vous entre o Ocidente e o resto que ele acabou mesmo por acontecer – e começou no futebol. Já não há futebol latino-americano. O Brasil joga como a França e a Argentina tem tanta imaginação como a Suécia. Nem toques bonitos, nem brinca na areia, nem dribles encantados – nada. E porquê? Porque ninguém arrisca. Uma equipa como a França marca um golo de penalty e fica um jogo todo à retranca para não sofrer golos. Ora isto é imoral. Onde está a virtus dos guerreiros, as vontades tímicas dos gregos, o Wille zur Macht nietzschiano? O dinheiro corrompeu-os! Os contratos publicitários milionários rebaixaram-nos! É vê-los correr no relvado como os homems sem coluna vertebral. Para que correm? Não há-de ser por nós com certeza.
Abaixo a França, viva Portugal!

Tuesday, July 04, 2006

Liebesleben



De qualquer das formas o jogo é sempre o jogo e as jogadas não são mais do que a mímica de uma jogada infinita.

(Era verdade que ela me queria. Não podia enganar: aquele sorriso meio comprometido, o olhar de soslaio com as pestanas a retorcerem-se na ponta de convites sibilinos; ou então a forma como humedecia os lábios, prensando-os um contra o outro e espevitando a língua (adivinhava-se) a acariciá-los pressurosamente dentro da boca. Não, não havia nada que enganar – queria-me e não era pouco. Também a forma como sacudia uma melena, sempre a mesma, para fora da testa, a despedi-la da fronte com a ponta dos dedos (o indicador e o médio?), sempre os mesmos, e a deixar que ela regressasse novamente já morta de cansaço – isto também, dizia, não enganava: queria-me. Obviamente que a maneira como juntava os joelhos ora fazendo-os tocarem-se ao de leve como se se beijassem sem euforias, ora apertando-os como a obrigá-los a para sempre ficarem ligados numa comunhão carnal, também poucas dúvidas deixava - queria-me e nem conseguia disfarçá-lo. Mas a forma como bifurcava os pés para logo de imediato colar uma ponta do sapato à outra operando este movimento menos mecânica que elegantemente, um movimento dançante, um pliê sem pontas mas que se repetia com a rectidão geométrica de uma velha bailarina numa aula de dança, este movimento dos pés, dizia, também dava pouco azo a confusões ou ambiguidades: queria-me e nem pretendia omiti-lo. O que verdadeiramente a denunciava era a forma escarninha com que deixava escapar uma gargalhada, menos maldosa que irónica, e com certeza menos entediada do que deslumbrada, umas vezes seguida de uma pequena farfalheira e outras pontuada por uma cambiante afectiva que se mostrava pelo ar sisudo que de repente assumia, estes sinais, dizia, constituíam irrefutáveis provas de que me queria. Sem esquecer a forma esquiva com que colocava o pé na estrada, ao descê-lo do lancil do passeio para o asfalto da rodovia, sem nunca o deixar cair pesada e desastradamente, pelo contrário, pousando-o ao de leve, insinuando um passo aéreo, primeiro ficando imponderável entre o passeio e a rua para depois, como se houvesse um degrau intermédio que só a ela lhe era dado pressentir, o fazer deslizar ao encontro da primeira lista branca da passadeira de peões. Queria-me e disso não fazia segredo.)

De qualquer das formas o desejo é a mimetização dos gestos alheios.