Thursday, May 31, 2007

Ruído

Se existe virtude da era da comunicação global essa encontra-se com certeza na facilidade com que as opiniões se desdizem. O fluxo de informação tem estas pechas: como é efémero dificilmente apela para um julgamento retroactivo; como é excessivo, torna-se quase impossível o seu escrutínio. Assim posições que pareciam inabaláveis há anos atrás, são confortavelmente reformuladas, transformadas e esvaziadas a um ponto em que o rastro da opinião inicial se perde inexoravelmente. Por isso políticos e analistas podem dizer aquilo que lhes apetecer, que lhes convier, que mais se ajustar às circunstâncias que ninguém os responsabilizará por isso. Se isto se passa no domínio das acções, das quais decorrem efeitos mais paupáveis, o que dizer das palavras, que não as leva o vento, mas leva o ruído comunicacional? Este “ruído” não se cinge a um problema comunicativo; ele é sobretudo um problema moral.

Proust


O que me parece interessante na Recherche de Proust é como é que um livro gigantesco é tão fácil de ler. Há outros exemplos que me ocorrem sem grande precisão nem acutilância anamnésica e que são verdadeiros tormentos. Calhamaços de mais de 1000 páginas que custam mais a engolir do que um discurso de Marques Mendes. A versão canónica que nos ensina que ler a Recherche é um martírio não resiste à prova da realidade, do prazer inigualável que é deslizar pelas metáforas e figuras de estilo proustianas; deixarmo-nos levar, como pétalas varridas por um suão leve e nobre, pelas personagens e suas idiossincrasias; e sobretudo sermos conduzidos pela mão de Marcel ao mais fundo (que é talvez também o mais superficial) das suas elocubrações. Só Proust podia escrever um livro desta dimensão – volumétrica e literária – que se lê de uma penada.

A Porqueira

O DN devia trazer na primeira página “O Governo adverte que este jornal é extremamente prejudicial à saúde e que pode até matar”. Seria um serviço público de mérito; uma vantagem para a higiene mental e para a saúde dos portugueses em geral. Quem o lesse, fá-lo-ia por sua conta e risco, não podendo posteriormente assacar culpas aos responsáveis pelo jornal.
Exemplos avulsos que mostram à saciedade a pocilga que é o DN. Sobre as eleições espanholas lê-se “
Vitórias esmagadoras em Madrid na origem da vantagem do PP” Esmagadora salda-se em mais 4,8% do que no ano passado e é uma tendência absolutamente consolidade em Madrid. Preocupante para o PSOE? Sem dúvida. Mas não leva à conclusão a que a denodada jornalista chega por portas travessas: “Zapatero... deverá tirar lições das municipais e iniciar um período de reflexão” acrescentando que isto foi dito por alguns, anónimos, analistas. Desde logo porque as eleições autárquicas em Espanha ficaram-se por um resultado tangencial entre os dois partidos, dando uma vitória quase inexpressiva ao PP, uma diferença – e o título da notícia podia ser, claro, “Vitória inexpressiva do PP não assegura sucesso eleitoral em 2008”, só para variar. E Zapatero tirou lições logo a seguir. De acordo com o CIS, as últimas sondagens dão uma vantagem do PSOE, e o El País escreveu “El PSOE dobla la ventaja sobre el PP y le saca tres puntos, según el CIS” – nota-se uma certa diferença na forma de apresentar a notícia, certo. E diz mais. Diz, por exemplo, que Zapatero cresce em popularidade afastando-se progressivamente de Rajoy que já nem sequer se encontra em segundo lugar. Motivos para reflexão, sem dúvida.



No DN d’hoje, o jurista Lomba crocita qualquer coisa sobre o Tribunal Constitucional. Segundo o ilustre, os lugares para o TC são politizados porque os juízes são escolhidos pelo parlamento. Supomos que só são politizados agora, e que dantes não o eram. Mas Lomba tem a solução: partilhar os poderes de nomeação com o Presidente da República. É claro que interessa que seja, agora, com um PR de outra cor. Contudo, se o PR for da cor do governo, o Lomba parece assumir que o primeiro garantirá a neutralidade em relação aos alinhamentos políticos. Um génio este Lomba!


Finalmente, VGM perora contra a solução aeroportuária da OTA. Não está em causa os pareceres técnicos e a avaliação feita pelos peritos. Neste caso, o mais significativo é a sanha com que os representantes e apoiantes do PSD se atiram ao governo PS contra uma solução que eles próprios apoiaram quando eram governo. Os argumentos a favor da margem sul são inexistentes. Os argumentos contra a OTA baseiam-se nas inexistentes razões a favor da margem sul. O que nos leva a pensar que, perante a nulidade da argumentação técnica, apenas os interesses económicos devem estar a presidir aos ataques soezes do PSD; ou seja, Lusoponte uberalles!

Wednesday, May 30, 2007

Eles andam aí




A porta-voz para os direitos das crianças da católica Polónia requereu uma peritagem a um grupo de psicólogos para avaliar se os Teletubies promovem um estilo de vida homossexual. O facto de Tinky Winky andar sempre com uma pequena mala vermelha de senhora levantou suspeitas a esta paladina da moral e dos bons costumes. Twinky Winky, como a foto acime esclarece, possui aquele olhar lábil e insidioso que só se encontra em homossexuais enclausurados – ainda dentro do armário e trancados a sete chaves – ou em andróginos em processo de gestação acelerada. É que apesar de carregar uma barata mala de senhora, o infame Twinky Winky é um rapaz.
Aquela coisa do “abracinho, abracinho” já tresandava a homoerotismo; ou mesmo a escandalosa libertenagem – por que raio andariam estes seres disformes e pesadões a meter as gadanhas na carne um dos outros, em amplexos tanto desengonçados como libidinosos?
Após este rude golpe nas fundações morais do catolicismo polaco, uma rádio (mas a BBC não especifica qual) lançou no ar o seguinte repto: denunciem os programas infantis que consideram ser portadores de subliminares mensagens homossexuais. Winnie the Pooh, por cultivar apenas amizades masculinas, tão ao gosto dos filósofos atenienses, foi imediatamente colocado no rol dos personagens de fronteira. Mas mais podiam ser identificados. Laurel and Hardy, popularizados como Bucha e Estica para a criançada portuguesa, são o par homossexual canónico. Não fazem nada, não trabalham, andam sempre juntos e um, o Estica, tem aquele choro amaricado próprio de gays em distresse. Bugs Bunny, a cenoura, a espingarda de Elmur, são tudo metáforas penianas convenientemente encobertas pela mestria de Tex Avery. Dois corvos, negros e luzidios (como convém), não escapam à ávida certeza dos psicólogos que por ali andará bicheza a mais. E o que dizer do par Batman e Robin? Se aquilo não é uma réplica do típico par espartano – mestre-discípulo – não sei o que será? Ainda por cima com cuecas por cima das calças, só podiam ser indianos ou gays. Isto não ficava por aqui: a lista é interminável. Mas os Teletubies são os primeiros a cair nas malhas do puritanismo polaco, com a devida caução dos psicólogos. O problema é que se calhar eles até têm razão.

Tuesday, May 29, 2007

Internamento compulsivo


A austeridade administrativa e orçamental ameaça a tranquilidade de cidadãos que sentem que a sua liberdade de expressão pode ser onerosa. A imprensa sabe o que tem de pagar para aceder à informação. As empresas conhecem as iras do Governo e fazem as contas ao que têm de fazer para ter acesso aos fundos e às autorizações. Sem partido que o incomode, sem ministros politicamente competentes e sem oposição à altura, Sócrates trata de si. Rodeado de adjuntos dispostos a tudo e com a benevolência de alguns interesses económicos, Sócrates governa. Com uma maioria dócil, uma oposição desorientada e um rol de secretários de Estado zelosos, ocupa eficientemente, como nunca nas últimas décadas, a Administração Pública e os cargos dirigentes do Estado. Nomeia e saneia a bel-prazer. Há quem diga que o vamos ter durante mais uns anos. É possível. Mas não é boa notícia. É sinal da impotência da oposição. De incompetência da sociedade. De fraqueza das organizações. E da falta de carinho dos portugueses pela liberdade." António Barreto in Público.


Há muitos anos, numa era ainda inocente, Barreto porfiava com o PP num programa moderado por MS Tavares. Os mais desatentos julgavam que estavam perante duas posições em confronto, que se contradiziam, desdiziam e buscavam a argumentação mais justa para fazer valer os seus pontos de vista. A ilusão manteve-se e até havia alguns incautos que pensavam que Barreto era de esquerda – e nessa qualidade actuava como porta-voz da dita – e o PP era o representante da intelectualidade de direita. É óbvio, como então já o era, que estávamos bem longe de ter dois quadrantes políticos; ao invés, Barreto servia de caixa de ressonância para as aleivosias pereirescas, não fazendo mais do que repeti-las de maneira mais acessível.

Talvez tenha sido aí que começou o processo de fascização da comunicação social em Portugal.

A economia dos feriados


Os empresários portugueses são um pouco coriáceos. Não há país europeu civilizado onde o debate sobre o crescimento económico recaia sistematicamente no horror dos feriados e do tempo livre. O problema, parece, encontraria a sua solução abolindo feriados e o pressuposto excesso de tempo livre. As especulações cínicas dos nossos empresários são de uma fragilidade confrangedora quando aquilatadas contra os factos. Vale a pena um pequeno exercício de aritmética escolar.

Portugal, dizem os nossos garbosos empresários, sofre duma ociosidade insanável, porque, vejam lá, tem 14 feriados nacionais. Isto é fatal para a economia, por isso é que temos o crescimento do PNB em 2006 mais baixo dos 27 países da União Europeia (incluindo os chamados accession countries). O mais baixo dos 27, a 1,3%, convém sublinhar.
A nossa vizinha Espanha tem 9 feriados nacionais, mais todos os feriados Regionais, que ascendem a mais de 20. Crescimento PNB, 3,9%. A Finlândia tem 12 feriados nacionais e um crescimento de 5,5% do PNB em 2006. A Áustria tem 13 feriados nacionais, e um crescimento 3,1% em 2006. A Irelanda tem 10 feriados nacionais e um crescimento de PNB de 6% em 2006. E finalmente a Dinamarca tem 14 feriados nacionais – pasme-se – tantos como Portugal e um crescimento de PNB de 3,2% em 2006. O exercício pode ser repetido para quase todos os países da União Europeia. O PNB português que cai a pique desde 1997 dificilmente é explicável pelos dias feriados. É que quando era de 4,8 (1997) os feriados continuavam a ser...14.

Estou consciente que esta relação é forçada e meramente especulativa. Mas também as desculpas esfarrapadas das nossas confederações patronais o são.

Comecem mas é a investir e a criar emprego em vez de se banharem em faustos obscenos!

A inteligência e a necessidade

Dizia um patrão, no Prós & Contras de hoje, defendendo a redução dos feriados e a importância de regras de despedimento mais arbitrárias, que "quem não muda por inteligência, muda por necessidade". Necessidade, claro, do mercado e mais concretamente do mercado global. Que esta necessidade seja agora afirmada muito mais abertamente pelos corifeus do capital do que o era há trinta ou quarenta anos, não é apenas um efeito das transformações da economia. A existência do bloco comunista, e a guerra ideológica que se travava no ocidente contra o comunismo, obrigava os defensores do capitalismo a argumentar a favor da superioridade deste com os maiores níveis de vida, ou seja, com os níveis de consumo e conforto, das sociedades capitalistas. Hoje, em que julgam não vislumbrar alternativa à ordem político-económica vigente, já não há necessidade de prometer bem-estar. Pelo contrário, anunciam que acabou o período de emprego quase garantido, e de gratificação pelo consumo. Entrámos na era da insegurança social. Na época dos salários congelados, do trabalho até à velhice quase morte, do trabalho até mais tarde, do endividamento, do recibo verde que contrato não pode ser que é mau para o défice. E também da privatização de tudo, da saúde, do ensino, da cultura, do desporto. Este novo realismo é obviamente o resultado de um reequilíbrio das forças sociais a favor do capital. Era bom que então as pessoas se começassem a perguntar porque raio é que o capitalismo vale a pena?
Tenho esperança que isso leve as pessoas (ou algumas pessoas) a fazerem algumas perguntas de algibeira. A perceberem o escândalo que é, por exemplo, alguém ser dono de algo que estava cá muito antes do seu nascimento e continuará a existir muito depois dele morrer. Chama-se a isto propriedade da terra. Ou o escândalo que é alguém depender de outro, do julgamento e da conveniência de outro, para sobreviver. Chama-se a isto trabalho assalariado. É que, cada vez mais, um número cada vez maior de pessoas não tem nada a perder a não ser as esperanças que já não se vão cumprir.

Monday, May 28, 2007

As Luzes

Enquanto por aqui os suspeitos do costume continuam a sua campanha de desinformação sobre Israel e a Cisjordânea; enquanto o PP vai à Palestina e não nota sequer miséria e exclusão e apenas se preocupa se há bibliotecas e se são tão boas como em Telavive, fiquemos com uma entrevista sintética, mas muito objectiva de Zeev Sternhell para a La Republique des Idees da qual destaco um excerto
vdi : En tant qu'historien, vous avez passé plusieurs décennies à analyser le phénomène fasciste. Dans quel sens avez-vous évoqué, en 2001, une « fascisation de la société israélienne » ?

z. s. : L'occupation de la Cisjordanie et de la bande de Gaza a pourri notre société. Il y a vingt ou trente ans, il aurait déjà fallu mettre fin à l'occupation pour rétablir la santé de notre société. L'exclusivisme juif à l'égard des Palestiniens représente un danger pour Israël plus encore que pour ses voisins. C'est l'esprit et la réalité de l'occupation : d'un côté, il y a les Israéliens, de l'autre, les Palestiniens, sous leur botte. C'est un désastre pour notre société. Évidemment, d'un point de vue physique et matériel, les Palestiniens en souffrent beaucoup plus que nous. Mais, en termes moraux, la société israélienne paie un prix exorbitant.
Ainda há gente lúcida.

O Recruta






Ultimamente surgiram nos dois jornais de referência nacional um conjunto de nomes cuja referência (ainda?) não é perceptível. Puro erro: estes nomes, embora para muitos inauditos, são fáceis de referenciar. A experiência mostra que quando introduzidos no google nos conduzem invariavelmente a um blogue. Foi assim que entretido a ler um artigo de opinião de um desses ilustres desconhecidos que dá pelo nome de Alberto Gonçalves, e não encontrando referência que me parecesse consistente, nem em escol partidário, nem nos arcanos da literatura nacional, nem tão-pouco na nobre profissão de jornalista, googlei o abstruso nome e depressa fui levado ao inimitável “Homem a dias”. Comecei então a cogitar que o universo da blogosfera gerou uma constelação de futuras promessas literárias. Puro erro: a selecção que é feita desta rapaziada que vem caindo avonde nas páginas da nossa imprensa pauta-se por critérios bem definidos e não se deixa atrapalhar por simples atavismos estéticos. Assim, o nosso agora conhecido e compincha Alberto Gonçalves, retirado da lonjura a que fora remetido pela fotografia que lhe calhou em sorte na página do DN (e que é reproduzida acima), começou lentamente a ganhar contornos, mormente na sua própria constelação ideológica, inserida que está numa galáxia de venerandos nomes. Em 2003 escrevia o nosso homem a dias que, farto da faxina a que a sociologia – curso que ele amaldiçoa por ser eivado de esquerdismos e saudosismos marxistas - o obrigava descobriu o Toqueville pela mão da nossa esperança do liberalismo de urinol, o ainda mais venerando João Pereira Coitadinho. Aqui já estamos de sobreaviso e começamos a aprofundar o nosso entendimento sobre as razões pelas quais teria o bom do Alberto sido ceifado na colheita cultural desse pai dos povos ocidentais que dá pelo nome de Luís Delgado. Mas não vos atormenteis homens de pouca fé, pois o Alberto ao explicar a sua inclinação autobiográfica para o Toqueville lá diz entrelinhas que costumava andar em romarias com os seus - sem dúvida que igualmente venerandos -, pais pelos comícios do Sá Carneiro. Um caso portanto de socialização bem sucedida. Como isso não bastasse, o Alberto odiou os colegas esquerdalhos da Universidade do Porto, invectivou professores porque o obrigaram a engolir coisas nauseabundas como o Wallerstein e o Bourdieu, abjurou as colegas que para além de esquerdalhas eram todas feias, mas finalmente, ó almas, reencontrou-se com a paz e com a sua mais íntima natureza, no regaço toqueviliano. Todavia, ficamos confundidos com o facto de o Alberto, que odeia a volátil sociologia de esquerda, não se fazer rogado em colocar a sua profissão apensa ao seu nome não vá a gente pensar que ele é alguém desautorizado para o dislate e a bujarda.
Esta biografia nem é inaudita e pode ser identificada em variadíssimos outros casos que, invariavelmente, têm sido recrutados dessa constelação em formação constituída pela novel direita. Há certas características que podem ser facilmente reconhecidas nesta nova clique: são de direita conservadora, são muito irreverentes e ainda gostam mais de o sublinhar, e fazem os trabalhinhos de casa aos já cansados e encanecidos Luís Delgado e José Manuel Fernandes. Suponho que é isto que eles designam por pluralismo democrático – muitas caras diferentes todas arregimentadas ao mesmo covil do conservadorismo e da pusilanimidade.


Pois é malta se querem saber donde veio esta cáfila é só googlar e com certeza que há-de dar a um blogue perto de si. Mas da nova direita, pois então.
A foto é cortesia do Kaos.

Sunday, May 27, 2007

Wikipeidia

Ainda a propósito de Santana Lopes, quando andava à procura duma fotografia com o seu rosto tisnado enquadrado em colarinhos brunidos fui parar à página da Wikipedia que algum social-democrata mais dado à filantropia lhe dedicou. Aí, ainda mal refeito da visão do seu semblante em pose de estadista fui treslendo o texto que alguém bem intencionado – se não o próprio SLopes – plantara generosamente na página da Wikipedia. Texto esse que diz o seguinte:

o Presidente da República
Jorge Sampaio convidou Santana Lopes a formar novo governo, a 12 de Julho foi indigitado primeiro-ministro e a 17 de Julho tomou posse. No entanto, após quatro meses de governação instável, Sampaio anunciou a 30 de Novembro que iria dissolver a assembleia e convocava eleições antecipadas, apesar da coligação entre o PSD e o PP ter a maioria na Assembleia da República, facto inédito na história da democracia em Portugal. Sampaio não chegou a explicitar os motivos da sua decisão mas o facto de o Partido Socialista (partido de Sampaio) estar na altura em alta nas sondagens e o facto de a liderança deste partido ter entretanto mudado foram apontados por vários sectores como tendo sido determinantes para a sua decisão.

Bom, assim de repente parece um texto nada tendencioso, equilibrado e certamente não especulativo. Dei comigo a cismar sobre a livre circulação da informação – que como a do comércio, provavelmente não produz os melhores resultados -, e como essa mesma liberdade pode facilmente resvalar para a pura desinformação. Ocorreu-me de imediato os perigos que podiam esconder-se por trás deste facilitismo do conhecimento: e se o João Carlos Espada tivesse escrito a página sobre Rousseau, ou o César das Neves a página sobre o Nietszhe?

Onde está o Lopes?

Dentre as peripécias da Câmara de Lisboa e das notícias que têm vindo a lume, aquilo que mais me impressiona é o facto de Lopes sair incólume destas vigarices todas. Lopes, o tal que começou por ser apelidado de animal político acabando a merecer o epíteto de animal da política, por qualquer virtude do ilusionismo caseiro ou por contenção verbal dos nossos plumitivos, desapareceu de cena, não se chegando sequer a pronunciar o seu nome tal qual o redentor para os primeiros cristãos.

Não sei porque artifícios da memória ou propriedades quânticas, o Lopes, o nosso Lopes, o homem cujo sexo appeal foi imortalizado pela nossa diva da arte dramática, a inefável Graça Lobo, foi consumido num buraco negro, que lhe conferiu o dom da transposição espaço-temporal, permitindo-lhe, no inventário da pulhice administrativa eximir-se a três anos de carreira edílica (mas não idílica). O Lopes esteve lá três anos!; e apesar disso, é notável como a maioria dos comentadores do PSD e do CDS-PP omitem esta simples evidência: Carmona herdou a câmara que Santana Lopes deixou e não a que João Soares havia há muito abandonado. Porventura tratar-se-á de um acto de misericórdia a quem levou tanta porrada ainda na incubadora. Mas custa a crer que o Lopes, que levou por sua mão o seu distinto amigo Carmona não tenha pelo menos metido o dente em algumas das negociatas do faustoso erário da capital.

Saturday, May 26, 2007

Charrua à frente dos bois

O caso charrua é um caso atípico. Não por causa dos seus contornos censurantes, mas pela indignação que suscitou, sobretudo na comunicação social. A dimensão do caso Charrua é tanto mais atípica quanto são incontáveis os processos de “emprateleiramento” – um neologismo que devia ser, quanto antes, adoptado em Portugal – da responsabilidade do PSD. Aliás, estes afastamentos compulsivos, para quem já não se lembra, foram uma constante das grandes purgas cavaquistas. Os efeitos dessas mesmas “substituições selectivas” ainda os estamos a viver actualmente. Acredito que a directora da DREN tenha métodos pouco ortodoxos para proceder ao “emprateleiramento”. Acredito igualmente que a anedota sobre o primeiro-ministro foi apenas o motivo, tanto cínico como conveniente, para afastar Charrua. E acredito também que Charrua colocava em cheque a autoridade da directora do PS. Da anedota, as versões variam: desde ter chamado filho da puta a Sócrates até, segundo o próprio Charrua alega, ter dito apenas a um colega para enviar uma licenciatura falsa e para o fazer por fax. O teor da anedota, como qualquer pessoa minimamente avisada percebe, é irrelevante. Fernando Charrua pertenceu ao grupo parlamentar do PSD no qual tinha por funções ser o representante para a ciência e a educação. É cristalino que Charrua não devia ser um bom osso de roer para a directora do PS. Mas também isso é secundário. O que impressiona neste caso é como é que Charrua consegue mobilizar jornais, blogues, rádios, comentadores, etc, etc, em torno do seu caso. A expressão “ditadura socialista” tem à sua conta feito uma carreira fulminante. A este propósito, convém lembrar que uma outra expressão, esta cunhada por Durão Barroso, hipnotizou os meios de comunicação que foram useiros e vezeiros na sua repetição. Falava-se então de “crime de cidadania”. Depois foi o que se viu.

Et Tu Brunus


O Bruno fala em dessacralizar o poder. Primeiro é preciso localizar o poder e não confundir escaramuças de repartições públicas com o poder. Se por dessacralizar entendermos denunciar o poder na sua aparência benévola onde ele se exerce com a maior violência, então estamos totalmente de acordo. Todavia, julgo que a violência não é a de pôr um antigo deputado do PSD na prateleira. A violência, mistificada de opinião pública, encontra-se num conjunto de jornais que orquestram a ideia de que um tal acontecimento é um assomo grave de censura de um poder socialista desmandado e cruel – chegando ao absurdo das comparações com a ditadura salazarista -, ao mesmo tempo que encobre sibilinamente todas as violências que são perpetradas sobre o direito à greve ou sobre o direito ao trabalho ou sobre o direito à residência, para ficar apenas por três que me ocorrem de repente, bem longe de ser exaustivo.
Violento é haver uma coordenação de esforços para convencer as pessoas que vivemos em tempos de censura porque um tipo foi afastado, quando na verdade vivemos de facto em tempos de censura por muitas e outras razões. A violência do não-dito é por vezes mais sacralizadora do poder do que a bufice. Basta lembrar que a palavra impronunciável é o princípio do sagrado.

A censura de que não se fala

Não acho inútil a indignação a propósito do afastamento de Fernando Charrua da DREN por ter contado uma anedota sobre Sócrates. Acho óptimo que se estigmatize a bufaria dos colegas, a prepotência dos directores e a sabujice perante as autoridades. As palavras de justificação da directora, "afinal é o primeiro-ministro de portugal" são arrepiantes. Nada é mais importante do que dessacralizar os lugares de poder. O que não me lembro é de ver toda esta gente que agora se levanta de indignação revoltar-se com a prisão do jovem que queimou a bandeira nacional o ano passado.
Mas mais grave ainda é a pressão que neste momento é exercida por directores de serviço em vários serviços públicos, para que os trabalhadores não façam greve dia 30. Ou, pior ainda, o que se passa nas empresas privadas, onde a hipótese de greve não é sequer considerada pelos trabalhadores, porque se tornou natural e aceitável que se despeça um trabalhador por este fazer greve. Esta ideia de que a greve é, quanto muito, para o sector público, e que os trabalhadores do privado estão proibidos do seu exercício, este despotismo do capital privado, isto sim, é o fascismo.

Lápis Azul

Não creio que o infeliz caso da directora regional de educação que dispensou os serviços de Fernando Charrua, por causa de uma anedota sobre a "licenciatura" de Sócrates, tenha grande efeito sobre o primeiro-ministro. Enquanto os jornais e televisões ribombam de indignação com o caso da censura e da claustrofobia democrática passa incólume e sem crítica a notícia de que os salários da função pública ficarão congelados até 2009. 2009, percebem, o ano das eleições? O despudor com que o governo impôem medidas saídas directamente da cartilha liberal anunciando ao mesmo tempo que as vai suspender para efeitos de caça ao voto, mostra que sabem bem o que é que vão encontrar do lado da oposição e da comunicação social. O apoio silencioso. Apoio esse nada dispiciendo em vésperas de greve geral.

Friday, May 25, 2007

A cultura e as massas

A minha resposta ao post do nuno sobre a cultura suscitou-lhe reflexões sobre a esquerda, diz ele. Vejo-me assim retratado como correia de transmissão de toda uma posição política. É mais do que mereço, ou menos do que mereço.
Quanto às três opções que o Nuno põe na mesa, bem, digamos que é preciso escolher uma quarta. Que a cultura é uma mercadoria, isso é uma constatação de facto. Por isso é que as duas primeiras opções não são ou/ou. A cultura é de facto uma mercadoria que obedece como todas as outras mercadorias a regras de formação de preços (não é só a à lei da oferta e da procura? certo, não é, mas isso é verdade para tantos outros produtos). E alguma cultura só está ao alcance dos bolsos de alguns, isso é indesmentível. Mas não é verdade para tantos outros produtos? E é isto aceitável? De maneira nehuma.
O que não se pode é fazer da cultura uma reserva espiritual da sociedade capitalista, um domínio subtraído às regras do mercado. Porque isso só legitimaria essas mesmas regras do mercado nos outros domínios. É o mercado e o capitalismo que estão errados e devem ser rejeitados e combatidos. E não apenas quando aplicados à arte.

A censura de novo

Há pelo menos dois tipos de censura que raramente são referidos: a censura da aparência pluralista e a censura monetária. Na primeira, a censura funciona como um mecanismo do excesso. A proliferação de mensagens, a dificuldade em distrinçá-las e em organizar o universo simbólico a que elas pertencem, faz com todas elas se equivalam. Uma das formas de ajuizar esta equivalência é aquela que encontra nela o pluralismo democrático, a liberdade maior para escolher num mundo em que a única coisa que deve arbitrar a escolha é a opinião individual. A ideia da pluralidade de escolhas é, quanto a nós, falaciosa.
As escolas anarquistas, quer de direita quer de esquerda, pressupõem um indivíduo inicial que escolhe. Não existe tal coisa. A escolha nunca é individual porque é fundamentalmente o resultado das escolhas de todos os outros. Ninguém pode escolher individualmente porque qualquer que seja a escolha tem que sempre ter em conta as possíveis selecções de todos os concorrentes na mesma escolha. Por exemplo, quando leio o Público gostava que a maior parte dos opinion makers fossem outros, mas infelizmente são aqueles. Não posso escolher porque já alguém fez essa escolha por mim. Réplica imediata: então não leias o Público; lê outro jornal. Mas eu gosto do Público, só que não gosto da maioria dos artigos de opinião. Resposta seguinte: então não leias os artigos de opinião; lê apenas as notícias e os reclames. Mas aqueles que escrevem no espaço de opinião ocupam um espaço que é limitado, que é escasso e por conseguinte estão a roubá-lo a outros que lá poderiam escrever e que corresponderiam melhor às minhas potenciais escolhas.
O segundo tipo é a censura monetária. Nas sociedades de mercado esta está sistematicamente a ser exercida. Porque os recursos se obtêm pela capacidade monetária e porque esta é assimétrica e desigual na maior parte dos casos aquilo que surge como uma escolha é simplesmente o resultado de um somatório de recusas. Não há, por conseguinte, nenhuma contradição entre democracia e censura.

Kultur

A resposta do Bruno Dias ao meu post sobre "os livros da minha vida" suscitou-me a seguinte reflexão: ou a esquerda considera legítimo que se pague a cultura porque esta obedece aos mesmos mecanismos de mercado a que obedece o preço do carapau ou do xarroco; ou a esquerda pensa que a cultura é para uma elite, elite essa que por sê-lo pode pagá-la a preços de mercado não tendo por isso que obter qualquer privilégio. As duas posições causam-me um ligeiro desconforto pelo facto de não perceber onde é que se encontra a diferença entre “isto” e o mercado. A primeira enuncia que se há procura ela deva ser paga consoante a utilidade marginal do produto – muito de acordo com os cânones do marginalismo. A segunda diz que a procura é localizada e centrada num grupo e que a sua utilidade marginal resulta de um grupo particular lhe atribuir um determinado valor – bastante em consonância com o marginalismo, mas um tudo-nada mais elitista. E se a cultura fosse simplesmente um direito?

Boys will be Boys

Toda a gente sabe que os processos de saneamento quando mudam cabinetes políticos são comuns. Toda a gente conhece que, numa câmara municipal, quando muda a cor do poder há uma enxurrada que se precipita da cúpula para a base visando limpar os resquícios, empecilhos e elementos mal digeridos do anterior executivo. O PSD fê-lo, eventualmente com mais denodo do que nenhum outro. O CDS-PP, o PCP e até o BE fazem-no. Não percebo o espanto pelo PS reincidir na mesma prática.
Quando se herda a estrutura anterior ela vem cheia de bloqueios, de lealdades indefectíveis e de patrocínios políticos que dificilmente são ajustáveis à nova gestão. Parvos são aqueles que não procedem a um movimento de eleminação, afastamento e despromoção selectivos. A verdade – que o burburinho do populismo democrático tende a encobrir – é que quando não se mexe nestas estruturas a organização tende a ser ingovernável. Isto não causa particular repulsa na iniciativa privada, onde tal processo acontece com a mesma frequência com que se mudam administrações, chefias e departamentos. Chamam-lhe, eufemisticamente, reestruturação.
Por alguma razão que se encontra longe de ser evidente as reestruturações de natureza partidária causam grande borburinho e aflição. Convém antes de mais dizer que tais reestruturações não são políticas, são partidárias. Não há mudanças fundamentais nas políticas, até porque a teia de envolvimentos, contactos e pendências em que uma Câmara se encontra enredada possui uma inércia própria. Por conseguinte, são mudanças estratégicas, certo, mas que respondem a uma estratégia particular: de índole partidária. Nada disto deveria fazer confusão – as oposições não são apenas factores bloqueantes no parlamento. Elas possuem igualmente essa propriedade na prática das organizações públicas, sobretudo quando o anterior enquistamente de lealdades é rompido abruptamente. A crença nos mecanismos meritocráticos num jogo cujas regras decorrem fundamentalmente da competição partidária é uma ingenuidade ou, mais prosaicamente, uma tolice.

E não há quem os censure?


Há um espectro que assola Portugal – o espectro da Censura!

Nos jornais de maior circulação, nas televisões, nas rádios e sobretudo na blogosfera, há um coro de vozes que grita a plenos pulmões “Há Censura!”. Esta insidiosa suspeita ganhou corpo com a denúncia de um militante do PSD depois deste ter sido suspenso das suas funções no ME. Todavia, já se congeminavam funestos pensamentos sobre cabalas censurantes e remanescências fascistas. Até um dos homens mais brilhantes de Portugal veio dizer que no tempo do Salazar se podia dizer tudo e que agora vejam lá coitadinho do funcionário público que contou umas anedotas sobre o primeiro-ministro e a mão pesada e draconiana do aparelho socialista desterrou-o imediatamente (espera-se, no entanto, que para nenhum Tarrafal). Que o tal sage não se tivesse apercebido dos efeitos da censura Salazarista só diz que ele estava do lado certo - do ponto de vista do poder, é claro. Não nos deve espantar, portanto, que se juntem umas tantas vozes para dizer que a censura agora é muito pior do que era no tempo do Salazar. Para eles, eventualmente até era. Ou não existisse uma coincidência, indisfarçável, entre os que se preocupam com a terrível censura socialista e os que celebram o ditador ultramontano.
Ora eu julgava, com toda a modéstia, que um dos atributos da censura era justamente não se poder gritar a plenos pulmões que ela existe. Apesar de toda a evidência em contrário, ou seja, não obstante todas as publicações, vociferações, altercações e gozações alertando para o retorno – e ainda por cima reforçado – da sinistra censura (e reparem como o trocadilho resulta em italiano) eles continuam a sentir-se vítimas de censura. Eu confesso a minha confusão: ou o gajo do lápis azul está catatónico ou andam a gritar que há lobo para se divertirem.
É triste, mas parece que nem a censura funciona como deve ser em Portugal.

Wednesday, May 23, 2007

O Mestre do Aviz (em homenagem ao velho blog de JFV)


Revoltaram-se alguns sectores da blogosfera (por exemplo aqui ) com aquilo que consideram o justo pagamento devido aos convidados para falarem dos livros da sua vida. O raciocínio parece certo e faz sentido que a cultura também seja paga, como aqui é referido. A moda das listas e do arrolamento das obras que marcaram a vida das personalidades públicas, mormente os intelectuais (orgânicos e inorgânicos), tem criado adeptos e fortes pressões para a aceitabilidade dos canhanhos escolhidos. Assim, por exemplo, Sarkozy, que nem sequer é intelectual, teve que colmatar esta lacuna quando apenas contava no seu pedigree literário ter sido admirador de Céline na sua juventude e pouco mais. A sua equipa lá se enredou em citações e, por vezes, obscuros adágios, retirados de uma selecta lista de cabeças pensantes francesas, indispensável a quem se propõe governar os destinos da pátria da liberdade. Que Sarkozy tivesse que acrescentar ao seu parco conhecimento literário novas referências para dar a entender que é possuidor de um conhecimento eclético, só mostra quão manipulada é a imagem de um homem político. Bem entendido, eu considero que aquilo que um homem (ou uma mulher) diz ter lido é absolutamente irrelevante para gostar dele(a) ou não. Embora, diga-se, pode constituir um bom barómetro para avaliar as suas filiações, não só políticas como morais.

Até parece ser do mais elementar bom-senso convidar pessoas, de reconhecido mérito literário, para falarem dos livros da sua vida – isto, em abstracto. Todavia, olhando para a lista proposta por JFV não podemos deixar de ser surpreendidos pelo enviesamento político que ela denota. O organisador, como é evidente, marcou o seu cunho – político – nas escolhas que fez. Se fosse uma festa privade e FJV quisesse convidá-los para uma tertúlia em sua casa, não haveria razões que objectassem às suâs escolhas. Mas a tertúlia que JVF preparou é paga com o dinheiro da Câmara, ou seja, do contribuinte. Já é suficientemente mau pagar a pessoas para virem falar dos livros da sua vida – um circo narcisista onde pouco se aprende e que tem unicamente por função promover os tribunos. Mas fazer a lista consoante afinidades políticas é duplamente grave. Por um lado, porque mostra que nem numa iniciativa aparentemente anódina e neutra as motivações políticas se encontram arredadas; motivações essas que, por mais indulgentes que possamos ser com os gostos do organisador, têm o condão de incluir quem legitimamente pode ser considerado um litterato. Pois nem todos possuem igual valor na balança das autobiografias literárias. Quando a escolha obedece a critérios políticos está a sacrificar-se o (pouco) interesse literário pelos compadrios políticos. Mas para além dessa escorregadela para as afinidades electivas – a que poucos se podem eximir, diga-se a bem da verdade – impressiona ver a serenidade com que alguns dos participantes aceitam a possibilidade de serem pagos para falar dos livros da sua vida. Dois deles, que se saiba, recusaram o pagamento. Outros, como PP, vieram depois de anulada a iniciativa, em virtude de contingências camarárias, desmentir que alguma vez tivessem aceitado dinheiro (embora nos pareça especialmente suspeito que só o fizessem após o cancelamento). Resumindo e concluindo: no Portugal actual, numa câmara em estado de calamidade financeira, com um deficit ingovernável e insanável, há quem ache normal pagar-se a uns tantos figurões para falarem dos livros da sua vida. E a julgar pelas esparsas aparições da selecção feita por PP o escândalo ainda é maior. Faz todo o sentido pagar para ouvirmos PP dizer que leu a “Flecha” e o “Coração” e sobretudo o “Livrinho Vermelho” de Mao Tsedung.
Não admira que as finanças da Câmara de Lisboa estejam nas lonas.

The Devil wears Prada


O Papa foi ao Brasil. O acontecimento não mereceu grande atenção dos media portugueses, e isso não é propriamente de estranhar. Sabemos pouco sobre o Brasil; ou melhor, sabemos aquilo que nos é dado a conhecer pelas telenovelas e artistas de ocasião que vêm para cá passear a sua actuação histriónica. Mas o Papa foi ao Brasil, e esse tem por certa a importância do país que possui a maior população de católicos do mundo. O Papa foi evangelizar, embora sempre diga o contrário e reitere que a igreja católica não está no negócio do proselitismo. Contudo, olhando para os temas candentes na agenda do Papa contam-se os famigerados aborto, eutanásia, recusa do perservativo, afastamento da política e singularidade da religião católica. Que não se faça violência sobre a mensagem papal ao reduzi-la assim a tópicos desgarrados. Esta afigura-se no entanto, de tão repetida e organisada, a um repertório. O Papa possui, por conseguinte, um repertório constituído pelas grandes questões do catolicismo actual e foi ao Brasil reforçá-lo.
Mas o Brasil não é só o país com mais católicos da América Latina. É também o país que alberga um terço da população contaminada com SIDA dessa mesma América Latina.
Em 1998, segundo a UNAIDS, apenas 4% da população masculina afirmava usar preservativo com parceiros de ocasião. Em 2005 esse número teve um aumento de mais de 50% seja qual for a idade. Diz também a UNAIDS que o esforço de contenção da epidemia tem sido bem sucedido graças às campanhas para o uso do perservativo. O Papa vai ao Brasil em 2007 e qual é a mensagem que leva? Não usem o preservativo!
Quando é que será que a (organização) igreja católica deixa de pôr os interesses da religião à frente dos interesses das pessoas?

Tuesday, May 22, 2007

Prémio Du Hoc Dicis

Afirma Pereira!


PP no seu último artigo no Público brinda-nos com uma pérola da inconsistência lógica e da sabedoria rasteira. A abertura é solene chegando quase a soar às primeiras vozes do coro dos prisioneiros no Fidelio. Vale a pena reproduzir: Nós pensamos muitas vezes apenas nos partidos, mas, em democracia, mais importante do que os partidos é a dualidade poder-oposição ou, melhor ainda, a existência ou não de um tónus crítico do debate público que não seja afectado pela presença obsessiva do poder. Liberdade não só no papel, mas também nas cabeças. E essa não só falta, como está a ficar cada mais rarefeita. Belo, corajoso, heróico. Este panegírico da liberdade e da democracia vem a propósito do apoio explícito de Saldanha Sanches e Júdice à candidatura do PS à Câmara de Lisboa. Por isso, ambos os militantes do PSD são acusados pelo articulista de caucionarem o “poder”. Até podia ter algum interesse esta tergiversação sobre o “poder” e os seus malefícios, caso este não fosse simplesmente assimilado ao fantasma do poder socialista. Mas o problema maior, e aqui chegamos à incoerência lógica e à sabedoria rasteira tão ao gosto de Pereira, é que PP acusa Sanches e Júdice de fazer justamente aquilo que ele elogia no princípio; isto é, de pensarem pela sua própria cabeça para além, e ao arrepio, das filiações partidárias. A acusação de PP pode resumir-se ao seguinte responso: os “meninos” podem pensar pelas suas cabeças desde que não façam nada que prejudique a estratégia partidária, neste caso do PSD. É que, se a oposição que deve ser feita é ao que “é” é fácil constatar que esse, em relação à Câmara de Lisboa, só pode “ser” o PSD. Foi o PSD que esteve no poder durante mais de dez anos! Foi o PSD que mudou de executivo camarário por causa de estratégias políticas individuais do seu presidente. E foi o PSD que, enquanto gestor do município, enveredou por um processo de recrutamento inaudito de militantes do seu próprio partido, onde se conta o executivo camarário que mais acessores tinha de todos os tempos. Processo esse que começou com Santana Lopes e atingiu o apogeu no reinado de Carmona. A este propósito, convinha antes de mais saber até onde se estendem os tentáculos do polvo. Será Santana Lopes absolutamente alheio às manigâncias do seu sucessor? Será que a corrupção, as negociatas, o esbulhar da coisa pública em proveito próprio só começaram com Carmona? E se, como afirma Pereira, o PS estava já envolvido com a Bragaparques não será a conclusão necessária de que a oposição, a existir, devia ser feita aos dois executivos camarários: ao do PSD e ao do PS? Para mais, se António Costa se deve demarcar deste “passado”, por maioria de razão, Sanchez e Júdice devem demarcar-se do outro “passado”, o do PSD e da sua gestão camarária desastrosa. O que está aqui em julgamento, pese embora a retórica pereiresca, é a actuação do PSD na Câmara – esse é o único passado a que os eleitores devem ser particularmente sensíveis, sobretudo porque é ele que se encontra de jure e de facto penhorado pelas instituições da república.
Parece portanto que estamos perante um estranho caso de dislexia política. Onde PP diz “poder PS” deve ler-se “poder PSD”; onde PP vê tibieza por parte dos dois acusados, deve ver-se clareza segundo os princípios da liberdade de opinião e não dos enfileiramentos partidários.

africanismo (variações sobre um tema de Edward Said)

São cada vez mais os filmes de Hollywood que se passam em África. O tom, esse, varia pouco. O colonialismo de outros tempos, com os negros a serem retratados de forma ostensivamente subalterna, foi substutuído por essa forma insidiosa de neo-colonialismo que é o humanitarismo piedoso. O retrato estereotipado e menorizante dos africanos, esse é que continua, se bem que com outros trajos, mais aceitáveis ao palato dos novos sobreranos humanitários. Os negros já não são só criados. Agora ou são corruptos e sanguinários (os governantes e as suas tropas) ou são as vítimas inocentes e indefesas desses governos e das maquinações maquiavélicas que eles tecem com governos e multinacionais. África divide-se, nesta visão, entre genicidas e vítimas indefesas. Felizmente que há sempre um Leonardo DiCaprio ou um Ralph Fiennes para os ajudar.
É este o tipo de sensibilidade que informa hoje as notícias que nos vão sendo dadas sobre o conflito do Darfur. Como em tantas notícias sobre àfrica, as questões são totalmente esvaziadas de política e reduzidas de um lado a agressores sem razão, movidos pelo ódio racial (e ainda por cima muçulmanos, how convenient) e do outro vítimas indefesas. Contra este retrato redutor e tintado de neo-colonialismo e neo-conservadorismo insurje-se o cientista político Mahmood Mamdani neste artigo da London Review of Books. Leiam-no.

sobe e desce

Os leitores mais atentos do Público terão notado que o jornal se assume cada vez mais como o porta-voz de uma certa tendência de direita, que é a do seu director, e se foi tornando cada vez mais a do jornal. E isso vê-se não nos artigos de opinião, mas naquelas peças em que é suposto o jornal registar, relatar, noticiar, e não opinar.
Um dos barómetros ideológicos mais interessantes é o das setinhas para cima e para baixo na última página do jornal. Supostamente serve para avaliar performances e não para criticar a posição ideológica do avaliado. Mas não é assim. Dois exemplos. Aquando da OPA, Fernando Rosas terá reivindicado uma tomada de posição do governo no sentido de impedir a operação e evitar os milhares de despedimentos que se anunciavam. Seta para baixo no público. E porquê? Porque se queria opor ao livre funcionamento do mercado e impor a decisão do estado sobre a dos accionistas. Numa palavra, por não achar que devem ser os accionistas a decidir da vida de milhares de pessoas. O segundo exemplo é ainda mais enigmático. Aquando da eleição de Mário Nogueira na Fenprof, este levava uma seta para baixo. Mas o estranho era o tom neutral do texto que acompanhava a nota negativa. Uma breve descrição de Nogueira em que era apresentado como militante comunista. E a anunciar que tinha prometido combater a política do governo e defender a escola pública.