Saturday, August 04, 2007

Crak pot


Onde acaba a delação e começa a justiça? E como se identifica a segunda sem correr o risco de a confundir com o justiceirismo?
A divisão entre ambiente de trabalho e a esfera privada não é de todo operacional. A uma porque, no cômputo dos dias, passamos mais tempo no ambiente de trabalho do que na tal denominada esfera privada. A outra, e consequentemente, as relações que alimentamos (ou evitamos) no ambiente de trabalho ganham, pela sua recorrência, um carácter de proximidade que mesmo os “amigos de copo e de cruz” não têm. Vivemos tempos conturbados e escorregadios – pelo menos a mim parecem-me conturbados e sobretudo escorregadios, os últimos dias por exemplo. Há quem queira instituir uma polícia da mente, muito mais perigosa do que a adesão ao partido ou à nação. Trata-se da adesão à organização. Que a organização passa por ser o ganha-pão, rima e é verdade. Que por esse facto controle, ou pretenda controlar, o espírito, é outra questão.
Quando se controla o espírito, as pequenas e múltiplas injustiças que são de facto cometidas passam incólumes. Quando se controla o que se pensa, os afectos e as emoções, as graves e lancinantes mentiras são obscurecidas. Como num teatro de sombras, somos levados a crer que as silhuetas são os verdadeiros corpos. Podemos até fascinar-nos com uma tal predominância de luz; com essa capacidade, dir-se-ia divina, que a luz possui em determinar contornos, em esculpir formas e em deixar-nos advinhar o resto. Mas o resto é o corpo, e esse não se limita nunca a passar apenas pelos espaços vazios entre a mobília. Ah, não: tem convulsões, pulsões, regressões, agressões (e há-de ter colhões para quem disso se mostrar merecedor).
A organização percebeu perfeitamente a continuidade entre estes dois elementos. Não substimes o que se encontra encerrado na tua caixa negra. Por isso, para além do corpo, do qual se atarefara a debelar a sua incipiente rebeldia e os resquícios de um primitivismo não-postural, lançou-se ao espírito. Na sua indiferença arrazadora, pensou que, domando o corpo, o espírito vergar-se-ia, por não ser mais do que o seu interface (palavra que poderia ser utilmente substituída por conector) [bem sei que até devia ser o contrário, o corpo seria o interface do espírito, o interface com o mundo e etc, mas isso é o dualismo, e nós aqui, nesta organização, rejeitamos toda e qualquer forma de dualismo que se intrometa. Ora, não havendo dualismo é o corpo quem mais ordena e o espírito vê-se relegado para o papel de tradutor da sua vontade]. O espírito fala pela palavra – no princípio era o verbo no fim a cartilha maternal. De qualquer das formas quando quer dizer, diz, com palavras. Aí entra a polícia da palavra. Estaria eu a exagerar se alvitrasse que a organização se tornou no grande polícia da palavra? Já esquadrinhava o corpo – esse laço garboso da gravata que tanto se assemelha à corda do enforcado – e agora ainda o faz mais eficientemente com a palavra. Por exemplo, rumores e quadrilhice são considerados abjecções pela nova organização, onde se enquadra o tradicional, e que foda que eu mandava naquela gaja, ou ainda, filho-da-puta anda a comê-la. A organização pode viver com isso, desde que não saia da casa de banho, quer dizer desde que não seja regurgitado para fora daquele jato de água espiralado que é pressurosamente consumido pela canalização. Mas não pode confrontar-se com a dura realidade da iniquidade humana. Porque na nova organização só se arrumam anjos, ou então santos que renegaram o seu passado de pecados. Como bem sabiam os padres da inquisição, os santos são sempre demónios petrificados, em pânico. Não admira por conseguinte que a polícia da palavra nos mantenha em estado cataléptico – entre o trauma e a paralização do medo. Vigia o teu corpo, vigia os teus medos, vigia as tuas palavras, encontrava-se à entrada da organização numa lápide de metal fulgente – logo seguido de qualquer coisa sobre a esperança, mas essa já não consegui divisar.

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