Wednesday, May 31, 2006

Indirectamente


Era um tipo pouco directo. Não era um tipo “indirecto” como se diz do discurso. Não dizia coisas como “disse que ele aparecia a qualquer instante” referindo-se este “ele” a si próprio, tentando diferir-se, como os reis, na pessoa do verbo.
Ser um tipo pouco directo era uma acusação à qual só por leviandade ou por abuso de auto-estima se poderia furtar. A outras acusações já recusava dar o seu assentimento e chegava a ter por hábito diferi-las no tempo. Por exemplo, quando o acusaram de ser de uma contumácia pouco edificante, dizendo-lhe “você é de uma contumácia pouco edificante”, ele respondeu “por ora não creio, mas quando for mais velho talvez venha a ser”; ou quando lhe sugeriram “você tem que perder esse mau hábito de insinuar que as pessoas que o advertem sobre os seus maus hábitos procuram, no fundo, sabotar a sua consciência monadológica”, ele respondeu “esse hábito já eu tive, mas felizmente livrei-me dele”.
Da acusação de ser pouco directo é que ele não se livrava. Se lhe perguntavam “essa é a sua mão direita”, não hesitava em responder “posso afirmar que esta é a minha mão direita, porque tenho a certeza de que esta é a minha mão direita”; ou se lhe perguntavam “consegue definir um limite para a palavra”, logo respondia “dificilmente conseguirei definir um limite para a palavra porque esta pede sempre um predicado”. E em lhe redarguindo, desafiando-o, “e se esta for já um predicado”, ele repontava “será também uma substância e enquanto assim for carece de predicado”.



Monday, May 22, 2006

O qué candas a ler?




O qué cando a ler?

Para quem se interessa por questões ligadas com "raça" e etnia saiu o ano passado (mas só agora tive oportunidade de o ler) "Not Just Black and White". Tinha que vir dos States: novas abordagens, sínteses teóricas inovadoras, trabalho empírico a questionar conclusões anteriores, escrito pela nata da academia que trabalha neste campo. Bem diferente do bafio da teoria europeia, que se repete até a exaustão e que já há alguns anos que não oferece nada de relevante. Compilação de artigos que traz aragem nova e mais respirável.

Mergulho no "A Brief History of Neoliberalism" do impar David Harvey que mais uma vez consegue a proeza de escalpelizar o mundo actual sem que fiquem muitas questões por levantar. Se alguém tinha dúvidas que as grandes narrativas estavam bem vivas e recomendavam-se é ler este livro. Neoliberalismo como resposta às actuais dinâmicas do mercado? Não -diz Harvey-, o neoliberalismo levou tempo a construir e foi preciso minar muitas das conquistas sociais anteriores para que este se impusesse como ideologia e prática dominante. Não aconteceu por acaso e não é uma resposta às novas exigências da competitividade. A resposta é bem mais singela: o neoliberalismo é somente uma forma de recuperar o poder perdido (muito parcialmente) das classes dominantes. Se alguém tinha dúvidas é ler este livro. Muito, muito bom.

Espreitadela no mais recente Fukuyama. Para literatura de cordel não está mal; e se nos quisermos afiançar de que os neocons são uns hipócritas sinistros e manipuladores é espreitar (a saltar) este livro. Parece que o Fukuyama teve um rebate de consciência e zangou-se com a linha dura dos neocons. Parece que foi surpreendido pela política externa americana em relação ao Iraque. Há cada um mais distraído! Que raio de altura para se converter à crítica do neoconservadorismo. Mas quer isto dizer que Fukuyama deixou de ser um conservador? Nãooooo. O teórico do fim da história só está desiludido porque não há uma verdadeira estabilização democrático-liberal no Iraque como o seu mais famoso livro tinha prometido como panaceia universal. Isso, e claro, o facto de estarem a morrer soldados americanos no Iraque, o que estraga qualquer tentativa de convencer o eleitorado que aquilo ainda faz sentido.
A tresler em simultâneo com o David Harvey para se ganhar consciência de quão repugnantes são os neocons.

Juan Rámon Jimenez - Antologia poética.
O problema é meu. Desconhecia-o para além de alguns poemas ocasionais lidos em antologias de poesia espanhola. Lírico ainda assim, sorvendo melancolias e flores silvestres, Jimenez descrevendo o amor porque o viveu e quem mais se aproxime dele talvez um Neruda que com certeza aí colheu inspiração. E a Espanha aqui tão perto.

Finalmente, em tempos de obsessão Da Vinciana, entre anagramas e pentagramas, esferas armilares e sementes divinas, talvez fosse avisado prestar atenção a um já antigo ensaio de Erich Fromm que dá pelo nome de "O Dogma de Cristo". Para aprender por que razão o Código Da Vinci não é aquilo que parece ser.

Saturday, May 20, 2006

O Desistente

Sabia-lhe a fel esta permanência chorada. Sabia-lhe a pouco, a ansiedade deslavada que carregava consigo para onde quer que fosse. Era pequeno; sentia-se pequeno e pouco enobrecido. Tinha o libelo do esquecimento por lema e remetia, com a sua cara fechada e sorriso pálido, para as catacumbas da alma. Havia quem o associasse àqueles criminosos que só se comprazem no mal – um mal abstracto que lhe construísse as raízes. Todavia, pobre homem que se lavara em prantos pela solidão que se lhe cravara na carne, era apenas o medo que o desdizia, que o fazia cair nas mais patéticas e apologéticas contradições. Como ele dizia, buscando as palavras nos recantos da boca e soprando-as como num ataque de tosse “ninguém consegue compreender como a solidão nos pode imunizar contra a felicidade”; e assim era: ou porque gostasse de se desprender dos ritmos ardentes ou porque andava já pouco preocupado com o futuro, a palavra já não se crispava na voz e em surdina ia repetindo para quem nunca o ouviria que a vida tinha muitas escolhas, mas que ele só fizera as más. Bafejado pela sorte, não se poderia dizer que não tinha sido. A sorte fizera-lhe por diversas vezes visitas de cortesia. Porém, ambicioso de uma maneira que dir-se-ia desencontrada tinha-lhe jogado dois pontapés e posto-a à porta à espera de melhores dias. Este acto, que se confundia para alguns distraídos com uma penitência, valera-lhe o epíteto de perdido, ou talvez, nas mentes mais atentas, de malsão. A doença perseguia-o, portanto. No outro dia entrou na padaria e disse "De vocês apenas aguardo a inconsistência do verbo". Saiu com três pães e um rissol.

Thursday, May 18, 2006

Buckowsky was also there, of course


Por vezes durante a noite quando ela se encontrava profundamente adormecida aplicava-lhe uma cotovelada nas costas, bem medida entre a quinta e a sétima vértebra. Outras vezes empurrava-a contra a parede e ela estilhaçava-se, como um cristal não polido, rangendo os dentes e largando um pequeno, mas incomodativo, guincho. No outro dia puxou-lhe um pé quando subiam as escadas, ele atrás, sempre à cautela, ela à frente confiada que mostrava o caminho (Pois – a guia, a alumiadora de caminhos, a candeia que vai à frente alumia duas vezes!) desequilibrou-se e estatelou-se no chão, de borco, com o queixo cravado na aresta do degrau. Mais tarde deixou cair-lhe o chuveiro num pé o que lhe provocou um esgar de dor prolongado que se sumiu finalmente quando um arrepio provocado pela água momentaneamente gelada se interpôs entre a sua consciência da dor e a sua posição na banheira. Ontem ela exclamou, interpelando-o directamente e colocando-o naquele canto que os boxeurs tentam a todo o custo evitar, O Sr. é de uma violência insuportável. Violento eu?, interrogou-a. Violenta é a Sr.a que faz um broche como se’tivesse a devorar uma talhada de melancia, ripostou cáustico. Ficaram amigos. E ainda no outro dia encontrou o Juvenal que lhe perguntou: então, e flutuas? Como merda à tona d’água, respondeu. Isso é do Buckowsky! Sim, o Buckowsky também lá estava.


Wednesday, May 17, 2006

Populus malefacturum


A cabeça das pessoas tem caminhos que tal como os desígnios do senhor são insondáveis. Perguntemos a alguém suficientemente ilustrado e conhecedor do que se vai passando no mundo qual é a sua opinião sobre os novos regimes da América Latina. A resposta não tardará e possui sempre o mesmo conteúdo: são regimes populistas. Se quisermos aprofundar as razões pelas quais o rótulo surge tão extemporânea quanto automaticamente (o que não implica uma investigação sobre as razões da sua eficácia, coisa que é trabalho de filósofos e retóricos do linguistic turn) comecemos por perguntar, armados de cândida inocência, por que razão são estes regimes populistas? A resposta a esta segunda pergunta ainda se fará menos esperar do que no primeiro caso: porque tomam medidas populistas. A armadilha da circularidade do argumento está montada e torna-se, como num passe de ilusionismo, inescapável. As medidas, claro está, são populistas porque são tomadas por regimes populistas. Portanto, o populismo das medidas não é tanto identificado pelos seus efeitos ou motivações como pelo lugar que foi codificado a priori para estes regimes. Assim, a medida implementada pelo governo de Lula da Silva no sentido de facultar uma “merenda” gratuita a todos os alunos do primeiro ciclo educacional é populista, mesmo que pretenda contrariar os altos níveis de subnutrição das crianças em algumas regiões do Brasil. Apesar de parecer um perfeito contrassenso que se considere populista uma medida com uma tal importância, a designação subsiste contra todo o apelo da coerência e da bondade moral. Porquê? Porque o governo é populista.

Este lugar preconcebido do populismo espelha uma imagem distorcida da acção política. Por exemplo, reduzir consideravelmente os salários dos membros do governo como fez Morales na Bolívia é populismo, mas constituir uma task force para elaborar uma imagem mais consistentemente anti-imigração de acordo com os resultados de sondagens recentes como fez Sarkozy em França, é estratégia política. Distribuir terras por agricultores miseráveis como fez Chavez na Venezuela, é populismo; dizer que a culpa dos atentados terroristas se deve à falta de integração destes na Europa como fez recentemente o governo dos Estados Unidos, é defender os interesses no exterior. Nacionalizar empresas petrolíferas para controlar o preço do petróleo e beneficiar internamente dos avultadíssimos lucros da exploração do mesmo, é populismo; destruir um país para ganhar mais quota no controlo da venda do barril e fazer os preços subir até a um máximo, é estratégia económica. Controlar policialmente manifestações anti-governamentais (coisa que eu não concordo, mas só até determinado ponto) é populismo e tirania; implementar o patriotic act que faz de qualquer cidadão americano simultaneamente um potencial suspeito de actividades subversivas e um delator ou mandar a polícia carregar e disparar contra manifestantes anti-globalização, como na Itália de Berlusconi, é defender a segurança interna. Aceitemos, a bem do argumento, que para cada par de intervenções aqui considerado se encontram facilmente elementos populistas. Mas enquanto um dá o outro sonega; enquanto um distribui o outro reprime e destrói; enquanto um se mostra o outro dissimula. E isso faz toda a diferença.

Tuesday, May 16, 2006

WCR - World Cynicism Report


O Relatório Mundial da Competitividade traz más notícias para Portugal. O nosso país, num ranking composto por 61 países, ocupa um modesto 43 lugar. Ultrapassados há muito pela Estónia, pela República Checa, pela Hungria, só para dar alguns exemplos de recentes desenvolvimentos notáveis, não nos resta mais do que rivalizar com a Jordânia, Polónia e Croácia.

As notícias para o mundo não são melhores. Apesar dos esforços da Índia e da China parece que nem em 2050 conseguem destronar os Estados Unidos do lugar de primeira potência económica a nível global. Outros aspectos, no entanto, surgem como dignos de atenção e mostram como a economia é uma ciência tão exacta quanto a sabedoria de um canalizador.
Lembram-se que ao dobrarmos os anos 90 se profetizava um mundo de tecnologias de ponta, de alto valor acrescentado e nichos de especialização. Alguns malucos e outros mais assisados prognosticaram terceiras vagas, terceiras vias, auto-estradas da informação e outros delírios cibernéticos como fazendo parte da inexorável revolução económica. Afinal o que nos diz o relatório da competitividade para os próximos 50 anos? Diz-nos que os factores promotores de crescimento das economias que já se encontram em ritmo acelerado de desenvolvimento (China, Índia, Brasil) são, nem mais nem menos, do que as matérias primas. É o alumínio, o petróleo, o aço, o amianto e outros que tais que pelos vistos fazem crescer as economias do novo século; não os hackers, as microsoftes ou a experimentação genética. O que nos leva à seguinte conclusão: a mão-de-obra não especializada não se tornou assim tão despicienda como se apregoava há 15 anos atrás; continuamos com grandes domínios de trabalho intensivo que surgem como o travejamento das grandes economias. Aliás, um dos objectivos do relatório é justamente dar aos empresários um guia onde possam encontrar mão-de-obra barata e desprotegida. Já para não falar da estranhíssima noção de governo que lags behind the economy, entendo-se por esta expressão que o governo é menos performativo do que a sua própria economia. Nesta situação surgem em destaque países como a Venezuela e Brasil – países que ultimamente têm tentado introduzir robustas reformas sociais para contrariar a situação de miséria generalizada em que uma crescente fatia da população se encontrava. Apesar de as suas economias estarem em franco crescimento – caso da Venezuela com 9.3% de crescimento real do PIB – ainda assim aparecem nos últimos lugares do ranking da competitividade. É verdade que a competitividade é um índice compósito que entra em linha de conta com dezenas de factores de natureza diversa. Todavia, fica a suspeita que a performance governativa possui um peso muito pouco negligenciável nos scores do índice. Assim talvez se explique como é que países como a Estónia e a Venezuela cuja diferença no crescimento do PIB não ultrapassa os 0,5% apareçam em lugares tão díspares como 20 para o primeiro e 61 para o segundo. É que a Estónia oferece um paraíso em termos de inexistência de impostos e um governo autoritário que estrangula à nascença qualquer protesto.
Finalmente, nada se faz sem trabalho. E a comprová-lo surge a admoestação de que na Índia 50 horas por semana é um part-time!


advertência: quanto à situação de Portugal, é preciso ver que este texto se encontra completamente enviesado porque atrás de nós surgem países como a Venezuela, o Brasil ou o México.

Monday, May 15, 2006

McCarthy ou Mercado?

Boa Noite e Boa Sorte, apesar da boa recepção crítica (moderadamente boa) não recolheu grandes entusiasmos. Compreende-se, é um filme que, em mais do que um nível, foge ao reconhecimento. Antes de mais pela estilização das imagens, a branco e preto, numa composição cuidadíssima a fazer lembrar o imaginário pictural (mais do que cinematográfico) da América dos fifities.
Mas é também um filme que escapa aos lugares-comuns do “filme de lista negra”. Não vemos nenhuma das personagens a responder perante a comissão, e o único ponto da narrativa em que a personagem de George Clooney, Fred Friendly, é directamente pressionado por dois oficiais do exército, não resulta na proibição da peça jornalística em causa. O patrão da cadeia televisiva é inequivocamente um tipo porreiro, que lhes apara os golpes quando decidem afrontar directamente o senador McCarthy, e mesmo a personagem do pivot, acusado de simpatias comunistas (que acaba por se suicidar) nunca vê o seu emprego em causa.
O curioso é que no fim Ed Murrow e Fred Friendly ficam de facto sem o seu programa. E porquê? Porque custava muito mais caro do que qualquer talk-show e rendia muito menos dinheiro. Por isso o discurso de Ed Murrow com que o filme abre e se encerra não se dirige a McCarthy, à comissão, ou sequer ao perigo que um Estado autoritário pode representar para a liberdade de informação, mas sim ao desaparecimento da informação jornalística crítica com o desenvolvimento do capitalismo no pós-guerra.

Sunday, May 14, 2006


O savanorola (Bruno) tem toda a razão. Esta teoria é insustentável! Nem a Sandra tem mamas que dêem para o Newton, nem queria ser Maria Magdalena. Pelo contrário: ela não queria era ser Maria Magdalena. Seja como for, resta a rapariga dos cabelos ruivos a quem Deus/Cristo segura pelo pulso no quadro de Bosch. A ciência é feita de contratempos.
Jesus, Maria e a puta



Quando a Sabrina apareceu com as suas tetas a desafiar a gravidade e o seu miado de gata com cio a dizer que queria ser Maria Madalena, todos –julgo- suspeitámos de imediato que seria a puta. Se Sabrina aparecesse novamente a guinchar que queria ser a Maria Madalena, as suas tetas transbordantes só poderiam ser reconhecidas como um objecto estranho, em conflito irremediável com o zeitgeist. Perguntar-nos-íamos: mas porque razão tem a discípula de Jesus, a sua preferida, a primeira a quem foi dado o privilégio epifânico de lhe falar post mortem, umas tetas que desafiam a teoria gravitacional assim como veio ao mundo através de uma maçã que caiu na cabeça de Newton enquanto este ferrava o galho? No Alentejo teria sido debaixo de um chaparro ou de uma oliveira onde a única coisa que de lá cai é a azeitona e portanto as tetas da Sabrina nunca poderiam entrar aqui como referência, nem sequer metafórica. Que as tetas da Sabrina invocassem pecado carnal e que este esteja indissociavelmente ligado a uma maçã, que não a de Newton, é coisa que para nós, jovens educados no Génesis e nas delícias do paraíso, nos surge como imediata. Mas, fazendo um esforço de ubiquidade cósmica é igualmente difícil deixar escapar a ligação quase que esotérica existente entre as mamas da Sabrina, que desafiavam a gravidade, o pecado, e a maçã de Newton. E se, a esta intricada teia de conexões simbólicas, acrescentarmos que Newton era um apaixonado pelo esoterismo e filiado nesse movimento subterrâneo denominado de os rosacrucianos, então entre a maçã do pecado, a teoria gravitacional, a Madalena e as mamas da Sabrina que queria ser Maria, só pode existir um contínuo transhistórico apenas acessível pela leitura aturada dos evangelhos apócrifos. Daí que, voltando ao tema de entrada deste texto que mais não procura do que ser um breve –enquanto ilustrado- contributo para a descodificação da verdade sobre Jesus, se a dotada cantora quisesse invocar novamente o tema, teria que estar vestida a preceito ou então cantar no seu chilreado que na verdade queria ser Maria de Bethânia - a pecadora- e não Madalena – a discípula.


Demorámos algum tempo a descobrir que o jovem de cabelos ruivos sentado ao lado direito de Jesus (João) não era exactamente representativo do estilo amaricado dos apóstolos, que tinham descoberto uma nova solução para o cabelo quando caminhavam com o mestre por cima das águas do mar morto (falta de sal, diria mais tarde Judas enquanto cochichava com o Sr.), mas sim uma jovem de rubros cabelos e nacarada pele que escondia o seu jardim das delícias por debaixo de farrapos galileicos. Não era preciso isto tudo: se repararmos bem, Bosch já tinha tido a mesma intuição. No seu jardim das delícias, quem se senta ao lado de um cristo bonómico e de brancura santificada é uma jovem de ruivos cabelos com umas mamocas despontantes e redondinhas que olha com ar virginal os estranhos animais que por lá passeavam. Mas há mais: se atentarmos na última ceia de Da Vinci, João, o apóstolo que parece a menina Eva que se encontra com Jesus no Jardim das delícias, está estranhamente reclinado sobre Judas, o traidor. Sabemos que Jesus diz que alguém o está para trair. Não é difícil verificar que Jesus se refere a Judas, apercebendo-se entretanto que ele está a empernar com João/Maria (daí se explicar o hermafroditismo da horrível aposição de João a Maria nas famílias bem) e que do outro lado Tomé vocifera –olha que esse gajo t’anda a pôr os cornos! E Jesus, que era ladino e desconcertante, diz a Judas: tomai este é o meu corpo! (Maria); tomai este é o meu sangue! (Maria menstruada). Já no Génesis nos é oferecida uma história de cornos. É claro que a Eva come a maçã enquanto o Adão se encontra ferrado assim como Newton estava a partir tijolo quando leva com a maçã e descobre a gravidade que mais tarde seria desafiada pelas mamas da Sabrina. É claro que a Eva que está ao lado de Jesus no quadro de Bosch não é mais do que a Maria que se encontra a empernar com Judas na última ceia; os cabelos ruivos não mentem. Donde, seja também aceitável que Jesus tenha dito que iria ser traído por Judas por causa de Maria/Eva/João e que no evangelho apócrifo do segundo se refira que foi o próprio Jesus que pediu a Judas que o traísse; não vem é referido que era com a Maria/Eva/João que ele o devia trair. E este é sem dúvida o supremo sacrifício.
Em resumo andámos estes séculos todos a inventar espiritualidade onde apenas se escondia uma história de dor de corno.

Epílogo: nos anos 70 assistimos à loucura pelos extraterrestres: as pirâmides eram criações de seres alienígenas e a sabedoria das tribos do Tibete possuía qualquer coisa que só poderia ter vindo de plutão, e por aí afora. Actualmente, é a vida dos apóstolos que nos consome os dias. Não deixa de ser curioso que com tanto livro sobre evangelhos apócrifos que os próprios não tenham sido ainda publicados e não estejam acessíveis ao público. Eu por mim gostava de os ler, embora fique triste por saber que a primeira que viu Jesus não tivesse sido a puta mas sim a discípula.

Friday, May 12, 2006

A MANCHA DE TEXTO

Numa das últimas entrevistas de Ana Sousa Dias que tive a ocasião de ver, o escritor Rodrigo Guedes de Carvalho, colocado perante a premente questão de se saber qual o meio que utilizava para escrever afirmou peremptoriamente que usava o computador. ASD insistindo ainda nestes profundos mergulhos nos arcanos da oficina da escrita perguntou-lhe então porque usava ele o computador. O escritor e jornalista RGC não hesitou e respondeu: por causa da mancha de texto. A outra e mais evidente justificação teria sido: por causa do corrector automático. Mas a resposta de RGC não é tanto elucidativa por aquilo que revela, mas antes por aquilo que oculta. É que, aparentemente, a mancha de texto tornou-se uma preocupação legítima para um escritor. Dificilmente imaginamos Dostoievski, Flaubert ou Proust a preocuparem-se com a mancha de texto (embora este último gostaria da ideia de que todo o texto se pudesse tornar mancha). Todavia, grande parte dos media actuais assim como os veículos da palavra escrita (como sejam os livros) vivem obcecados pela mancha de texto. Nos jornais a mancha de texto tornou-se o santo e a senha da comunicação, nas televisões a mancha de texto substituiu o próprio texto (a imagem ocupa dictatorialmente o lugar do texto) e até nos blogues a mancha de texto constitui superlativa preocupação dado que deve este último ser apresentado no espaço que nos permita assimilá-lo imediatamente – ou seja segundo o formato do ecran.
A importância da mancha de texto prende-se com a possibilidade de assimilar uma mensagem escrita enquanto imagem; ou seja, a composição do texto, o seu formato, surge como portador do principal impacto da mensagem. Em tempos, a isto se deu o nome de formismo e esteve em voga em algumas correntes de poesia experimental. Significa que o conteúdo do texto perde a sua primazia deslocando-se esta para o formato do mesmo. A mancha de texto indicia, portanto, uma redução.
Enganados estavam os pós-modernos que anunciavam excitados um mundo de fragmentação e de ilimitadas possibilidades combinatórias. Com efeito, o mundo no qual nos encontramos não consegue mais encobrir a sua maior falácia – em toda a sua diversidade ele dirige-se infatigavelmente para a mais implosiva redução. Assim, os filmes imitam telediscos que por sua vez imitam anúncios que por sua vez imitam notícias – e vice versa – que por sua vez imitam emails que por sua vez imitam mensagens publicitárias. O mundo da redução a tudo e a todos limita. O texto é uma das últimas vítimas, mas que não resistirá por muito mais tempo. A escrita será engolida por esta vertigem da similitude estrutural do "meio". Machluan disse em tempos “o meio é a mensagem”, esqueceu-se de acrescentar que era “sempre o mesmo meio” que faz a mensagem. Tudo parecerá repetição.
O mais triste é que, com tanta preocupação com a mancha de texto, cada vez se produzem mais textos que são uma nódoa.

Tuesday, May 09, 2006


EUROPA

Hoje celebra-se o dia da Europa. Escuso-me às retrospectivas históricas ou políticas. Da Europa podem ser ditas duas coisas: 1) Fujam enquanto é tempo; 2) Ela vai-vos comer o coração.
Fujam enquanto é tempo: a Europa é um pântano povoado de crianças caprichosas. Os europeus gostam de objectos, vivem obcecados pelos seus brinquedos. Numa das últimas incursões sobre o perene tema da identidade europeia, Steiner propõe que os cafés são constitutivos da especificidade europeia. Steiner refere-se, obviamente, aos cafés de Praga, Viena, Budapeste e Paris dos princípios do século passado. Hoje em dia, nos cafés, fala-se de torradeiras, solários, férias no Brasil ou em Maiorca, dos porches, dos alfa romeus, dos toyotas, das casas e dos corredores, dos biblôs e do ar condicionado . São os europeus e os seus brinquedos. As pequenas esferas privadas das crianças caprichosas.

Ela vai-vos comer o coração: neste pântano nem todos os seres que por lá coabitam partilham a mesma camada de lodo. Uns há que andam à superfície do pântano – mais conhecidos por alfaiates- e outros que se arrastam nas camadas profundas onde se acumulam detritos de todas as espécies. Esta Europa possui uma elite que se assume enquanto aristocrática; que replica os padrões e a jactância das cortes de antanho. Esta Europa originou uma elite que nos governa onde figuram pessoas como Berlusconi, Pym Fortuim (governava), Sarkozy, Merkel e um cortejo de sinistras personalidades que paulatinamente têm vindo a ocupar os governos dos novos Estados Membros. Já imaginaram que se ela fosse de facto uma federação teríamos um assustador colégio de fascistas a governarem-nos? Uma elite de tal forma conservadora e autocrática que faria os neocons do Bush parecer as brigadas vermelhas. Pois é, ingénuos, mas eles já cá estão e vêm para vos arrancar o coração.

Monday, May 08, 2006

FOI-SE E MARCELO



(as falas da personagem M devem ser lidas com intonação nasalada)

J: Mas não considera que o Pres. da República ao não colocar um cravo na lapela se está...de certa forma...a distanciar do 25 de Abril?
M: Não, sabe...o Presidente é uma pessoa equilibrada e por isso não quer apelar a revivalismos deslocados. O que é a função do Presidente? É guardar a equidistância entre os vários interesses que ele representa. Ora o Presidente Cavaco Silva ao não pôr o cravo na lapela não deixa por isso de se identificar com...
J: Mas estará o Presidente da República a dizer algo aos Portugueses?
M: Sim...vou dar-lhe um exemplo: os meus alunos já não sabem o que é o simbolismo do cravo. Quando lhes falo do cravo...ou mesmo de alguns acontecimentos do 25 de Novembro...de Abril, eles não possuem memória...portanto, o Presidente pretende mostrar aos Portugueses, também aos mais jovens, que o 25 de Abril não é apenas os cravos. Para além de que o Pres. Cavaco Silva vai ter um cravo consigo...
J: Sim, mas não vai pô-lo na lapela...
M: É verdade que não; mas vai tê-lo ali ao pé dele (esboça um gesto com a mão que não consegue dissimular um misto de desagrado e de repulsa)...pondo o cravo à sua frente envia uma mensagem forte quer aos Portugueses que mais se identificam com esse símbolo quer aos que possuem uma visão diferente do 25 de Abril. Está portanto, a meu ver, a representar todos os Portugueses.
J: Mas será o primeiro Presidente da República a não pôr cravo na lapela desde o 25 de Abril...
M: ...penso que não, que Jorge Sampaio...
J: Jorge Sampaio sempre pôs o cravo na lapela e mesmo Mota Amaral...
M: Sim, mas sabe, Mota Amaral desde que virou um pouco mais à esquerda agora tem que (risos)...
J: Considera, portanto, que esta atitude do Presidente da República vai ser consensual?
M: Espero que não, já viu que em democracia as pessoas têm a opção de discordar. Julgo que é essa, no seu estilo muito subtil, a essência da mensagem do Presidente da República.
J: Não considera que é o próprio Presidente Cavaco Silva que, ao distanciar-se do principal símbolo de Abril, estará a desvirtuar a revolução?
M: Olhe, de Pedro Mexia chega-nos um delicioso – concordo inteiramente com o que diz o José Viegas -, um delicioso, dizia eu, livro de crónicas: Na primeira pessoa.
J: Não acha que Cavaco Silva pretende fundamentalmente demarcar-se do 25 de Abril agradando assim aos sectores mais conservadores e de direita da sociedade portuguesa?
M: uma delícia, este Mexia – principalmente a dos pretos...não me aguentei com a dos pretos...(risos)
J: Basta ver a casa civil do Presidente da República...não considera que o elenco escolhido evidencia uma clara colagem à direita mais conservadora...
M: Se lesse esta dos pretos...veja lá, pretos que (risos estentórios) queriam ficar brancos...
J ...e que em vez de equidistância a atitude de Cavaco revela...
M: uma delícia...é o que lhe digo. Pretos que queriam ser brancos – o que se havia ele de lembrar, este Mexia. Uma delícia, uma delícia, uma delícia...
J: Corremos o risco de já não termos homenagens oficiais ao 25 de Abril para o ano que vem?
M: Leia isto que isto só lido. Principalmente a dos pretos que queriam ficar brancos (risos) só o Mexia para se lembrar disto...e as crianças na outra margem continuam pretos....(risos), só mesmo do Mexia... (risos incontidos)