Friday, November 30, 2007

Museologia


"O centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto e as coisas que aconteciam, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era o filho de Deus..."

Elogios de quem sabe do que fala são os mais jubilosos que se podem receber. O David levou-nos cortezmente a uma viagem pela história. Dotes arqueológicos que não são de desprezar. Sobretudo, o conhecimento de museologia do David, melhor dizendo, do roteiro dos museus lisboetas, é para todos os efeitos invejável para quem não é “alfacinha”, e faz do David um guia turístico difícil de irmanar.
O David conhece a arqueologia por dentro; quer dizer tem um conhecimento caldeado pela praxis do arqueólogo. O seu blog tem o tanto austero como simbólico nome de “Centurião”. Entramos e não nos desiludimos.
O “centurião” rescende a batalhas; a guerras pela humanidade. Guerras do alecrim e mangerona. Num tom elegíaco, entre o escatológico e o romântico, recebemos comovidos o fervor atávico do “centurião” em frases como

A europa vive sob o terror do espectro do racismo. Imersa no medo de si propria. Na culpa pos-colonial. E no relativismo epistemologico. Este degenerou misteriosamente no relativismo moral.

Ficamos imediatamente com a sensação de estar em presença de um hibrído; uma clonagem que misturou o cérebro do Prof. César das Neves com os intestinos do Prof. João Carlos Espada. Tenham medo, tenham muito medo, porque o “centurião” arremete novamente:

Os multiculturalistas exigem que a lei deve reconhecer direitos para culturas e comunidades. Entre elas a dos canibalistas. Se no forno do canibalistas está o peito de um cidadao é um direito que deve ser consagrado pela personalidade juridica que especifica a comunidade canibalista. (...) A autonomia nao existe, é uma escolha efectuada por algo sobre-individual. A comunidade. O individuo nao existe, apenas o grupo é real, a sua vontade é a da vontade geral. A vontade do grupo. Da comunidade que pensa por ele. O multiculturalista vê no canibal uma passividade biologica, e a impossibilidade de transcendencia do limite cultural.

Mas para além da peste multicultural existe uma aliança entre canibais, islâmicos e...a esquerdalha

A coligação de movimentos que encontra asilo ideológico na turbulência politica das ONG’s, em grupos políticos mediáticos que nunca morreram de amores por “isto”, e na violência saída das ruas de Seattle e Génova, não escondem motivos e aspirações, não se comovem com a democracia liberal, e ainda envenenados pelo ópio do marxismo, aspiram contribuir para a derrocada do capitalismo e a sociedade burguesa alinhando ao lado do Islão radical pois este tem no ocidente a efígie do “mal”.

Fica aqui denunciada a conspiração entre o Islão radical e a esquerda. Diz-se que o Zé Neves lê o Corão diariamente e que a Luísa Mesquita será substituída por um imam na Câmara de Santarém. A alucinação por vezes nem necessita dos mais fortes psicotrópicos...

Mas isto não fica por aqui. Recentemente, o homem furibundo que se aloja no “centurião” – é verdade a voz que se ouve não é uma reencarnação do Teixeira de Pascoes versão século XXI, tem mesmo corpo e alma, ou melhor, tem flesh and blood como diriam os brits – confessa a sua misantropia! Que lhe cheiram mal os autocarros; que há gente a mais nas cantinas da universidade; que teria que vir um bacilo para acabar com esta merda. Nós conhecemos o arrazoado: os génios incompreendidos gostam muito de montar o circo do misantropo. Mas por quem é que estes gajos se tomam? Se os alunos do David descobrem que lhes tem peçonha, que desdenha a sua presença, que a mera ideia de partilhar o mesmo espaço lhe causa repulsa, é caso para processo disciplinar, porra! Ou não? E depois, o que é um jihadista convicto ao pé de um DLM galvanizado? Nada. Este homem é um perigo público. Já pensaram se ele instila estes sentimentos nos alunos. As mentes melífluas que iremos ter que aturar só porque foram bafejadas pelo toque de midas do David? Eu prefiro nem imaginar. E a ideia do bacilo? Chiça, vai pelo mesmo caminho do japonês maluco do gás sarim....não, não, não é nada disso: qualquer dia teremos um vídeo no youtube: SturmgeistDLM e depois...depois não quero sequer pensar o que fará o DLM quando entrar na universidade no dia seguinte. Preparem as paragonas, porque o próximo Colombine vai ser algures entre Santa Maria da Feira e Vigo!

Pois é. Se és jovem, descerebrado, islamofóbico, um tudo nada racista, nacionalista incorrupto, detestares canibais e, de preferência, o resto da humanidade, então o Centurião é o teu blog!
Não se aprende muito, mas a prosa é boa, para quem gosta de Holderlin engarrafado em Sagres. Passem por lá, se gostarem de dinossáurios. Sobretudo se forem “excelentíssimos”.

Mas há algum rei vivo?


A Atlântico considera-o um anúncio "absolutamente gratuito"

O nosso Reinaldo Azevedo.



Recebi esta resposta do editor da Atlântico (a melhor revista de Portugal e ilhas)

· Nuno”, não o mando passear macacos porque não merece a minha irritação. Qual esclarecimento? Só pode estar a brincar connosco - e com o nome da Atlântico. Já agora: quem lhe dera a si chegar aos calcanhares da “Veja” e da Atlântico. Passe bem.

Porque tinha dito isto

· Se a Atlântico trabalha sob o lema do bom jornalismo, seria de elementar bom senso publicar um esclarecimento quer sobre a caricatura de Che-Hitler quer sobre o teor e conteúdo da reportagem. Senão, ficamos seguros que a Atlântico pratica o mesmo tipo de jornalismo rasteiro, falacioso, interesseiro que parece ser timbre de alguns repórteres da Veja; nomeadamente o visado pela carta de Lee Anderson.Resumindo, ficamos cientes que a Atlântico age de má-fé.

Ó Bruno, arruma a barraca porque nunca chegaremos aos calcanhares da Atlântico ou da Veja! Porra, puxa, é mau memo. Tanto trabalho; tanto dinheiro investido...

Mas ele não viu que isto se chama “o blogue qualquer”? Não estamos no negócio da venda por internet, ou estamos? Não queremos fazer concorrência a um Independente recauchutado, e agora livremente monárquico e de extrema-direita, pois não? Nãooooo.

Let it be, let it be,
let it be, let it be,
whispering words of wisdom, let beeeeeee

p.s reparem na finesse do "passear macacos". Mas quanto a não merecer-lhe a iritação, está v.exa coberta de razão.

O que é um cínico?

Não se responde directamente. Será melhor começar por hiperbolizar a explicação. E que melhor maneira do que recorrer a exemplos? Um cínico numa revista brasileira. A revista chama-se Veja e dizem outros que é a melhor do mundo. O tal cínico discute em termos “cafagestes” – sejamos protocolarmente CPLPs – a conspiração da “canalha” esquerdista sobre as cartas do biógrafo de Che Guevara, o jornalista Lee Anderson. Vale a pena transcrever as cartas, porque a polémica e as acusações instalaram-se em torno do conteúdo da mesma. A carta, como seria de esperar, conheceu ampla circulação na internet. Tomei conhecimento dela, primeiro aqui (blog a que se aconselha a leitura se se quiser respirar para além do fedor de uma Atlântico ou de uma Veja – as melhores revistas do mundo, nunca esquecer). Depois foi o Daniel a publicá-la; a carta do Lee Anderson, e a gerar uma porfiazinha, como são normalmente as que acontecem entre ele e a Atlântico, e esta última que, pressurosamente deu a conhecer o artigo cordato, bem argumentado, e corajoso, do aldrabão da Veja.

DearDiogo,
I was intrigued as to why I never heard back from you when I replied to this email you sent me (see below). And then I saw the article you wrote in Veja, which was the most one-sided perspective on a contemporary political figure I have seen in a long time. It was precisely this kind of highly-editorialized reporting, either hagiographically in favor, or -- as in your case -- demonizingly against, that led me to write my biography. I sought to put some flesh and blood on Che’s overly-mythified bones in order to understand what kind of person he really was. What you have written is an OpEd piece camouflaged as a piece of accurate journalism, which, of course, it is not. Honest journalism, to my knowledge, involves incorporating different sources of information and perspectives, and attempting to place the person or situation you are writing about into context, so as to educate your readers with at least a semblance of objectivity. What you have done with Che is equivalent to writing about, say, George W. Bush, and relying almost entirely on quotes from Hugo Chavez and Mahmoud Ahmadinejad to bolster your own point of view. I am, glad, in the end, that you did not follow up with me for the interview, because I would have spoken to you in good faith, under the mistaken assumption that you were a serious journalist, and an honest colleague. And In that assumption, I would have been sadly mistaken. Please feel free to publish my letter in Veja if you wish.

A seguir a carta “petralha”, segundo o jornalista da Veja – um dos melhores do mundo, nunca esquecer – que circulou pelos blogs da “canalhada” esquerdista:

A VERSÃO PETRALHA QUE CIRCULA NA REDE (segundo o homúnculo)
Caro Diogo,
Fiquei intrigado quando você não me procurou após eu responder seu email. Aí me passaram sua reportagem em Veja, que foi a mais parcial análise de uma figura política contemporânea que li em muito tempo. Foi justamente este tipo de reportagem hiper editorializada, ou uma hagiografia ou – como é o seu caso – uma demonização, que me fizeram escrever a biografia de Che. Tentei pôr pele e osso na figura super-mitificada de Che para compreender que tipo de pessoa ele foi. O que você escreveu foi um texto opinativo camuflado de jornalismo imparcial, coisa que evidentemente não é. Jornalismo honesto, pelos meus critérios, envolve fontes variadas e perspectivas múltiplas, uma tentativa de compreender a pessoa sobre quem se escreve no contexto em que viveu com o objetivo de educar seus leitores com ao menos um esforço de objetividade. O que você fez com Che é o equivalente a escrever sobre George W. Bush utilizando apenas o que lhe disseram Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista. No fim das contas, estou feliz que você não tenha me entrevistado. Eu teria falado em boa fé imaginando, equivocadamente, que você se tratava de um jornalista sério, um companheiro de profissão honesto. Ao presumir isto, eu estaria errado. Esteja à vontade para publicar esta carta em Veja, se for seu desejo.
Finalmente, o tal sujeito, o melhor jornalista do mundo, o do chapelinho de palha à pintelho pessoano, disfere o seu golpe e brame: a tradução é uma falsidade; a esquerda canalha mutilou, digo mais, reciclou, a carta original de Lee Anderson.
E então,

O QUE ELE DE FATO ESCREVEU
Caro Diogo,
Estava intrigado de não ter recebido notícias suas depois de ter respondido ao e-mail que você me enviou (segue abaixo). Aí eu vi a reportagem que você escreveu na VEJA, a mais unilateral perspectiva de uma figura política contemporânea que vi em muito tempo. Foi precisamente esse tipo de reportagem super-editorializada, ou uma hagiografia a favor ou – como é o seu caso – uma demonização contra, que me levou a escrever a minha biografia. Procurei pôr um pouco de humanidade na figura supermitificada de Che para entender que tipo de pessoa ele realmente foi. O que você escreveu foi um texto opinativo disfarçado de jornalismo cuidadoso, coisa que evidentemente não é. Jornalismo honesto, segundo meus critérios, implica incorporar diferentes perspectivas e fontes de informação, uma tentativa de pôr a pessoa ou situação sobre as quais se escreve em seu contexto com o objetivo de educar os leitores com um mínimo de objetividade. O que você fez com Che é o equivalente a escrever, digamos, sobre George W. Bush confiando quase inteiramente nas aspas de Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista. Estou contente, por fim, que você não tenha insistido comigo para fazer a entrevista. Eu teria falado com você de boa fé, na suposição errada de que você fosse um jornalista sério, um companheiro honesto. E, nessa suposição, eu estaria tristemente errado. Esteja à vontade para publicar esta carta na VEJA se desejar.
Cordialmente,Jon Lee Anderson.

O melhor jornalista do mundo, para além do estilo carroceiro e seboso com que nos brinda periodicamente, não conhece corno da língua inglesa ( e bem assim, quem o secundou na interpretação); ou melhor, conhece, mas inventa umas questiúnculas, uns preciosismos, que ele, com os auspícios da Veja e do Webster’s dictionary para otários, lá parturejaram.
Atente-se no texto. Diz o melhor jornalista do mundo que a versão “petralha” traduziu one-sided por “parcial”, mas devia ser “unilateral”. Escapa-se-me a diferença; mas a existir apenas reforça o argumento da primeira carta, dado que, aceitemos, uma versão parcial ainda assim é mais atenuada do que uma unilateral. Infelizmente, a burrice, ou cinismo, do jornalista não encontra refúgio no inglês, e lá temos que de facto, uma melhor tradução para one-sided será “parcial” visto que para unilateral temos a literalmente traduzida “unilateral”. E continua.
Marra seguidamente com o "flesh and blood", dizendo que é um insulto traduzir literalmente por “pele e osso”, no que o autor teria por intenção escrever "humanidade". “Flesh and blood”, resulta em “humanidade”, segundo esta figura dos marretas brasileiros. Por exemplo, o seguinte poema de Withman do Leaves of Grass

Treacherous tip of me reaching and crowding to help them,
A minha humanidade (My flesh and blood) playing out lightning to strike what is hardly different from myself;

Ou então, uma rápida tradução do poema de Eliot, The Hipopotamus

THE BROAD-BACKED hippopotamus
Rests on his belly in the mud;
Although he seems so firm to us
He is merely flesh and blood.

Flesh and blood is weak and frail,

ficaria, segundo o patusco jornalista da Veja

O corpolento hipopótamo
Deitado de borco na lama
Embora nos pareça tão seguro
Não é mais do que “humanidade”

A “humanidade” é fraca e frágil
e por aí afora...

E assim temos que para o melhor jornalista do mundo, um hipopótamo vira humanidade. Não é caso para espanto quando jornalista vira hiena.
Mas onde o rapaz mostra os seus dotes anglófilos é nesta peça de supina originalidade: onde se lê “camouflaged as a piece of accurate journalism”, o melhor jornalista do mundo vê “disfarçado de jornalismo cuidadoso”. Ora "accurate" não é cuidadoso e estará com certeza mais próximo do “imparcial” pois pode ser, com vantagens, traduzido por “correcto”, “certo”, “exacto”, etc. "Accurate figures", não são com certeza “números cuidadosos”. Mas accuracy é o que mais falta a este trambolho de chapéu de palha.
Finalmente, a piéce de resistence, o melhor jornalista do mundo, traduz “that you did not follow up with me for the interview” pelo insinuante “não tenha insistido” pressupondo-se que Andersoon estaria muito interessado na entrevista. Parece óbvio que o follow-up não tem nada a ver com “insistência”, mas simplesmente com “não prosseguiste” a entrevistar-me. E chega.

Com jornalistas desta qualidade, com jornalismo deste quilate, como é que podemos estar seguros daquilo que lemos? A deontologia parece ser um termo que se utiliza a bel-prazer, quando dá jeito, e que se deixa no waste bin quando não serve. Porém, se com a deontologia a esperança morre na praia, podemos ainda salvar o inglês. Propõe-se uma oferta de um dicionário Português-Inglês da Porto Editora, claro! (passe a publicidade).

Thursday, November 29, 2007

Subterrâneos

Há uma miríade de empregos invisíveis. Não cabem na definição de profissão; não prometem carreira, nem desafios. São empregos cujos resultados encontramos espalhados pela cidade, mas que não são efectuados por rostos; ou melhor não lhes conseguimos atribuir uma autoria identificável. E no entanto, lá aparecem, diariamente, a sustentar as nossas comodidades, os nossos caprichos, os nossos desejos. São efectuados por trabalhadores que só se vêem fugazmente, em encontros não planeados. Se calhar passar por eles, encolhemo-nos, sofredoramente: um mal de consciência – como podem estes tipos fazer isto? O que retiram daí? E outras tantas interrogações confortáveis que só nos assolam quando nos dispomos a uma filantropia desportiva. Acontecem pela manhã, estes encontros com vultos a que mal definimos os contornos. Uns limpam as vitrinas dos outdoors, os retábulos publicitários, o vanguardismo imagético da sociedade de consumidores (e mesmo esta fórmula parece pirosa o suficiente para agradar ...) outros, limpam as salas onde trabalhamos, para que quando chegamos ao escritório as migalhas do dia anterior tenham desaparecido; passe de ilusionismo cujo prestígio (e aprendi no outro dia na grande escola de Holliwood, que o truque tem por nome o prestígio) consiste em fazer desaparecer o “mágico” antes que chegue o público. Trabalham em escritórios; trabalham nos grandes escritórios das grandes capitais. Têm horários diferentes, é verdade. Revezam-se com o escol do mundo dos negócios: os verdadeiros trabalhadores; os que têm honra de capa de revista e de artigos de fundo sobre a sua profissão. Os outros, os que ocupam os escritórios como almas penadas que o dealbar açoita, é bom que fujam antes que marchem os exércitos dos executivos – aqueles que executam! E estes marcham em diferentes direcções: no metro, nas estradas, nos transportes públicos, e a pé ou noutros meios. Mas seja qual for a direcção, importa que o homem dos outdoors já por lá tenha passado, enquanto o exército retoma o vigor do dia anterior, se prepara para marchar e para guerrear. Importa que as bandeiras tenham sido desfraldadas, no metropolitano, nas paragens dos autocarros e eléctricos, nos telhados dos prédios: miríadas de bandeiras a assinalarem castelos visíveis, supostamente visíveis, forçosamente visíveis, a contrastar com as miríades de empregos que se tornaram invísiveis por debaixo do pano desfraldado. É para nós, este esforço engalanado que a cidade piamente oferece, pelas mãos dos indiferenciados; os do subterrâneo, os que encontramos de raspão, e apre!, que se faz tarde, porque o contacto é pestilento. Pensamos neles; claro que pensamos, claro que dedicamos um quinhão da nossa atenção a quem erije a muralha diariamente. Claro que gostamos de vermo-nos reflectidos nos vidros translúcidos das estações de metro – aqueles que prometem a terra e o céu e que nos ofertam a vida eterna. Claro que os tampos das nossas secretárias, ou a retrete onde defecamos, são elementos funcionais para os quais dedicamos grande parte das nossas vidas: trabalhamos, defecamos; trabalhamos, defecamos. E é claro que tudo deve estar assepticamente preparado. Não queremos lixo! Não queremos tocar no lixo! Pagamos para que nos tirem o lixo da frente, para que possamos prosseguir com existências impolutas, sem contacto com o lixo.
Do outro lado, no “fim da noite”, regressam outros tantos a casa. Limparam as ruas, os escritórios, os outdoors. Deixam-nos a cidade limpa e acetinada, própria para consumo.

Wednesday, November 28, 2007

História mal digerida

A entrevista de Catalina Pestana na Sol. Voltar a ela, depois das ondas císmicas e do sensacionalismo. Primeiro, simpatizamos; chegamos mesmo a empatizar com Catalina, pela sua vida de combatividade, pelos seus assomos de voluntarismo, coisas bem diferentes do que nos acostumámos a ver na figura austera de Catalina, a televisiva. Sim, vem sempre envolta numa certa áurea de São Jorge contra o dragão. Mas aqui, nesta ocasião mediática, nesta oferta mediatizada, somos levados à sua intimidade: Catalina na sala; Catalina na rua; Catalina em brincadeiras juvenis, Catalina na praia, etc. E simpatizamos. Sinceramente, empatizamos com o que há de genuíno nesta reconstrução da Catalina a justiceira a que nos habituáramos a prestar atenção em momentos de declarações explosivas, estarrecedoras, chegando até à comoção.
E eis que senão,
Como é que, durante 12 anos, nunca se
apercebeu de algo com esta dimensão?
Nem com o caso dos miúdos desaparecidos
e depois encontrados em casa de Jorge
Ritto, nos anos 80?
Nada. Mas percebo porquê. Como adjunta
do vice-provedor, já não ia às reuniões de conselho
(embora, ao que me disseram, esse caso
não tenha sido discutido em conselho).


E não era um assunto que se comentasse?
Se se comentava, era no Colégio Nun’Álvares.
Nos outros colégios não se chegou a saber.
Santa Catarina tem um edifício diferente,
menos exposto (só tem uma porta) e era o
único internato misto da Casa Pia, pois acolhia
grupos de irmãos. Portanto, comparado
com grandes colégios masculinos como o
Maria Pia, o Pina Manique e o próprio
Nun’Álvares, o Santa Catarina era o mais pequeno
e o mais resguardado, pelo que, para
qualquer pedófilo, não valia o esforço.
E tudo se desmorona. Porque parece suspeito que alguém da Casa Pia não tivesse ouvido falar das escapadelas nocturnas dos rapazes; da prostituição em Belém; do pular o muro para encontros furtivos. Nenhum destes acontecimentos era propriamente surpreendente para quem vivia na zona de Belém e Ajuda. A fama da Casa Pia (a má fama) precedia em muito a sua função de resguardo dos órfãos. Quem falasse com um dos moradores daquelas zonas, os veteranos, os que jogavam futebol no descampado onde agora se encontram o estádio do Belenenses e o museu de etnologia, não era estranho que o assunto prostituição surgisse associado à Casa Pia. E isto recentemente? Qual quê! De há quarenta anos a esta parte.
Eram conhecidos os malefícios de um internato de rapazes. Não constituia segredo para ninguém que os rapazes da Casa Pia, para ganhar umas massas, se prestavam a serviços sexuais com desconhecidos. Se isto tinha a dimensão de uma rede organizada de pedofilia, nem sequer estava em questão. Talvez não tivesse; talvez só mais tarde é que tivesse adquirido essa tenebrosa dimensão. Seja como for, a prática, e sobretudo, a sua sistematicidade, nunca tiveram em causa, nem nunca foram segredo.
Catalina desconhecia. O colégio onde leccionava, diz ela, não era aliciante para os pedófilos. E para os miúdos? Porque o recrutamento não era feito para além dos muros; era feito intramuros. Porque a iniciação era cumprida entre os pares e não com estranhos. Isto sabia-se e nem era preciso conhecer as estórias macabras da rede de pedofilia. Rede essa que se resume, afinal, a sete ou oito indivíduos entre indiciados e acusados. Parece pouco para uma rede de tão catastróficas consequências. Nem Catalina desmente o facto de a rede ter maior dimensão:
Ao contrário do que as pessoas pensam, a
Polícia não me avisava do que ia fazer, o que
era normal. Por acaso, estava a dormir na
noite em que ele foi preso. Ouvi dezenas de
nomes de vários abusadores cujos crimes
estavam prescritos (...)

e na primeira entrevista diz Catalina
Claro e de quem eu sei o nome e a polícia
também. Desde os anos 60 que há um leque
muito mais vasto do que é conhecido de abusados
e abusadores. Conversaram comigo
homens casados, pais de filhos e avós de netos!
Ainda agora, com esta confusão dos novos
códigos penais, vieram dizer-me: «Senhora
provedora, não desista porque isto foi
feito para abafar tudo».
e por que nunca foram eles anunciados? Os nomes, os tais dos crimes prescritos? Perseguição injusta? E a que Catalina moveu, e move ainda como podemos constatar, a Paulo Pedroso?
Nessa altura, sento-me neste tapete e morro
[a propósito de Paulo Pedroso]». Foi para mim um choque muito grande.
No dia a seguir, um aluno que me tinha falado
em Paulo Pedroso telefonou-me e disse-me
que tinha sido o dia mais feliz da sua
vida. Aquilo incomodou-me muito,mas perguntei-
lhe porquê. «Porque ninguém acreditava
em mim», respondeu. Depois apareceu
no meu gabinete e contou-me tudo, nomeadamente
descreveu-me sinais do dr. Paulo
Pedroso que eu ia sempre tentando desmontar:
«Mas isso podias ter visto numa piscina!
». E ele contrapunha: «E os sinais que estão
por baixo dos calções, como é?». E eu fui
murchando, como um balão que vai esvaziando.
Nesse dia, falei com amigos comuns,
que estavam desfeitos, como é evidente.Mas,
depois de falar com o rapaz, eu já não era a
mesma pessoa.
Talvez os sinais que se encontravam debaixo dos calções de Paulo Pedroso fossem particularmente caros a Catalina. De outra forma, por que razão dar uma tal relevância ao caso? E nem é que eu me incomode por aí além com o possível envolvimento de Pedroso; o que incomoda é a exclusividade que Catalina faz impender sobre Pedroso. Porquê? Por que não os outros nomes; os outros que prescreveram? Ou não teriam estes sinais identificáveis debaixo dos calções?
Catalina prossegue incitada pela repórter da Sol:
E o PS também já era diferente consigo?
Eu nunca fui do PS.Mas sim, a relação ‘arrefeceu’.
Algumas pessoas que até aí tinham
comigo uma relação quente e próxima fingiam
que não me viam ou diziam mesmo a
pessoas próximas: «Vamos por aquele lado,
que eu não quero cruzar-me coma Catalina».
O PS encarou o caso como um ataque
partidário. Como viu a forma como Paulo
Pedroso foi recebido na Assembleia
da República, depois da sua libertação?
Isso foi o maior escândalo político dos últimos
anos.
Está enganada. O maior escândalo político dos últimos anos é aquele para o qual ela continua a contribuir. O maior escândalo político dos últimos anos foi a singularização de Paulo Pedroso num caso que, por maioria de razão, envolveria dezenas de pessoas, muitas delas, eventualmente, de relevo público. Mas Catalina desconhecia. Desconhecia a prostituição – de que toda a gente estava a par -, nunca tinha ouvido falar de violações entre os miúdos – algo que não surge como propriamente inaudito em regime de internato -, nunca teve conhecimento, durante doze anos de funções na Casa Pia, do que se passava.
E, para se fazer História, é preciso não ter
paixão. O maior erro que eu cometeria
era escrever um livro: estragava tudo.
Porque recebo todos os dias contactos
dos miúdos, sou interpelada na rua todos
os dias por pessoas que não conheço
e para quem sou o rosto que defende
aqueles miúdos. Não sou neutra, mas
acho que nisto só se pode estar de um
lado: ou do lado dos abusadores, ou das
vítimas. Eu estou do lado das vítimas,
independentemente de saber quem são
os abusadores.

Tudo bem. Catalina não se apercebe que já está a fazer história. Será ela assim tão ingénua para não saber que a história actualmente se faz com os meios de comunicação social; que são estes que fixam a “realidade”? Catalina não quer fazer história; quer apenas criar uma associação de “cuidadores” das crianças. Apela à caridade para subsidiar esta associação. De caminho, dá uma entrevista em que o único nome que surge reiterado inúmeras vezes é o de Paulo Pedroso. Estranho, num caso em que “desde os anos 60 que há um leque muito mais vasto de abusados e abusadores”. A entrevista de Catalina vai fazendo história. A história de Catalina.

Tuesday, November 27, 2007

Sonambulismo

Diziam que tinha acontecido enquanto dormia. O rapaz sofria de sonambulismo. A irmã, por diversas vezes o surpreendera, braços estendidos, olhos semi-cerrados, a andar pelos corredores, que eram dois, daí que o plural possa exagerar a dimensão da casa; por isso, melhor seria dizer, o corredor que ia da cozinha à casa de banho e o corredor que ligava o quarto dos filhos ao dos pais. Era uma casa com o formato de uma cruz. A mãe notara-o logo na primeira visita ao sítio que viria a ser o seu lar. Exclamara, mas a casa tem a forma de uma cruz. A entrada ao lado da cozinha; o longo corredor a ligar a casa de banho no topo; e, perpendicular, um corredor mais pequeno que atravessava o maior ligando o quarto dos pais ao futuro quarto dos filhos. Na planta, qualquer pessoa podia reparar: era uma cruz. E essa impressão ficou-lhe marcada na memória. Quando apanhava o autocarro pela madrugada, no caminho para o emprego, na Almirante Reis, se pretendia encontrar um qualquer objecto ao qual esquecera o paradeiro, procedia por aproximações, como num modelo computorizado. Primeiro ocorria-lhe a planta, a forma de uma cruz, distintamente desenhada na memória. Entrava por um dos corredores, mas planando, e aterrando sempre numa das suas extremidades. Depois encaminhava-se para o lado oposto e em simultâneo prescrutava cada uma das divisões, tendo por referência peças de mobiliário específicas às quais associava cores; ou então matizes. A outras associava sensações, como ao banco forrado a seda, com uma fímbria rendilhada, que se encontrava à direita da televisão, a que sempre associara ternura, sobretudo quando o gato se enrroscava nele caído num sono alheado. Passava finalmente, e por vezes, pelas paredes, como um fantasma, e divisava, mas nem sempre, o objecto que buscava por entre as paredes como se a casa tivesse ganhado uma transparência espectral e entre ela, em fantasma, e a casa, em espectro, houvesse uma ligação espiritual.
Assim se entretia, deambulando na memória pela casa com o formato de uma cruz. Quando o filho começou com as suas passeatas nocturnas, de braços estendidos, surpreendendo a pequena a desoras, não se espantou ela que percebia perfeitamente que o filho pudesse partilhar da mesma ligação mnemónica com a casa; que tivesse, inclusivamente, associado sensações a peças de mobiliário e que no seu sono conturbado a planta em forma de cruz lhe surgisse tão distintamente como quando desperto. E a verdade é que tinha por hábito sair do seu quarto onde dormia com a irmã, cada um em sua cama, com os respectivos cartazes, uns de estrelas de rock e outros de via lácteas ou de corpos dilacerados em teatros de guerra, e encaminhar-se, primeiro para o quarto dos pais, perfazendo, de um lado ao outro, os braços de uma cruz. Depois, esquecia-se da casa de banho e dirigia-se directamente para a cozinha onde dava meia-volta e regressava à cama. E foi assim durante anos, várias vezes por semana. Algum dos familiares se espantava quando se cruzava com o rapaz nas suas andanças nocturnas? Nem pensar. Ficavam por vezes parados, a sentir a quietude da casa a segurar-lhes os ossos e a cismar se ele iria bater com a cabeça na esquina entre a cozinha e a porta de entrada. Mas nunca acontecia: nem de raspão, nem um tombo, nem tropeçava na mobília. O circuito era efectuado com perfeição desconcertante e a única coisa que suscitava era admiração por parte de quem o observava, em silêncio, sacudindo o sono dos ombros.
Por isso, quando o filho se debruçou do parapeito da janela da cozinha, durante uma noite sem lua, e caiu no saguão do prédio, encontrando o chão trinta metros abaixo da sua janela, a mãe não pensou que tivesse sido um percurso mal calculado durante o seu sonambulismo. E quando as notícias sairam em pequenas caixas de fundo de página, onde se lia “sonâmbulo cai da janela abaixo encontrando a morte” ou “rapaz que sofria de sonambulismo tem morte bizarra” ou “os perigos do sonambulismo: como proteger os seus filhos?” nenhum destes títulos convenciam a mãe que sabia que no seu sonambulismo, o filho estava mais alerta do que muitos durante a vigília. Segundo ela, o filho tinha-se suicidado e essa era a explicação mais plausível.

Monday, November 26, 2007

Nada a fazer

Estavam lá todos, quer dizer, o marreco, o preguiça, o Antunes, o mete-nojo, e o caveira. Bêbedos como sempre; ou como já era costume, assim dizia o sr. Laureano da mercearia “estes biltres estão sempre bêbados” e depois desfiava um rosário de lamentações sobre partir vidros com garrafas atiradas às montras lá para as quatro da madrugada. Faziam um arrazoado impossível, o vozear, os gritos e os pontapés nos caixotes do lixo que a rapaziada denodadamente oferecia à vizinhança em noites de bebedeira. As alucinações eram com o preguiça. Não precisava de drogas, embora enfiasse de tudo, desde que não lhe passasse pela veia. O álcool chegava-lhe para alucinar. Era um fenómeno inaudito, teria dito um médico ao qual o preguiça consultou por causa de ter avistado uma carreta da câmara municipal de Lisboa com dois corvos nos lugares da frente: um a conduzir, o outro a folhear uma banda desenhada. E, não fora o latido agudo dos cães, que mais tarde juraria ser real, teria ficado com certeza pela especulação ou mesmo pela explicação paranormal. Assim, contou ao médico, ou era verdade ou estava a enlouquecer. Nem uma nem a outra. Era simplesmente o efeito sináptico que o álcool provocava no preguiça que, por qualquer ironia da anatomia, lhe descarregava mais endorfinas do que aquelas que normalmente eram registadas, naqueles aparelhos que os médicos usam para mesurar essas coisas. Isto contaria, com imprecisões e injunções, o preguiça ao Antunes e ao mete-nojo, num dia de sobriedade. Ninguém percebeu nada. Nem interessava. O que importava, e incomodava muito invejoso, é que o preguiça conseguia retirar o mesmo efeito de uma simples garrafa de rum do que o comum dos mortais de uma dose reforçada de LSD. E isto chateava muita gente. Era mais barato; era mais divertido; e depois de regurgitado não ficava lá nada. Era portanto limpinho. Isto contou o marreco, em nervosa preleição oferecida com o esmero de um professor de província, ao caveira. O caveira não merecia o apodo por mero acaso. O rosto contorcido devido a um maxilar deslocado num acidente com um torno eléctrico; as olheiras da falta de dormir; a cor macilenta provocadas pelos excessos etílicos e, claro está, o exagero nas metadonas, que substituam de há oito anos para cá a sua anterior dieta de heroína. Nada a dizer. O caveira era o caveira e usava o nome com o garbo de uma estrela de cinema. Tudo nele evocava a morte; e ninguém tinha dúvidas que ela chegaria mais cedo à sua ilharga do que ao resto do grupo. Mais cedo, de certeza, do que ao preguiça. A única coisa que poderia acontecer a este era uma cirrose; umas dores de barriga insuportáveis e uma fiel diarreia que o acompanhava nos momentos mais inconvenientes. Aquela vez em que sentado na plateia do cinema, com a língua da Dolores a comprimir-lhe as amígdalas, e uma tesão infernal a saltar-lhe das calças, sentiu uma revolução intestinal (e usamos o termo revolução na sua acepção tanto médica, como histórica, como astronómica) que teve de saltar por cima de vários espectadores que lhe bloqueavam o caminho entre a cadeira e a saída da fila. Quando o fez, calculou mal o impulso e prendeu um dos pés (estou em crer que o esquerdo) no casaco de cabedal de um alternativo que por acaso tinha por hábito rolar um cigarro apagado entre as pontas dos dedos, e estatelou-se ao comprido na fila de trás tendo partido o nariz nas costas de uma das cadeiras, por mais suave que fosse a napa. Sangue a jorrar das narinas, com o nervoso borrou-se, e assim se acabou o afair com a Dolores. Depois de limpo e seco; mudadas as calças e silenciadas as imprecações, emborcou duas garrafas de rum entre as onze e as duas da madrugada. Mas nessa altura nem sequer se encontrava no bairro, nem tão-pouco à porta da mercearia do sr. Laureano. Começou no Prince Real e acabou no Caixodré, sentado na muralha, com o marulhar das ondas, a copiarem-se umas às outras nas suas escapadelas nocturnas do leito do rio.

Evolução

A estupidez compulsiva


Não, não é a campanha que é estúpida. Essa é simplesmente discriminatória. Estúpidos são alguns dos comentários que pairam em certos blogues e que não enxergam um elefante à frente do nariz.
So, let’s get to basics. O que é um anúncio? É um dispositivo para convencer o consumidor a consumir um produto. O que é o marketing? É a mensagem que associa uma imagem a um produto. Geralmente, e não por acaso, os produtos são associados a imagens aliciantes. Por isso, temos pessoas com os rostos estraçalhados nos anúncios da PSP sobre segurança rodoviária, mas não os temos em anúncios de shampoo ou de água das pedras. É simples e trata-se de um mecanismo básico psicológico: associamos sensações negativas com imagens negativas e sensações positivas a imagens positivas; mesmo que nem sempre a correspondência resulte de forma tão linear. Ora quando vemos belas raparigas de sedosos cabelos num anúncio de sabonetes, a ideia é associarmos a beleza das raparigas – o seu ar saudável, reverberante, sensual – ao uso daquele sabonete. Não estamos convencidos que assim funcione na prática; não somos completamente dops que se deixem orientar por fogachos fantasistas, portanto não achamos que se uma mulher obesa usar um produto que seja anunciado por uma esbelta e elegante rapariga que, acto contínuo, ela vai partilhar dos mesmos predicados. Todavia, se não existe um efeito empírico, existe definitivamente um efeito sensorial. A beleza é uma categoria, e o nosso narcisismo compele-nos a associarmos sensações positivas com a beleza da imagem. É como se houvesse uma corrente subterrânea que nos permitisse partilhar daquela beleza através de um mediador, que é o produto. Se assim não fosse, a publicidade não funcionaria. É justamente porque as técnicas publicitárias – conscientemente ou não – massajam os nossos egos narcísicos, que a nossa relação com os produtos numa sociedade de consumo, se torna afectiva. Nunca esquecer que a publicidade explora a ligação entre imagem e afectos.

Neste sentido, a publicidade recente da cerveja Tagus não pode ser aceite como apenas um problema semântico sobre o significado de “orgulho” como alguns parecem entender. Como se o problema fosse somente a deslocação do significante “orgulho” para um campo de sentido diferente que implicasse uma prática diversa. Ou seja, como se o problema consistisse em que ter orgulho gay é fruto de uma luta social pela aceitação da diferença e que os mesmos termos não podem ser aplicados à heterossexualidade porque ela é a norma. Não é esse o problema. É mais vasto e, logo, tem naturalmente consequências mais amplas.

Regressemos à publicidade é à sua função afectiva. Se é verdade que a miríade de estímulos publicitários têm por função colmatar uma falta, essa prende-se com um substituto da normatividade. Ou seja o consumismo não é uma escolha; é uma injunção. Por conseguinte, é ingenuidade não querer ver na publicidade uma componente ética. A publicidade só pode ser entendida dentro de uma normatividade específica: a normatividade da sociedade de consumo. Sim, porque a publicidade não é apenas publicidade a um produto; é concomitantemente, publicidade a um estilo de vida. Por isso é que a publicidade ao alcóol não contém gajos a cairem de bêbados ou a vomitarem na esquina de uma ruela, mas sim esbeltos homens com ar de empresários de sucesso. Ou seja, a publicidade vende duas coisas: uma imagem e uma imagem enquanto realidade. É justamente a indistinção entre a imagem e a realidade que torna a publicidade normativa. Não no sentido de uma normatividade institucionalizada, mas antes num conjunto de representações que, por pussuirem valor simbólico, possuem igualmente a força de regras. A primeira delas é, não tomar a publicidade como um simples adereço. A publicidade tem efeitos práticos, ou não fosse em torno dela que toda -mas toda sem excepção-, sociedade de consumo se organiza. Há um ethos do consumo, assim como há um ethos do religioso.
Concluindo, quando uma publicidade associa ao consumo de um produto o orgulho de ser hetero, não está apenas a brincar com significantes; a deslocá-los como se os seus efeitos fossem intercambiáveis. Pelo contrário, está a valorizar positivamente a heterossexualidade; mais, está a vendê-la como a forma de vida normativa, a realidade par excellence; aquela que dá verdadeiro direito a uma pertença. Tudo resto é remetido para o campo do anormal. Neste sentido, a Tagus não quis apenas criar “buzz” como dizem os responsáveis pela campanha: “Além de que, [prossegue] trata-se tão só de "uma brincadeira, pois não estamos a formular qualquer juízo de valor". É falso: não só cria juízos de valor, como citando novamente o responsável, ao qual se aplica o velho adágio “com a verdade me enganas”, o nome da acção vem “criar um território de verdades, com uma mensagem mais irreverente”. A única irreverência aqui seria criar uma comunidade tanto para heteros como para homos – porque desta é que não existem muitos exemplos. A deliberada exclusão de um dos grupos; a fronteira colocada segundo a orientação sexual; pouco terá a ver com irreverência. A menos que seja esta traduzida na seguinte fórmula: esta cerveja não é para maricas. E isto para mim configura uma clara intenção discriminatória.

Friday, November 23, 2007

É para isto que temos democracia


Duas coisas aprazem dizer sobre esta campanha: está em flagrante contradição com princípios básicos dos Direitos Humanos e devia ser levada ao tribunal de Estrasburgo.

Não é com contra-campanhas, como esta, por sinal muito boa, que se evitam repetições de nescidade. Os estultos que a congeminaram e que lhe deram perfil deviam ser julgados por homofobia (existem canais para isso, quer na legislação nacional quer europeia) e obrigados a retirar qualquer referência à mesma.

Depois, num plano ético, uma campanha que está, explicitamente, ligada ao movimento heterossexista português (essa coisa tenebrosa chamada "orgulho hetero"), deve ser duramente recusada e criticada. Este movimento entronca na extrema-direita e nas franjas mais intolerantes do catolicismo; é um misto de fascismo com evangelismo norte-americano (diferenças eventualmente irreconhecíveis, mas enfim). Mostra bem o primitivismo português em matéria de liberdades e garantias; no fundo, em matéria de cidadania.

Onde estão os plumitivos da corte Bourbon para se indignarem com esta campanha? Onde?

Democracia

Se houvesse um princípio verdadeiramente democrático a ser seguido na política internacional esse seria com certeza o da pluralidade de experiências políticas. E se o teste da democracia é o da liberdade, então a Venezuela devia ser deixada ao seu destino enquanto nação e a responsabilidade do sucesso, ou falhanço, do seu modelo apenas à sua população caber. Sobretudo quando o seu líder foi eleito democraticamente.

A experiência inaugural

No debate sobre Chávez que decorre actualmente na blogosfera, não é surpreendente verificar o diletantismo em que os autores se comprazem nos seus comentários. Na realidade, este debate, não faz mais do que reflectir as encruzilhadas em que uma nova esquerda se encontra e as certezas que uma nova direita exibe. No primeiro caso, as encruzilhadas não são apenas questões menores de acertos teóricos; representam, ao invés, profundas dúvidas sobre a maneira como uma vida capitalista ocidentalizada poderá ser acomodada a um putativo projecto de sociedade diferente. Na maioria das vezes, as respostas caem nas estafadas platitudes respeitantes ao respeito pela diferença e ao domínio das liberdades (qualquer coisa entre o “soltem os prisioneiros” e o “abaixo o estado”). Digamos que não é de admirar que as coisas assim se passem: esta nova esquerda pertence a uma elite intelectual que, não estando mal em termos de vida simbólica, não está propriamente folgada em termos de vida material. E querendo ser cínico, pretende no entanto adquirir o melhor dos dois mundos mantendo ainda uma réstea de consciência intacta. O acordo é, obviamente, impossível.

Do lado direito da desavença, os presumidos liberais com a sua cartilha dos direitos cívicos e do Estado de direito, pregam sempre as mesmas coisas: o estado mínimo, a superlatividade do indivíduo, e uma definição minimal de democracia. Mas quanto a este último aspecto não nos surpreendamos se encontrarmos estes dois lados da discussão a apoiarem-se mutuamente, em alegre conclave, que apenas difere em pormenores, entre eles, é o mercado uma coisa boa e será que é sempre boa? – realidades absolutamente adquiridas para o lado direito. Para além disso, as respostas são descoroçoantemente vagas.

Chávez é o elemento incómodo; aliás como já tinho sido na cimeira Latino Americana. E uma das provas de que Chávez é um elemento incómodo é a dificuldade em enunciar em que difere a experiência chavista daquilo que mais ou menos já nos habituámos na chamada democracia ocidental. Ora essa dificuldade não resulta da falta de conhecimento; que de qualquer dos modos pode ser mais ou menos adquirido aumentando o espectro de fontes que relatam os acontecimentos na Venezuela. Afigura-se mais provável que ela resulte de uma indefinição do referencial político. E aqui é que a experiência de Chávez se torna verdadeiramente interessante: não tanto como anunciação do novo, mas como desestabilizador do existente.

A crítica à direita é feita em termos cínicos, como sempre. Como alguém já disse, o que guia a direita é o jogo de interesses, mesmo que venham estes embrulhados em pela retórica idealista. Daí que, levantando a cobertura, a pátina retórica, a direita preocupa-se basicamente com os interesses em perigo na Venezuela. Porém, “interesses” não é expressão, tão-pouco prática, que possa ser generalizada, porquanto eles existem porque pertencem sempre a minorias. Por conseguinte, a equação de direita é geralmente bastante sucinta: proteja-se os interesses porque eles serão a fortiori benéficos para a população. No fundo, trata-se da tão propalada distinção entre indivíduo e sociedade (tão propalada quanto falsa). Como esta premissa invoca uma falácia lógica, é-nos sempre pedido para fazermos um voto de confiança, uma suspensão da dúvida que nos convida a acreditar aprioristicamente que de facto a população irá beneficiar, de tal forma que acabamos por afastar a dúvida substituindo-a pelo adquirido, ou seja, o indivíduo e os seus interesses.

Parece que a experiência chavista, mais do que saber se se trata de uma democracia ou não, nos obriga a repensar os termos deste dilema. Mas de uma forma diferente da inaugural experiência zapatista. O zapatismo foi uma experiência demasiado comprometida com o zeitgeist da “difference politics” e com alguns arremedos de pós-modernismo. Claro que sucumbiu às duras provas da realpolitik. A Venezuela chavista rejeita, em princípio, estas inconsequências; estes arrojos da multidude e dos seus propugnadores.

Chávez, como pretendeu demonstrar na cimeira latino-americana, leva muito a sério as implicações da ideologia dos interesses que se acoitam por detrás das palavras de Aznar “esses se joderon!”. Olhando para os modelos neo-liberais e suas experiências práticas, não podemos deixar de detectar uma mesma soberba perante todos os outros desde que os interesses estejam protegidos. Por isso, os outros que se “jodan!” se forem um empecilho para a lógica dos interesses. E nem precisam de ser resistência declarada; desde que não contribuam para a sua acumulação desenfreada, que se “jodan!”. Portanto, é um darwinismo disfarçado de democracia que nos tem sido vendido.
Contudo, mais uma vez se fala mais do que Chávez é, do que aquilo que constitui a experiência chavista. Por isso, sem mais delongas, deixo aqui um pequeno excerto de um texto que descreve o que tem acontecido na Venezuela para além de Chávez e das lutas da comunicação social.

Chávez is showing something of the same anxiety. His government wisely budgets on an oil price of $29 a barrel. And although it continues optimistically to assume an annual production half as large again as Petróleos can presently manage (the infrastructure groans from lack of earlier investment), it still has sums at its command, not least from reserves in the central bank, that few revolutionary regimes anywhere, of any stripe, have been able even to imagine. It has been spending its revenue generously. Adult literacy is complete, there are new schools across the country, and excellent free medical facilities, staffed in many cases by doctors from Cuba sent as payment in kind for oil; basic foods, with some reluctance from suppliers, are sold at subsidised prices; poor housewives are paid for keeping house and people owed pensions are again receiving them. Getting around the country is also becoming much easier: railways are being built, urban transport is improving, and one meets roadworks in the remotest places. Most important, the government is trying to increase productive employment. With help from Petróleos, it has spent nearly $900 million on 130 ‘nuclei of endogenous development’ in manufacturing, agriculture and tourism, and a further $400 million to encourage more than six thousand co-operatives. It is also attempting to redistribute uncultivated land. To encourage these initiatives, it has announced the creation of 12,000 local communal councils. Some corporations are also being nationalised. The only price of this so far is an overvalued currency, which makes imports cheap and exports, apart from oil, too expensive.

O texto, lido na íntegra, está longe de ser encomiástico. Mas para isso temos, e num plano diferente, o seguinte texto de Zizek.

Penso que uma discussão consequente sobre a Venezuela actual deve estar algures entre os dois textos.

Thursday, November 22, 2007

Beowulf

Beowulf, é um filme divertido que não suscita grande reflexão. Ficamos um pouco renitentes, sem conseguir decidir se a opção pela animação computorizada traz algo de novo ou se pelo contrário visa esconder uma fragilidade óbvia do filme: não ter capacidade – eventualmente, vontade - para agarrar no texto. E não falo do original, porque esse pouca gente tem. Mas acontece que ou se fazia qualquer coisa de especial com o poema Beowulf ou então a coisa redunda numa espécie de senhor dos anéis com animação computorizada. Mais dragão menos dragão; mais monstro demoníaco menos monstro demoníaco; mais Angelina Jolie nua ou menos nua (porque mais nua é impossível). Donde não se entende exactamente o porquê da animação computorizada? Para controlar custos? Pode ser.
Há outro exemplo recente que, para além do experimentalismo da iniciativa, não se chega a compreender a razão da opção. Refiro-me ao “A Skanner Darkly” the Richard Linklater, com Keanu Reeves e a excelsa Winnona Rider, adaptação do livro de Philip K. Dick. A história não tem propriamente grandes rasgos fantasistas; como ficção científica, não exige grandes cenários nem grandes efeitos especiais. Todavia, Linklater optou por retocar os seus actores com animação computorizada. Mas com que vantagem? Não se consegue perceber. Não há nada na história que não pudesse ser feito sem os efeitos da digitalização; a menos que a ideia tenha sido disfarçar as rugas de alguns actores. Com Beowulf passa-se sensivelmente a mesma coisa. A adaptação do poema podia ter sido feita como com as peças de Shakespeare, e então teríamos o aproveitamento de um poema épico em filme. Em vez disso, Zemeckis caiu na solução de Troia; só que ao contrário dos cenários grandiosos do segundo, deu-nos dragões e bruxas voadoras, e isto é claro que sai mais barato em computador do que recriando cenários reais. Em todo o caso, desemboca no mesmo problema de Troia de Petersen, ou seja, no esgotamento da especificidade do texto nos efeitos especiais. Se assim é não se percebe muito bem as razões pelas quais os dois épicos foram passados para a tela. Embora seja inegável que os actores de Beowulf estão longe do cabotinismo de Brad Pitt e de Orlando Bloom. Enfim, fica mais um filme com dragões e, especialmente para este, um monstro horrendo chamado Grendel. Daqui a uma semana já está esquecido.
Ah, é verdade, os mais crédulos dizem que Beowulf anuncia o futuro do cinema. Se for verdade, não augura nada de bom.

Precariedade

Leio que vão lançar 120 trabalhadores da CML no desemprego. Leio que o director da Direcção Municipal de Recursos Humanos aufere 5.500 euros mensais. Leio que foi por mando deste senhor que os precários do recibo verde vão ver os seus contratos terminados. Não se avançam razões substantivas para as escolhas. Leio que a selecção foi feita arbitrariamente; que não seguiu nenhum critério e que dentre os que vão para rua alguns mantinham laços contratuais com a Câmara há mais de dez anos.
Se há coisa que a Câmara de Lisboa tem dificuldade em disfarçar é o excesso de funcionários, assessores e outros subordinados políticos. Os ordenados destes empregados são, geralmente, escandalosos, para uma Câmara que se encontra insolvente e que tantos problemas de orçamento tem. Daí que, o mínimo que se poderia exigir, era critérios transparentes para a rescisão dos contratados a recibo verde, sem que isso implicasse desistir do processo de restruturação. Aliás, seria salutar, e benéfico para a transparência destes processos, se um inventário das necessidades em cada sector por comparação aos recursos fosse feito público, para que se perceba quem e quais as razões que levaram ao despedimento. Devendo, no entanto, preceder o despedimento colectivo.
O Estado adianta-se assim à iniciativa privada, dando exemplo de manipulação de situações de precaridade laboral.

À estalada


Comecemos pelo título do livro: Las historias negras de los próceres rojos – a comandante fosforito. O livro é sobre a deputada Varela. Azúcar não se exime de revelar pormenores privados da vida da deputada, de forma, digamos, obnóxia. O mesmo Azúcar que no seu blog chama todos os nomes feios a Chávez, na ditaturial Venezuela.
Parece óbvio que as estaladas e os pontapés da deputada Varela foram ensaiados. Nada daquilo foi espontâneo. Mas o que diz Azúcar sobre as reacções histéricas da deputada após a morte do filho e de a ter inculpado por essa mesma morte, é abaixo de cão. Para todos aqueles que se apressaram a acusar a deputada de excesso de zelo ditaturial, é bom que saibam que a senhora pediu desculpa em directo ao povo Venezuelano. Ao jornalista, diz que lhe parte as trombas quando tiver outra oportunidade (isto sou eu a especular)

Tuesday, November 20, 2007

Menezes, o esquerdista irreformável


Diz o Rui Ramos no Público sobre LFMenezes:

Menezes trabalhou com Cavaco, com Mota Pinto no Bloco Central, em 1978 esteve nas Opções Inadiáveis ao lado de Sousa Franco. Quem olha para Menezes com uma perspectiva histórica é o que mais ressalta, ele é uma figura histórica que representa uma corrente do PSD de esquerda, na linha Emídio Guerreiro, contra a linha Sá Carneiro, que era a direita. [Há assim um regresso ao] PSD que foi mais preponderante nos anos 80, o PSD do Bloco Central, que programaticamente se diz não liberal.
Não podemos esquecer que o Estado Social que temos é obra do cavaquismo, é obra da direita. O funcionalismo público é outra herança de Cavaco, a famosa reforma Ferreira Leite. Menezes é herdeiro disso.


That's all folks!

Escritores de todo o mundo – uni-vos!


The Guild's demand is a test of whether corporate media corporations are going to give writers a fair share of the wealth their work creates or continue concentrating profits in the hands of their executives. I urge the producers to work with the writers so that everyone can get back to work." Barack Obama sobre a greve dos escritores.

Há um espectro que paira sobre a América. O espectro da literacia. Os escritores de soaps, sitcoms e outros formatos para televisão entraram em greve. A reivindicação? Querem um quinhão dos lucros dos operadores da net que, dizem os escritores, recebem biliões com os dowloads. Os escritores sentem-se injustiçados, porque afinal o material que o pessoal “dowloada” lhes pertence por inerência. E digo por inerência porque é o escritor que faz aparecer a série, a soap ópera ou o programa humorístico. Quando nos postamos à frente do ecrân é fácil esquecer que houve alguém que teve que escrever aquilo. Aquilo é um enredo, com diálogos, com uma estrutura, com, afinal, princípio, meio e fim. Esquecemos isso facilmente. E mesmo as previsões mais negras sobre o sumiço da palavra escrita não costumam ter isso em conta. Porém, é provável que nunca, em tempo algum, a produção escrita fosse tão necessária, tão frenética, tão ilimitada, como actualmente. A prova é que os escritores têm capacidade reivindicativa. Imagina-se lá um Dickens entrar em greve porque não recebe royalties compatíveis com o seu valor literário? Ninguém daria um chavo por uma tal preocupação. E alguém teria ficado muito afobado pelo facto de Flaubert não conseguir vender a sua Madame Bovary? Ou por Kafka apenas ter vendido trezentos exemplares em vida?
A ars literaria entrou definitavamente no circuito da mercadoria. Não foram portanto as cassandras da palavra escrita que vindicaram o seu diagnóstico. O que previam – o desaparecimento gradual da palavra e a sua substituição pela imagem – não se verificou. Ou melhor, aconteceu apenas no plano das aparências, da imagem, como num ciclo de repetição infinita. A imagem esconde o texto a que ela se associa inexoravelmente. Talvez por isso o prognóstico tenha sido tão facilmente emitido. Mas se pensarmos nos milhares de produções cuja imagem oferece o seu contexto de visibilidade, somos forçados a concluir que há milhares de pessoas a concatenar palavras para que delas se possam derivar imagens. Enfim, alguém tem que escrever aquilo.
A qualidade, não surge como uma das razões significativas para a produção desproporcional de escrita. E não surge porque afinal não se trata de avaliar qualidade literária, mas sim capacidade de transubstanciar palavras em imagens. O mesmo é dizer, a palavra possui um ritmo diferente da imagem. Por isso também, apesar da reprodução geométrica de textos, a capacidade avaliativa, estética ou lógica, vê-se substancialmente reduzida. Em última análise, a avaliação literária deixa de ser minimamente central na espiral de produção textual. Há públicos, sem dúvida. Há mais públicos, mais diferenciados e idiossincráticos, do que alguma vez houve. Disso não nos restam muitas dúvidas. Porventura, é esta diferenciação de públicos, mas também a sua constituição em clusters, em formações minimamente consistentes em termos de escolhas e de gostos, que confere o valor monetário exponenciado que a textualidade adquiriu recentemente.
Voltemos então ao princípio. O sistema possui as seguintes coordenadas: as capacidades cognitivas dos produtores de texto são altamente valorizados, ou seja, têm procura num mercado; sem eles não se constróem imagens – ou melhor, podem estas ser estruturadas, mas serão sempre objectos para uma elite que se desfez da necessidade do enredo e do tal princípio, meio e fim. No fundo, não são objectos de consumo, i.e, não são objectos de consumismo. A estes chamam-se objectos artísticos. Onde a pressão para a textualidade entra é na criação de objectos de consumo mais disponíveis, com outra temporalidade. Paradoxo curioso: é justamente na produção erudita que a narrativa mais se torna um empecilho para a produção de sentido. Ao contrário, é a textualidade massificada (designemo-la assim, mas sem grande certezas em relação à precisão ou sequer relevância do termo) que recorre avidamente à narrativa para produzir sentido. Por conseguinte, são os especialistas em narrativa que possuem maior poder de pressão no mercado da imagem. Há desde pequenas até grandes narrativas. Um anúncio é uma pequena narrativa, uma narrativa minimal, mas narrativa que alguém tem de criar, ou seja, que alguém tem de escrever. Estes agentes há algum tempo que se encontravam cientes do valor de mercado que as suas capacidades cognitivas representam; e foram eles que de certa forma criaram esta inseparabilidade entre texto e imagem. A isso se chama publicidade.
Os escritores de narrativas mais elaboradas ainda não tinham, digamos (mas percorrendo-nos um calafrio pela espinha abaixo), ganhado consciência de classe. Foi preciso aparecer o meio através do qual os seus dotes podem assumir o formato de mercadoria para que esta aparecesse. Esse meio é a internet; a mercadoria é o dowload; a consciência dos escritores é a da exploração. Por isso estão em greve. Por isso exigem partilhar dos lucros astronómicos dos operadores da web. Por isso dizem que sem as suas palavrinhas não há imagens para ninguém. É o poder das palavras em todo o seu esplendor.

Monday, November 19, 2007

Uma conspiração de estúpidos


Fica finalmente confirmada a informação segundo a qual a invasão do Iraque foi uma manigância da little people. Bush – na pessoa do seu Conselheiro de Estado, Collin Powell –, Aznar, Blair e Barroso, foram todos enganados pela vontade cúpida de alguns burocratas das inferior ranks que desejavam determinantemente expurgar a malignidade saddamica do rico Iraque.
Demorou tempo o reconhecimento do embuste. Foi preciso lançar um país no caos e matar uns milhares de pessoas (por enquanto) para vir a público confessar que se tinha sido enganado. E é quase tocante saber da ingenuidade dos nossos líderes. Chega mesmo a ser contristante e penoso a revelação de que os nossos líderes, na sua candura, foram enganados por uns sápratas sem escrúpulos das inteligence services. Sim, porque se havia alguém que tinha interesse em derrubar Saddam e apoderar-se do Iraque eram os telefonistas, as secretárias, os cozinheiros e as empregadas da limpeza do MI5 e da CIA. Só eles poderiam congeminar semelhante golpe. Apenas eles poderiam urdir tamanha tragédia. Sim, porque se há alguém que não tem qualquer conhecimento, mão ou influência nos destinos do mundo, é Bush, Blair, Barroso e o pobre Aznar. E quem mais para além dos carteiros do serviço postal do CIS poderia ter forjado documentos? Por ordem de quem, se não do homem que guarda as casas de banho, mantendo-as em virginal asseio, do CNI?
Por isso devemos estar todos solidários com os incautos que se envolveram nesta empresa guerreira a mando dos capciosos tarimbeiros dos serviços de informação. Não, não é com críticas impúdicas que devemos enfrentar os nossos líderes; é com amor cristão, porque a primeira pedra é só para aqueles que nunca se enganaram.

Questões de gosto




Os comentários respeitantes à caricatura do princípe e de Letícia em canzana afadigada na capa do Jueves (a revista que sale a los miercules) têm-se centrado na necessidade de não ultrapassar a fronteira do mau gosto. Com efeito, a caricatura, para estes plumitivos, é aceitável só e apenas quando não afecta o bom gosto dos respectivos. Assim, a liberdade de expressão que defenderam outrora em relação a outras caricaturas vê-se confinada às fronteiras do bom gosto. E é porque é raramente referido, pelos ditos comentaristas, que na realidade se trata de definir o bom gosto, que a coisa vai passando despercebida, tornando-se mais matéria de acordo tácito sobre o qual não se discute do que interrogação pertinente sobre que raio seja o tal mau gosto. Daí que o mau gosto, nas palavras de diversos dos defensores da liberdade de expressão (desde que esta não arranhe o gosto, está claro) é algo que, supõe-se, injurie pessoas identificáveis. Por isso, MST afirma que há coisas que não podem ser toleradas. Dentre estas não se encontram caricaturas de Maomé, mas certamente lá estarão canzanas reais.
Sobre o gosto, penso que houve um tipo que despachou o assunto para os próximos 200 anos. Refiro-me a Bourdieu que escreveu mais sobre o gosto do que o papa Bento XVII sobre cristo. E uma das coisas que ele disse sobre o gosto, é que este tinha uma sociogénese, chamemos-lhe assim. Deve ser por isso que em Espanha a maioria achou de mau gosto a decisão do tribunal e em Portugal transformaram a mesma numa questão de gosto. Todavia, continua a ser o gosto, o mau gosto, a orientar este diferendo. Parece conveniente utilizar o argumento do gosto quando tão esforçados critérios foram avançados para justificar o vexame das caricaturas de Maomé. Trata-se, no fundo, de um argumento para todos os gostos, e não apenas para o mau. E no entanto duas coisas são de sobrelevar: a primeira, é que o argumento do mau gosto só colhe se for utilizado contra o estilo da revista em geral. Podemos dizer que o Jueves faz caricaturas de mau gosto; assim como é admissível dizer que as caricaturas do Vilhena são de um mau gosto atroz. Mas não é admissível dizer que a caricatura de Cavaco, da virgem ou de Soares desenhadas por Vilhena são de mau gosto. Simplesmente porque não diferem de nenhuma das outras – em termos de gosto. Por conseguinte, o que se está a dizer é que aquela pessoa em particular não deve ser caricaturada. E isto é isolar um nome numa questão geral de gosto.
Quem lê o Jueves sabe exactamente a que me refiro. O Jueves tem canzanas para todo o gosto e feitio. Tem-nas com religiosos, com putas, com políticos, com um sem nome de tipificações e esteriótipos. Quase se diria que o Jueves tipificou a canzana dentro do retrato caricatural. E no entanto, a canzana real foi alvo de perseguição jurídica e do desconforto de tantos dos nossos plumitivos. Insisto que as reacções na imprensa espanhola não tiveram nem um décimo da intensidade das que por cá se registaram. Questionemos então as razões para um tal acesso de bom gosto português. Terá sido a canzana? Duvido. Se lêem o Jueves – e eu parto do princípio que alguns deles até sentiram curiosidade suficiente para folhear a revista na retrete – sabem que por lá vegetam indecências (mas muito bem desenhadas!) de muito baixo coturno. Terá sido a família real? Mais certo. Afinal ela faz parte do quinhão de conto de fadas que a nossa imprensa – cor-de-rosa e não só – oferece periodicamente. A família real em canzana é, notoriamente, uma quebra da imaculação do conto de fadas. O que o Jueves fez foi transformar um conto de fadas num conto de fodas.

Sunday, November 18, 2007

O método

Dando um exemplo do que quis dizer com o texto anterior. Os maiores despautérios têm sido afirmados, com a convicção de sages em sabática, sobre as caricaturas de Maomé e, mais incrível, sobre a impossibilidade de compará-las com o recente julgamento contra o Jueves. Uma das coisas que se repetem, da boca pr’a fora e mais com sanha acusativa do que com vontade esclarecedora, é que “a rua árabe” quebrou os termos que normalmente regulam o derimir destas questões. O que se pretende com esta generalização é demarcar o pressuposto comportamento democrático do ocidente da barbárie islâmica. Uma descrição factual, se bem que sumária, ajuda a repor a sequência e, em última análise, a verdade dos acontecimentos. É portanto nesta tentativa de criar um enredo que nos devemos concentrar. Por aqui podemos constatar que nem a “rua árabe” constitui a primeira reacção da comunidade muçulmana, nem houve qualquer recusa de recorrer às instituições próprias para derimição de conflitos desta natureza. Quem o afirma, ou mente ou está desinformado. Alguns, porque seria demasiado ingénuo pensar que se encontravam desinformados, apenas mentem despudoradamente.
Em 30 de Setembro de 2005, o Jyllands-Posten, um jornal dinamarquês de grande tiragem, publicou um conjunto de caricaturas representanto o profeta Maomé. As caricaturas vinham acompanhadas de um pequeno texto explicativo registando que estas eram o resultado de uma proposta feita pelo jornal aos membros do Danish Newspaper Illustraters’ Union para que desenhassem Maomé conforme o viam. O texto acrescentava ainda que 12 dos 40 contactados tinham aceitado o desafio; estes por sua vez assinavam as suas caricaturas. No texto que acompanhava as caricaturas lia-se também que os muçulmanos não respeitavam a sociedade secular e ocidental e que exigiam uma posição especial para as suas crenças religiosas. A razão deste texto prende-se com os factos que antecedem o caso das caricaturas e não surge aleatoriamente das mentes dos editorialistas do jornal. Com efeito, o desafio proposto aos caricaturistas veio na sequência de uma recusa generalizada por parte destes profissionais em ilustrar um livro para crianças da autoria do escritor dinamarquês Kåre Bluitgen. Com a intenção de produzir uma biografia de maomé para crianças, o escritor tinha procurado quem ilustrasse o seu livro ficando perplexo com todas as recusas que até então tinha recebido. A morte de Theo Van Gog pairava ainda no ar e ninguém parecia querer arriscar uma tamanha façanha. Foi no decorrer das dificuldades encontradas pelo escritor de livros infantis que o Jyllands-Posten lançou o seu desafio.

No dia 9 de Outubro, líderes religiosos muçulmanos da Dinamarca mostraram a sua apreensão perante as caricaturas e pediram ao jornal que publicasse um pedido formal de desculpas. Em meados do mesmo mês, dois dos caricaturistas receberam ameaças de morte; e uma semana mais tarde, diplomatas de onze países muçulmanos queixaram-se junto do Primeiro Ministro. A resposta deste último e do seu gabinete foi que os canais apropriados para este tipo de queixa eram os tribunais, dado que o governo não devia interferir com a liberdade de imprensa. Diversas organisações muçulmanas sediadas na Dinamarca recorreram aos tribunais e apresentaram queixa contra o Jyllands-Posten; estava-se no final de Outubro. No princípio de Janeiro de 2006 as queixas foram consideradas infundadas pelo promotor público da cidade dinamarquesa de Viborg, sob o pretexto de que a publicação das caricaturas não violava quer as leis contra a discriminação racial ou religiosa quer as leis anti-blasfémia. A 10 de Janeiro, uma revista norueguesa de pendor cristão (Magazinet) republicou as imagens das caricaturas publicadas inicialmente na Dinamarca. Em paralelo, foi aventado que um grupo de imans teria ido à Arábia Saudita e ao Egipto com um conjunto de caricaturas forjado onde se veria cães a sodomizar muçulmanos em prece, e o profeta representado com um focinho de porco.
(a segunda parte segue amanhã, como se vê o método é trabalhoso)

Saturday, November 17, 2007

O advogado do diabo

Torna-se portanto imprescindível conhecer o estado do mundo. Este não nos é dado pela informação caleidoscópica veiculada pela CNN, nem pelas miríades de canais oficiais a que temos acesso diariamente. É aliás fácil confundir excesso de informação com estar informado.
Contrariamente ao que é a percepção comum, são os pequenos incidentes, as rupturas na normal paisagem quotidiana, que nos permitem entrever o que se passa do outro lado do espelho. A ruptura diplomática entre Chávez e Espanha constitui um desses momentos. Na medida em que gerou interrogações para além da cobertura institucional
O que nos disse então o caso Chávez e que nos obriga ele a repensar? Primeiro, e na sequência do post do Bruno, existem três pessoas que estavam aparentemente envolvidas no golpe de estado de 2002 – ou directa e materialmente envolvidas ou dando o seu apoio implícito. Estas três pessoas são, logicamente, aquelas que pressurosamente reconheceram o novo regime dos golpistas: Aznar, primeiro; Bush, depois; e finalmente Barroso. Os mesmos três aparecem mancomunados no ataque ao Iraque, mais um quarto que é Blair. Qualquer deles invocou falsas razões para ambos os acontecimentos. Quer para a Venezuela, onde se celebrou a propalada demissão do presidente Chávez, que nunca chegou a acontecer; como para o Iraque, cuja campanha intoxicou meio mundo com os sound bites – na sua repetição monocórdica e insistente – das Weapons of Mass Destruction que também não existiam. Qualquer um deles estava (e alguns ainda estão) legitimados pela chamada vontade popular. Mas deslegitimados para mentir, fabricar factos ou manipular informação. Donde, conclua-se, a vontade popular encontrar-se longe de ser infalível no exercício da democracia.
Aquilo que este caso mostra não é algo de muito diferente: é que o edifício institucional não é resistente contra a mentira. A distorção de factos é um vírus na arquitectura institucional. Por isso é que o confronto de opinião não é a panaceia para este estado de coisas. Se as opiniões são baseadas em falsidades, então a opinião nulifica-se pela impossibilidade de adjudicar um mínimo de verdade a cada um dos lados da discussão. É, em certa medida, o problema habermasiano: a ideia segundo a qual os argumentos são racionais e que obedecem a um pacto de
Mill, no início do ensaio On Liberty assume sensivelmente a mesma consistência lógica dos argumentos em confronto. O que não significa que a sua injunção para que pontos de vista contrários sejam considerados na apreciação de qualquer ideia, não seja uma boa rule of thumb. Recordando esse ensaio, Mill refere a existência, nas canonizações, do chamado advogado do diabo, que tinha por obrigação aduzir elementos que contrariassem a pressuposta santidade do candidato. O que ele trazia para o "julgamento" era uma carga de cepticismo que, para o regular funcionamento da instituição, podia a priori parecer destrutiva. No entanto, também aqui se pressupõe uma estrutura racional de argumentação alicerçada no pressuposto da consistência dos argumentos avançados.
O método é outro, retendo contudo este cepticismo metódico: trata-se do confronto de descrições. É verdade que nos habituámos, confortavelmente, acrescente-se, a confiar no confronto de opiniões – ou melhor, a tomá-lo pela verdade da democracia. Todavia, opinar não equivale a perceber. Pode opinar-se sem perceber nada daquilo sobre que se opina. E talvez a crise de legitimação seja antes de mais uma crise de opinação. Não que esta faceta da esfera pública não esteja suficientemente desenvolvida: opina-se por tudo e por nada; somos sistematicamente chamados a opinar nos fora, em programas, em concursos, etc, etc. Pelo contrário, é a sua hipertrofia em contraponto com a parcimónia da análise ponderada que constitui a principal obstrução ao entendimento.
Confrontar descrições exige esforço. Primeiro, porque muito do que recebemos é filtrado por essa matriz comum que institui a opinião. Uma espécie de mediana da opinião pública que certifica os limites a essa mesma opinião (a palavra correcta, embora mais arriscada, seria “impõe”). É dentro destas baias que a opinião se formata. Logo, a opinião, apesar de toda a especulação em contrário, não é livre. E não o é apenas em regimes ditos totalitários. Há momentos, ou circunstâncias, totalitárias em todas as democracias. Um regime não necessita de ser estruturalmente totalitário para observar regras de funcionamento totalitárias. É uma das mentiras a que as sociedades contemporâneas nos habituaram.
Segundo, a vantagem da descrição em relação à opinião é que ela permite confrontar factos, enquanto as opiniões contrastantes nos apresentam apenas apreciações. Convém no entanto dizer que não se trata de um exercício meramente especulativo, mas sim de uma prática à qual chamaria “política”. O contraste de descrições não é feito num plano ideal, é realizado numa prática quotidiana de recolha e cotejamento de informação. As fontes não podem ser avalizadas pela sua diversidade. Têm sempre que ser confrontadas a versão oficial – a tal opinião publicada – e a versão incómoda. Há uma maneira simples de diferenciar estas duas modalidades: a versão incómoda é aquela que dá trabalho, que requer investigação e é, na maioria das vezes, também ela fortemente descritiva. A versão oficial é quase sempre impressionista. A um tal ponto, que foi formalmente adaptada aos métodos de leitura rápida. A versão incómoda, obriga a gerir a atenção, a indexar informação, é uma informação cumulativa que só começa a fazer sentido quando construída dentro de um horizonte mais alargado – o da compreensão.
O caso Chávez é sintomático da irreconciliação da versão oficial versus a versão incómoda. E tanto mais sintomático quanto a resistência da versão oficial à análise é de tal forma impenetrável que vemos serem repetidas as mesmas associações implausíveis (Chavez mantém uma ditadura, apesar de a imprensa Venezuelana ser, na sua maioria contra ele, por exemplo), pela quase totalidade de comentadores. A capacidade de discriminar dentro do fluxo informativo impressionista torna-se, a este propósito, notoriamente reduzida. Mas não é só uma pressão incapacitante da própria modalidade da informação. Sucede também que há uma zona de não permissividade dentro do confronto de opiniões.
Sem excepção, os comentadores que não caucionaram de imediato a atitude de Juan Carlos, que guardaram algumas reservas em relação à diatribe e às suas consequências, que não seguiram acriticamente a versão oficial, ou seja, oficiosa, viram-se, contudo, obrigados a uma desaprovação implícita do comportamento de Chavez. Para que o perigo dos extremos fosse evitado, foram sugados por uma força centrípeta que os levou a largarem os seus encómios sobre o agente neutro: Zapatero e a sua prelecção sobre o respeito. Naturalmente, esta submissão à neutralidade é o que o fluxo informativo impressionista admite. Ou o marketing dos poderosos ou a neutralidade inerme: estes são os dois grandes registos da informação actual. O marketing dos poderosos, sempre foi o dispositivo para captar as massas. Agora a neutralidade inerme, nem sempre foi a forma de criar heterodoxias; se alguma coisa, a neutralidade inerme serve para anular essas mesmas heterodoxias sem as sujeitar à violência do poder. A neutralidade, aquilo que Zapatero representou neste teatro apolítico, é o porto seguro. É também aquele que abafa a contradição – e também a comoção – que estava subjacente ao embate das intervenções entre o rei e Chávez. Só se compreende o que realmente estava em jogo através do confronto destes dois pólos; a actuação de Zapatero corresponde à zona indefinida do confronto, aquela que assegura que na realidade nada se encontrava em jogo. É ela aliás que permite à opinião publicada transformar um momento político numa escaramuça diplomática. É ela que permite a apreciação sem o comprometimento. A neutralidade é, com efeito, a consequência última da lógica opinativa.

Dois pesos, uma medida - a hipocrisia!


Acrescento outro acrónimo à lista anterior, o de MST. O artigo no Expresso é uma pérola da mais refinada hipocrisia.
A histeria cá por Portugal com a família Bourbon só é comparável ao delírio com a Diana - a viva e a defunta. Não será já altura de alienarmos a soberania por nuestros hermanos?

Thursday, November 15, 2007

Could you please be silent, please?


Em 2002, o governo eleito da Venezuela foi deposto por um golpe, financiado em dólares americanos por um qualquer fundo para a promoção da democracia. Nessa altura o presidente Hugo Chávez foi obrigado a assinar a renúncia ao cargo sob ameaças à integridade física da sua família. Ainda antes dos golpistas tomarem posse já o governo Espanhol de Aznar reconhecia o novo governo de Caracas. Antes dos Estados Unidos, que foram o segundo. Coube a Portugal (o primeiro-ministro era então Durão Barroso) a vergonha de ser o terceiro. Não admira, portanto, que o Rei Juan Carlos o quisesse calado, uma vez que se estava perante uma acusação particularmente grave: a tentativa da Espanha devolver ao grande capital e ao imperialismo dos Estados Unidos os destinos políticos de uma das suas ex-colónias, através do derrube de um governo com enorme apoio das massas populares. Mas foi uma jogada de mestre, a de sua majestade. No dia seguinte, os meios de comunicação que estão nas mãos dos tubarões do capital (como o Público, ou o El Mundo) só falavam do incidente anedótico. Sobre as acusações de Chávez, nada. Que estas tenham sido feitas no seu estilo exuberante e hiperbólico, parece incomodar muito uma certa esquerda, preocupada em manter as aparências, e em respeitar as boas maneiras democráticas.
E de facto, como se sabe, sãos estas boas maneiras que convém observar nestas cimeiras, onde a regra é a busca de consensos alargados e vazios de significado, ou seja, onde toda o gesto político, como o de Chávez, será castigado. Como mostra a citação de Chávez no post do Nuno, o que este veio denunciar foi a vergonhosa cumplicidade com que gente como Aznar divide o Mundo entre os que têm e os que não têm. Por isso é que o gesto de Chávez é político, porque não só denuncia as desigualdades (o que até o Papa e Cavaco fazem), como também as explica pela exploração capitalista a que gente como Zapatero chama o mercado livre.
Daí que o mesmo Zapatero tenha tentado imediatamente exorcizar o espectro da política que Chávez fez pairar sobre aquela reunião. Como? Lembrando que Aznar tinha sido eleito pelo povo Espanhol. Um mantra que fez calar muita gente, mesmo simpatizantes de Chavez e críticos de Aznar. Nada impõe tanto respeito, por estes dias, do que a tal legitimidade democrática. No entanto, basta pensar um pouco fora dos chavões pseudo-políticos bombardeados pelos mâitres-a-(non)penser nos jornais e tv, para nos interrogarmos sobre porque é que uma acção há de ser subtraída ao julgamento apenas porque resultou de uma maioria num acto eleitoral? Na verdade, não nos passa pela cabeça dizer que o Harry Potter, que vende milhões, é melhor do que Beckett. Nem que o Rocky Martin é melhor do que Luigi Nono.