Uma discussão que anda para aí a circular, para a qual não sou tido nem achado, mas que vou, daqui do empíreo onde me encontro, dar a minha cavadela. A discussão é sobre o comum, as virtudes da democracia ou a falta dela, e novos modelos para a vida em sociedade. Em traços largos, e expansivos, é sobre o futuro da esquerda e que modelos deverá ela propor.
Porque a discussão é gigantesca, apenas me debruçarei sobre um dos lados: aquele que gostaria de denominar o anarquismo elegante. Este politiza, politiza, mas afunda-se num diletantismo vazio, terminológico, verborreico e inócuo.
A discussão sobre as fronteiras entre o público e o privado é secular. Pelo menos, é tão velha quanto as tentativas de definição da distância entre a
oikos e a
agora iniciada pelos gregos. A intersecção entre estas duas dimensões da vida em sociedade conhece actualmente, porventura, um novo estímulo. Mas esta facção do pensamento de esquerda acantona-se praticamente apenas de um lado da dicotomia: a
agora. Com efeito, o aspecto político é dissecado até à exaustão. Mas que é feito do
oikos? Os gregos tinham o problema resolvido: os escravos tratam das questões materiais; a urgência da sobrevivência não se coloca, porque o
oikos está garantido pela própria estrutura de exploração. O novo discurso parece assim acentuar a politização em detrimento da produção. Nada de mal, até aqui. Contudo, o fôlego desta visão enquadra-se mais no domínio da utopia do que do projecto social. Nem os seus proponentes negariam isso: a ideia de um projecto social está, irremediavelmente, ligada às estruturas de dominação que terão que ser varridas.
Esta versão faz justiça às suas capacidades analíticas, ou seja, é eficaz em identificar males, corrupções de ordem diversa, bloqueios da liberdade e da autonomia. É, no fundo, uma boa grelha para diagnosticar. Infelizmente, não tem nada para propor em alternativa. Ou melhor, tendo muito a dizer sobre politização, não diz nada sobre produção e tão-pouco sobre distribuição. Na sua radicalidade afunda-se em aporias sistemáticas. Por exemplo, é capaz de dizer que a divisão social do trabalho não é mais do que contingência histórica, e que assim como nem sempre existiu, poderá igualmente ser superada, esquecendo-se de demonstrar o que poderá substituir o trabalho.
Ou então, apresenta-se radicalmente contra qualquer forma de liderança, esquecendo-se de dizer o que fazer do poder. Estou ciente que estas críticas podem cair facilmente no jargão idealista. O que é isso do trabalho, separado da prática; e o que é isso do poder, sem poderosos, etc? Seja.
O principal elo entre os membros desta facção é não quererem Estado. Em última instância rejeitam qualquer forma de liderança. Na verdade, a liderança materializa a corrupção da democracia. Uma democracia só é democrática sem líderes. A bem dizer, nem é isso, é a democracia que surge como modelo opressivo e só com a sua supressão se alcança uma sociedade realmente libertária. Ora o que é válido para o Estado, especulo, será válido para uma organisação. Ou seja, a fórmula anti-autoritária ecoa as mesmas premissas para qualquer prática minimamente sistematizada. A democracia representa apenas a sistematização política de uma prática imanentemente libertária. Logo corruptora dessa mesma prática. Mas então o que fica em lugar da
agora? Democracias constituintes. O poder da multitude. E nunca chegamos a saber o que une a multitude; o que a torna coesa. Será que ela existe em permanente estado fluído? Diz Negri, não conseguindo descalçar a bota hobbesiana, que é o amor. O amor uniu os primeiros cristãos; retornará agora em forma de produção do social na sociedade de rede. Esquecem-se que o amor só uniu os primeiros cristãos até começarem a matar-se uns aos outros, a excomungarem-se, a distinguirem-se; até Niceia, finalmente.
Nas suas versões mais alegóricas, faz-se
tabula rasa da maioria das instituições, e, num ímpeto refundador, diz-se adeus ao Estado, à família, à justiça e até à...honestidade. Afigura-se-me como exagerado selar todas estas dimensões como burguesamente impróprias. Thomas Moore também elaborou uma utopia onde os oceanos que rodeavam a ilha eram limonada (ou seria laranjada? Ou mesmo cerveja?). Contudo isto aproxima-se mais da ficção científica, e ninguém teria dúvida, nem o próprio Moore, que assim seria. Esta linha de pensamento, parece-se também com uma estranha utopia, mas desta feita sem ficção. Porque não tem nada para ficcionar. Em parte porque rejeita, em essência, o próprio projecto moderno da futurologia utópica. Por outro lado, porque a sua excessiva concentração nos aspectos políticos da coesão social permite-lhe apenas reformular um ideal de política. Reparem que a discussão que travam não é menos idealista: serve-se de termos como liberdade, autonomia, comum, Estado…tudo desencarnado das suas práticas e instituições. Ou melhor, rejeitando as configurações sobre as quais estes termos foram equacionados – e, em certa medida, consubstancializados – na modernidade, tais como: democracia-parlamento-partido-estado-providência-publico-privado, e por aí fora – não tem, contudo, outras a propor. Por conseguinte, a discussão não é de diversas facções de esquerda, mas antes de diversas redefinições do espaço da política. Que a discussão se tenha acantonado à esquerda só mostra o quanto o projecto liberal – superado actualmente pelo paradigma neoliberal – evacua estas preocupações do seu horizonte.
Dizer isto não equivale a negar a importância desse mesmo espaço da política, quer para a esquerda quer para a direita. Porém, e tendo em conta que a discussão à direita ou é amarfanhada (que termo bonito!) num nacionalismo atávico, onde se procuram ressuscitar valores que, propugna-se, consistem justamente nos alicerces dessa mesma política, ou então é simplesmente esconjurada pela chancela do indivíduo e da morte da sociedade (a la Tatcher), cria-se a ilusão segundo a qual a direita passa bem sem este tipo de porfias.
Contendas, nem sempre são guerras para ou por alguma coisa. As
duas alternativas entre esquerda e esquerda aqui propostas em baixo, soam-me a exagero. Nem sequer lá vejo as duas esquerdas. Interpreto-as mais como duas versões técnicas de um desejo de esquerda. De mais esquerda. Por um lado,
o “negrismo” com que me tenho ocupado nas últimas postas. Essa tradução de vulgata de Deleuze que por esse facto possui a virtude de o tornar em certa medida
acessível. Se o projecto deste último tinha em parte os seus alicerces na criação de conceitos, é ainda uma batalha conceptual que nos oferecem deste lado da objurgatória – estamos perante um caso típico de muita
agora e pouco
oikos.
Do outro lado, também na sua tecnicidade, e dada a escassez de referências de esquerda, mais concretamente, de modelos, de interpretação da economia, não lhes resta senão escarafunchar (belo termo) no keynesianismo, na esperança de que o mal tivesse sido a guerra fria e não o falhanço do modelo keynesiano. Caso patente de muito
oikos e pouca
agora.
E no entanto, inclino-me mais para a coerência da segunda abordagem do que para o diletantismo da primeira. Explico porquê. Mesmo que o neokeynesianismo da segunda pareça às vezes de cabeça para baixo com o mundo em que vivemos, ainda vai respondendo à pergunta “o que fazer”. Pergunta que só por má-fé pode ser atribuída exclusivamente a Lenin, e apenas por que assim intitulou uma das suas obras. É que, pelo menos desde Tucídides, que se coloca a pergunta – que fazer?-, sobretudo quando se levou nos cornos. Como dizia Hobsbawm no outro dia: os vencidos são sempre os que fazem as perguntas, porque os vencedores só têm certezas (mas isto em francês, que fica ainda mais bonito).