A razão pela qual o estudo de Putnam encontra uma quantidade de escolhos encobertos pelas turbulentas águas da ideologia é simples: a comunidade, assim como Putnam a concebe, já não existe, ou encontra-se em vias de extinção. Putnam pertence à longa lista dos amigos de Toqueville e nessa inspirada relação encontra o seu zénit académico, o ápice da comoção social e da sua análise crítica.
Nesta confraria, há muita gente preocupada com o facto de os velhos hábitos se estarem a desvanecer. A este pânico pelo gradual esmaecimento da tradição podemos apelidar de atavismo. Mas talvez seja exagerado lançar tão forte libelo ao que, afinal, até parece ter boas intenções, ao pretender recuperar um qualquer mundo perdido onde a confiança mútua engendrasse comunidades e onde a proximidade (a velha
proxemia) fosse o molde em que os humanos se forjassem enquanto animais gregários. Daí que analisar idas à igreja, chás de caridade, clubes de gamão e de bisca lambida, parece devedor de quadros de antanho, vírus toqueviliano de fácil impregnação, mas de muito difícil remoção.
No tempo de Toqueville, uma comunidade era algo tangível, e que tanto podia assomar por ocasião de um funeral à boa maneira puritana – com discursos e belas e emocionadas palavras – como em torno de um cadafalso, a esquartejar bruxas ou mulheres perdidas – que as hay a gente já sabia – como nos contam as aventuras da scarlet letter, eventualmente o romance anti-toqueviliano por excelência (pura especulação). O ponto é que este sentir comunitário enquanto fenómeno agregado de viveres antigos existe apenas na imaginação passadista do sonho americano.
Onde é que Putnam erra, mas erra estrondosamente? Hoje em dia, é mais fácil encontrar comunidades virtuais, através das sinuosas vias da internet, comunidades para todos os gostos, desde desviantes sexuais, admiradores da mesma raça de cães, nudistas, culturistas, até grupúsculos que se organizam em torno dos mesmos livros e que surgem tão espontaneamente quanto a amazon.com os cruza recorrendo às suas potentes bases de dados. Pegando neste último exemplo: enquanto cliente da amazon.com, ao comprarmos um livro, somos imediatamente categorizados num cluster que possui os mesmos gostos. Esta agregação é eventualmente mais potente do que qualquer grande sondagem, e surge com a espontaneadade de uma escolha consumista. Este simples acto, atira-nos inadvertidamente, sem que o quiséssemos, ou sem que para isso necessitássemos de uma qualquer declaração de intenções – para além da compra – para uma comunidade, para um círculo que partilha as mesmas escolhas, de tal forma que a amazon.com acerta com uma precisão quase tenebrosa. Esta não é a idade das trevas para a comunidade. Esta é, antes de mais, a idade da profusão virtualmente infindável da comunidade – pequenas e mutáveis comunidades; comunidades intangíveis, comunidades que se formam e dissolvem na mesma semana.
Os indivíduos não vão à igreja? Não se encontram no largo do coreto para cavaquear? Não se mobilizam nas decisões da coisa pública? Pois não, e não é por isso que eles deixam de se ligar, melhor dizer conectar, em míriades de contactos, alguns duradoiros, outros fugazes, mas que se multiplicam em redes e conexões. Na época do virtual a comunidade não pode corresponder à middle town. E se temos mais contacto, se partilhamos mais a nossa intimidade com alguém que está no Japão do que com o nosso vizinho, é porque as coisas que podemos partilhar com o nosso vizinho são na verdade extremamente limitadas. Conviria por conseguinte interrogarmo-nos por que razão nos é menos penoso partilhar certas coisas com alguém que se encontra a milhares de quilómetros de distância do que com a velha que vive na porta ao lado. Isto coloca um hiato incolmatável entre a confiança e a proximidade física e espacial.
Comunidade sem corpo versus corpo comunitário.