Friday, September 28, 2007

O Tuguismo

O Rui Tavares, de quem eu gosto de ler os artigos, termina um dos mais recentes que versa sobre a imigração com um sinistro “sentir-se português”. Ressoaram em mim, e de imediato, as palavras de Straw e o seu projecto para implementar a “Britishness”. Por que razão quereria um imigrante sentir-se português e, pior, por que razão seria isso um prémio no final de uma carreira de esforço e, por vezes, de perigos, até chegar a residir num novo país? Não se percebe. Mas o espírito da nacionalidade, esse mesmo que abunda em todos nós, assim como o fantasma do comunismo, emerge a horas estranhas e faz do mais esclarecido um perigoso chauvinista. Nem é espantoso que o Rui Tavares o diga. Tornou-se lugar-comum enveredar por este raciocínio que parece tanto mais evidente quanto a sua conclusão necessária. Nem por um só momento, um nacional da nação (pleonástico que o seja) põe em causa que obter esse prémio de sentir-se nacional como ele, é a maior honra que alguém pode almejar. E no entanto, aposto que o Rtavares teria uma dificuldade do outro mundo para definir, ou sequer dizer, o que é esse sentimento de ser portugês.
Sente-se mais português (holandês, inglês, etc) ou ucraniano (indonésio, paquistanês, etc) ? Pergunta capciosa tantas vezes feita em inquéritos sérios e noutros mais sensacionalistas, mas que se se pensar um pouco nela, não significa rigorosamente nada. E mais, não avalia rigorosamente nada. Exceptuando a mitificação de que existe uma resposta concreta e imediata para uma tal questão. Alguém a tem para o ser português?

Questões de língua


Jack Straw quer implementar um programa para a promoção da “Inglecidade”, qualquer coisa que anda pelo orgulho de sentir-se inglês havendo para isso que arranjar algumas desculpas convincentes. O jornalista do Guardian tem pelo menos o cuidado de não ser muito peremptório sobre o elenco dos valores que poderiam constituir a “Britishness”; por isso escreve “The supposedly British values of tolerance, decency and respect for the law and human rights are no longer exclusive to these islands.” Dando de barato que seria legítimo perguntar se estes valores alguma vez foram “exclusivos” daquelas ilhas, a afirmação possui pelo menos o mérito de começar por um cauteloso “supostamente”. Desconhecemos se estes valores, supostamente parte da tradição das ilhas, se estendem igualmente a outras ilhas, como sejam as Malvinas – onde a tradição da tolerância e dos direitos humanos foi aplicada com brio e circunstância -, ou as mencionadas no post abaixo pelo Bruno, de seu nome Turk & Caicos, onde parece que a decência anda à saldo.
Mas não sejamos demasiado picuinhas, porque afinal o jornalista acrescenta que esta coisa de se sentir britânico não se limita à geografia “ilheia”, e que em verdade extravasa para a geografia alheia. Donde, “my fantasy is that I am a citizen of a united Europe and therefore share in the cultural riches and economic power of an entire continent rather than just Britain's”. E bem razão tem ele em afirmar que é a sua fantasia. Porque de riquezas culturais, rejeitou a suposta “Britishness” a carta dos direitos humanos referida no novo tratado, aquele que recicla a velha constituição europeia. Pobre da tolerância e dos direitos humanos que parecem andar a perder prestígio nas novas definições de Britishness.
Numa coisa têm os britânicos razão: a Europa partilha da cultura inglesa a um ponto em que se encontra totalmente nela emersa. Não é que os ingleses sintam necessidade de se identificarem com a Europa – porque não sentem. Mais simplesmente a Europa não tem alternativa que não seja a de se identificar com a velha Albion. E isto é assim porque um dos principais sistemas de identificação simbólica se encontra refém da cultura de sua majestade: a língua. Bem podem os ingleses passearem-se por essa Europa fora, porque ela está preparada para os receber segundo a sua matriz hegemónica. Têm por isso um elemento imediatamente a seu favor: ninguém manipula melhor a língua deles do que eles próprios. E se isto parece demasiada carolice, atente-se no facto de em qualquer encontro, conferência, seminário, apresentação, efeméride de nível internacional, todos parecerem atrasados mentais, excepto os próprios. Nestes próprios incluem-se, para ser mais preciso, os que dominam o inglês, o que não coincide exactamente com os habitantes da ilha. Mas para efeitos de argumento, é notório que a Europa é um quintal inglês de língua franca; que o esperanto europeu que uniria os europeus com que Jean Monnet sonhava, já se materializou na generalização do inglês como língua oficial da UE. Um tal facto oferece uma capacidade aos ingleses que não é de negligenciar. Os franceses bem lutam para que a sua língua possua igual reconhecimento. Mas estas contendas nunca se restringem a problemas de fonética ou de semântica. Prendem-se antes a questões de geografia política; e, actualmente, quem domina são os anglófilos. Que isso lhes outorga uma vantagem comparativa em todos os mercados – político, económico, científico – está patente em cada forum no qual se encontrem diversas nacionalidades.

Há coisas fantásticas, não há?


O Sr. Gordon Brown parece que não se quer sentar à mesma mesa do Sr. Mugabe em Lisboa. Diz que é por causa dos atropelos aos direitos humanos no Zimbabwe. Como argumentou o Daniel Oliveira, parece que ele afinal não é assim tão comichoso. Se calhar tem a ver com o facto de as vítimas de Mugabe serem brancas e descendentes de ingleses. Nada de novo. O luto e a comoção públicas não são iguais para todos. Na economia política da vitimização, há defitivamente seres humanos que valem mais do que outros. Os imigrantes pobres do terceiro mundo, como sabemos, não estão muito bem contado no mercado de velores mediático.
Veja-se o silêncio que cobriu o seguinte caso. Na noite de 3 para 4 de Maio deste ano, um barco, levando cerca de 160 pessoas, partiu da cidade Haitiana de Cap-Haïtien para as ilhas de Turks e Caicos (T & C), colónias inglesas (ou melhor, desde 1981, territórios ultramarinos - o que é que isto me faz lembrar?). Fugiam de um país miserável para tentarem a sua sorte numa ilha famosa pelo turismo de luxo e com estatuto de off-shore, onde a maior parte do trabalho desqualificado é feito por haitianos. Por volta das quatro da manhã de 4 de Maio, uma lancha da polícia de T & C interceptou o barco haitiano. De acordo com os sobreviventes o barco foi abalroado pela lancha da polícia, tendo-se virado. Alguns sobreviventes dizem que a polícia os deixou à espera 15 minutos na água infestada de tubarões. Outros que a polícia lhes bateu com bastões quando tentavam subir a bordo da lancha. Pelo menos 61 haitianos morreram.
Os sobreviventes, depois do resgate, foram colocados durante uma semana num campo de detenção, após o que foram transportados de volta para o Haiti. Os corpos dos mortos foram enviados dez dias depois e colocados numa vala comum.

Thursday, September 27, 2007

Pedido de esclarecimento

Eles são todos pró-americanos, defensores empedernidos do capital, não perdem opinião para vomitarem o seu ódio ao socialismo, que eles entendem como qualquer forma de intervenção do estado na economia. Não podiam, portanto, estar mais alinhados com o status quo.
Então por que raio é que auto-intitulam blasfemos, insurgentes, contra-a-corrente?

Santana Lopes versus José Mourinho versus SIC Notícias

Santana Lopes versus José Mourinho

O título de Daniel Oliveira de um seu post sobre a atitude de Santana Lopes é daqueles que capta num relance toda uma cultura. E diga-se mais: é brilhante.
No entanto, Santana caiu mais uma vez na esparrela da comunicação social, que longe de se sentir vexada com tal chapada de luva branca, facilmente recicla o acontecimento vendendo-o como notícia apetecível. Poder-se-ia retirar uma lição ética deste happening, mas tal não acontece porque, paradoxalmente, ele serve à estação de televisão, e é por isso que ela própria tanto alarde dele faz.
Se isto maculasse a SIC, já muitas outras coisas o tinham feito. Lembro por exemplo Alberto Pimenta farto daquela merda a passar um responso à SIC que não estava para fazer fretes políticos ao Sr. Balsemão. Mudou algo no comportamento da SIC e dos seus jornalistas? Nada.
O mesmo se prevê que aconteça com Santana Lopes. Engolisse em seco ou batesse com a porta (metaforicamente) como aconteceu, os novos técnicos da comunicação possuem elixires mágicos que tudo curam. E o jornalista? Incólume, também. Estava apenas a fazer o seu trabalho, dirá; e que ninguém assuma que Santana é mais importante do que ver Mourinho a sair de um carro. Mourinho, pelo menos, seria com certeza o primeiro a concordar. Mas este comportamento não é avulso, porque nestas coisas da comunicação há sempre, como eles lhe chamam, um agenda setting. Podia ser traduzido como a sacanice do noticiário. Por exemplo, mal se vê que algum jornalista interrompesse uma entrevista com Mourinho para mostrar Santana Lopes a sair de um carro. Há prioridades jornalísticas que se pautam pelo mais justo interesse nacional.
Moral da história: o episódio da cadeira e fuga de Santana vai ser arquivado junto do episódio da incubadora. Santana vagueia num espaço nevoento, no qual perdeu o respeito da maioria daqueles que anteriormente o adulavam, e não consegue sequer recuperar a verve assassina que o caracterizou durante algum tempo (sobretudo no que toca a assassinar compositores). Lembram-se que os aduladores de Santana dele diziam que era um “animal político”? Parece que agora passou a animal da política, cão sarnento que não concita respeito nem de uma jornalista. Santana tentou bramir, mas sabemos que a cão doente toda a gente atira pedras.

Azneira


As informações vindas recentemente a lume sobre as conversações entre Aznar e Bush, levam-nos a perguntar se Durão Barroso não devia ser confrontado com estas mesmas revelações e obrigado a esclarecer a posição que adoptou durante toda esta mistificação. O espaço reservado nos jornais portugueses (o DN traz uma referência ridícula ao sucedido) àquilo que em Espanha surge como notícia bombástica, é ilustrativo do sentimento de mal estar e de comprometimento dos vários directores, editores, etc, que investiram muito seriamente em propagandear a guerra e em convencer a opinião pública, não apenas da sua necessidade, como pior, da sua justeza.
Ora sabemos agora que o carnaval da segunda resolução das Nações Unidas não foi mais do que uma encenação cínica e imoral para embalar a opinião pública num sono reconfortante e sem sobressaltos. O facto de a guerra já estar decidida por Bush, enquanto os três líderes se envolviam na pantomima da luta pela paz e em desacreditar sistematicamente as Nações Unidas, obriga a reconhecer que o que se encobria por detrás do humanitarismo das intenções era antes um projecto de guerra pela guerra. Nada é mais significativo disso mesmo do que a frase de Aznar “Lo que estamos haciendo es un cambio muy profundo para España y para los españoles. Estamos cambiando la política que el país había seguido en los últimos 200 años” que deixa transparecer laivos de megalomania política assim como desejos imperialistas de antanho. A megalomania de Aznar levou a um atentado bombista em Madrid; e só um, porque Zapatero deu ordem de retirada das tropas espanholas do atoleiro iraquiano.
A transcrição das actas do encontro de Aznar com Bush evidenciam também que os Estados Unidos não estavam minimanente interessados nas armas de destruição massiva. Após o relatório Blix e das declarações de Al Badarei – declarações que confirmavam um recuo do Iraque e a sua intenção de seguir o programa delineado pelas Nações Unidas -, Bush e a sua conselheira da defesa Reice empregam todos os esforços para precipitarem a guerra. Aznar teve o papel de tarefeiro ao tentar convencer o maior número de países a darem a caução moral ao ataque ao Iraque, como descreve o El País. Só que as suas intenções foram goradas e, para além da resistência da Rússia, da França e da China, o apoio foi insignificante. Porquê? Porque as Nações Unidas acreditavam que um compromisso com o Iraque estava para breve. Bush, vendo que as suas manipulações em relação a armas secretas e as apresentações de Colin Powell nas Nações Unidas, não estavam a resultar, avançou com o plano Açores.
Agora o que parece ainda mais interessante é onde entra Durão Barroso nisto tudo. O El País não lhe faz referência; talvez porque Durão seja o Presidente da Comissão, talvez por efeito da proverbial indiferença dos espanhóis em relação aos portugueses. Todavia, seria de extrema importância saber qual o papel de Barroso nesta encenação criminosa que se prolonga até hoje. Existirão actas secretas dos encontros de Barroso com Bush, ou com Aznar, onde as mesmas intenções sejam partilhadas? Era bom que o Presidente da Comissão esclarecesse estes pontos obscuros, sob pena de ver a sua credibilidade posta em causa.
Actualmente, à falta da Espanha, entra a França em cena. O processo parece obedecer à mesma lógica manipulatória, desta feita com conluios entre Bush e Sarkozy para atacar o Irão. Não me admirava que Sarkozy partilhasse dos mesmos sonhos de relançamento do projecto imperialista francês que Aznar augurava para a Espanha e Blair para a Inglaterra. Cabe aos europeus mostrarem que não querem repetir os mesmo erros e que não se deixam convencer pelas falsas declarações de defesas da democracia e dos direitos humanos dos seus líderes muito pouco democráticos ou inclinados ao respeito dos mesmos.

A lupa jornalística


A filha do casal McCann reapareceu em Marrocos. Se não fosse tão trágico, teria o seu quê de humorístico. Mas é trágico, e por isso não dá vontade de rir. A fotografia acima, como não é difícil de constatar, não deixa margem para dúvidas de que se trata da menina inglesa. Uma Marroquina loira não é natural; ainda para mais quando vai esta escanchada nas costas de uma indígena. Aliás, a geografia dos avistamentos de Maddie é reveladora da geografia mental racializante. As hipóteses surgidas apontam as mais das vezes para o Norte de África. Embora não seja completamente estapafúrdio que isso pudesse acontecer, a eliminação de todas as alternativas mais ocidentais diz muito da geografia racializante que aqui parece ser operativa. Ninguém viu Maddie na Suécia, nem tão-pouco na Estónia. Claro que a probabilidade de dar por ela no meio de populações caucasianas maioritariamente loiras é baixíssima; mas também não deixa de ser verdade que a maioria das denúncias do paradeiro de Maddie obedecem a uma lógica do contraste: preto com loiro, moreno com loiro – forte probabilidade de ser a menina raptada.
Não negligenciemos que a recompensa de 3,5 milhões de Euros a quem der notícias sobre o paradeiro da menina constitui razão suficientemente aliciante para que surjam Maddies de todo o lado. Mas ainda assim, e por maioria de razão, não seria espantoso se as começassem a ver no Norte da Europa, na Rússia ou mesmo na Gronelândia. Todavia, ela só está na África negra, no norte árabe, no obscuro Oriente. Aparece às costas de uma marroquina numa fotografia de turista, e o legítimo pai teve que asseverar às autoridades de que era mesmo a filha dele; algo de que nem ele próprio pode estar certo, caso tivesse a legítima esposa andado a rebolar no feno (ou nas plantações de ache) em Chifchaue.
Curioso, curioso, é o facto de ter sido desde o recrutamento para a causa McCann do antigo responsável pela comunicação do governo de Gordon Brown que começaram a ressurgir fotografias com supostas Maddies. Esta era a óbvia resposta depois de o Tal & Qual ter revelado ao mundo que a mãe de Maddie andava a dar baldas na universidade. De duas uma, ou o Tal & Qual segue os preceitos morais do cardeal Martino, para quem, mulher que dá baldas na universidade ou acaba em puta ou em infanticida; ou então anda alguém apostado em fazer a cama a Cathy McCann. E desta vez nem sequer é para ela se rebolar.

Volta Baptista, estás perdoado!

Já aqui me insurgi por diversas vezes contra os textos de Baptista Bastos no DN. Mas o texto de ontem no DN é uma pérola, e absolve o plumitivo de qualquer contrariedade provocada anteriormente.

Friday, September 21, 2007

Mourinho


Vai-se embora do Chelsea com um negócio chorudo. Abramovich não o quer ver mais. Está farto da última sequência de falhanços cuja gota de água foi o Rosenborg. Diz-se que as coisas já tinham azedado há algum tempo entre Mourinho e o milionário. Nem a autoconfiança transbordante de Mourinho, nem o seu carisma, fizeram, no entanto, vacilar Abramovich. Terá sido a contratação de Shevechenko contra a vontade de Mourinho? Terá sido a colecção de lesões que levava o plantel a um desfalque físico pouco usual? Terá sido o terrier de Mourinho que irritava Abramovich, que um dia lhe teria dito: vê se arranjas um cão de homem, em vez desse maricas desse pincher! Podem ser estas e muitas outras razões. O que se sabe é que Mourinho pediu 37 milhões de euros de indemnização. Abramovich disse que sim senhora, desde que ele se comprometesse a não arranjar outro emprego até ao final do contrato, ou seja 2010. E fez uma contra-proposta: Mourinho não chateava mais com a indemnização e ele, Abramovich, continuava a pagar-lhe os 9,3 milhões de euros anuais até que o primeiro se aborrecesse e resolvesse ir trabalhar.
Só que Mourinho disse enfaticamente que queria trabalhar. Como não há-de ser na FNAC (a propósito disseram-me que um empregado da FNAC, um atendedor, ganha 600 euros por mês brutos, e não lhe pagam horas extraordinárias. No entanto, a FNAC Portugal encaixou 35 milhões de lucro. Para onde foram?), mas dizia, como Mourinho vai estar a leilão para ser recebido de braços abertos por algum dos grandes, prevejo que a sabática não vai ser de grande duração. Entre estes contam-se hipotéticos interessados como o Totenham (parece pequeno demais para um homem como Mourinho!) e, talvez, o Barcelona; mas é sabido que ele por lá, deixou de estar em estado de graça. Shuster no Real Madrid, mostra-se agastado com os Merengues; diz que é pressão a mais. Seria desafio à altura de um Mourinho comandar a equipa de Raul e VanNilstelroi. Não se imagina que tipo de cachet Mourinho vai pedir, mas nunca pode ser inferior ao que recebeu no Chelsea. Por isso Abramovich está pouco pelos ajustes em ver Mourinho partir com 37 milhões de euros, simultaneamente, e mais que provável, receber uma quantia equivalente do próximo clube que o contratar. Mourinho vai para a quinta descansar e estar com a família. Tem dinheiro para não mexer mais um dedo, mas prefere trabalhar.

Thursday, September 20, 2007

a vol d'oiseau

Os ataques desmedidos e, muitas vezes, ininteligíveis, que os novos filósofos de esquerda radical movem contra o Estado têm causado um vazio substantivo na capacidade de acção, e de pensar essa acção, por parte da esquerda. Enquanto Naomi Klein, sem grandes e aparatosas conjecturas filosóficas, dá os exemplos dos regimes da América Latina onde uma estatização progressiva é evidente quer nas políticas de Morales quer de Chavez (mas, mais modestamente, também de Lula); os filósofos da moda, onde se contam Badiou e Zizek, disferem impiedosas críticas contra o Estado, seja lá ele qual for. Está bem de ver que um dos lados tem a consciência dos problemas reais e de como podem estes ser superados no imediato, enquanto o outro apenas se rebola na sua própria eloquência pedindo ao espelho que repita incessantemente que não existe mais ninguém tão perspicaz quanto ele próprio.

Esta é a diferença entre estar com o povo e planar sobre o povo.

Animatógrafo do Rossio



O que têm as feministas a dizer sobre a pornografia? Aparentemente muito e pouco consistente. Temos a chamada “segunda vaga” do feminismo, instalada nos anos 70 e 80, com uma versão bastante poderosa e inflexível sobre a pornografia: a representação da sujeição da mulher no seu paroxismo, assim como esta é pretendida pela sociedade falocêntrica. Nesta perspectiva, a pornografia reproduz os padrões falocênctricos de subordinação da mulher à vontade do homem, quer através da relegação do corpo da mulher para o lugar do objecto quer do mito da hiperpotência e infalibilidade masculina. Mais prosaicamente, para a segunda vaga, a pornografia violava o corpo da mulher. À partida, muitos de nós, couraçados em armaduras morais, nem teríamos nada a contrapor; exceptuando o facto de a contraposição emergir do próprio seio da ideologia feminista.
Com efeito, a chamada “terceira vaga” do feminismo deixou de arvorar uma posição absolutamente inflexível em relação à pornografia. Para as novas feministas, não é a pornografia em si que é má; é um dado tipo de pornografia. Quando esta é feita tendo em conta o prazer feminino, pode perfeitamente enquadrar-se nas múltiplas possibilidades estéticas de expressar esse mesmo prazer. A linguagem do prazer assume aqui uma preponderância que não possuia para as feministas da “segunda vaga”. Para estas a contenda estava instalada na reivindicação de um lugar estrutural igualitário; lugar esse que promovesse as mulheres enquanto grupo, e não apenas individualmente. Esta promoção passava, no entanto, pela igualdade, não apenas estatutária, mas também “in natura”. Isto parece estranho, porque não se reivindicava uma natureza fundamentalmente igual, mas pelo contrário a revelação de que era esta informada pela cultura; ou seja, que aquilo que passava por ser natural era afinal de contas produto da acção cultural. Mas como esta acção não acontece num vácuo, a análise da “segunda vaga” das feministas desembocava na centralidade do poder relativamente à naturalização da cultura. A terceira vaga – descontando as tonalidade toffelianas da expressão – revela-se menos consistente, menos homogénea e menos defensiva – o mesmo é dizer, menos combativa. E a pornografia enquanto construção cultural interpeladora das retóricas das novas feministas reveste-se de um interesse acrescido. Primeiro o desvio pelo “Girl Power” e o que ele contém de mistificação da mulher juvenil. Se a imagética dos atributos sexuais, enquanto manifestação de uma sexualidade enviesada segundo os padrões masculinos, constituiam o lado obsceno da exploração do corpo da mulher, o “Girl Power” vem dizer que está correcto ser sedutora, bela, eternamente jovem, mas também irreverente, de uma irreverência estruturante do próprio universo feminino enquanto afirmação de uma sexualidade libertada que não se verga às regras impostas pelo falo. Por outras palavras, o “Girl Power” incita à substituição do moralismo opressivo das feministas de “segunda vaga” pela afirmação do universo “girlie”. O universo girlie é heteróclito, naquilo que mescla de adereços juvenis, recolhidos no mundo das barbies dolls, com uma postura sexual agressiva. Mas também é facto que reassume a imagem da mulher enquanto objecto. Aliás, a mescla entre os aspectos juvenis e a sexualidade agressiva tem sido de tal forma marquetizada ao ponto de já não restar qualquer força emancipatória em seja qual for a sua mensagem. A ilustração mais perfeita do “girlie” foi a banda Spice Girls. As Spices estavam entre a contra-revolução feminista e a pura marquetização do corpo feminino. Foi justamente a apropriação do mote “girl power” pelas Spice, vindo de paragens mais rudes onde a expressão ainda continha o seu mobil revolucionário, que o tornou uma imagem de marca; uma acessório precioso com capitalização no mercado, quer feminista quer no mais vasto espaço de diversificação consumista. O “girl power” extraia o potencial emancipatório dos seus primórdios substituindo por um histerismo carnavalesco da mulher enquanto animal sexual. E só isso. As Spice formulam-se enquanto entidades sexuais, cujo poder se concentra nas suas capacidades eróticas – o discurso da sedução em que o prazer é sumamente carnal. Por isso se assistiu ao acompanhar desta nova projecção-distorção do universo feminino por um gradual desinvestimento da sua intelectualização. Se há algo patente nas manifestações “girl power” é o seu desprezo pelo discurso intelectual e pelas formulações teóricas. Esta desintelectualização é sustentada por uma obsessão voyerista onde as palavras são sistematicamente substituídas por estímulos: gráficos, sonoros, etc. O recurso ao puro estímulo, sem mediação, é um dos artifícios da pornografia. É o que a separa do erotismo. A pornografia não é erótica, nem tão-pouco pretende ser, como certas feministas da terceira vaga auguram, ao proporem uma pornografia que dê atenção ao universo feminino. A inversão consistiria na apropriação da pornografia enquante representação do prazer, da fantasia e, em certa medida, de actividades desviantes, mas desta feita sem cair no falocentrismo do universo heterossexual. Com efeito, é dos lados do movimento GLB, sobretudo das lésbicas, que surgem as propostas para este reinvestimento erótico da pornografia. Fica claro que as feministas da segunda vaga não previram que a pornografia pudesse não ser apenas considerada enquanto representação da dominação heterossexual, mas que fosse recriada por outras orientações sexuais, onde o binómio masculino-feminino não é tão evidente (embora possa igualmente reproduzir as suas características na assunção desses mesmo papéis pelos seus participantes). As lésbicas reivindicam a representação do prazer e da fantasia para além dos padrões da sociedade patriarcal. Donde, a crítica das feministas de segunda vaga ser fundamentalmente proveniente de um espaço heterossexual. Se as lésbicas opõem a esta consagração da heterossexualidade e à crítica formulada pelas feministas dos anos 80, uma reavaliação do prazer e da representação dos corpos, para além do viés – quer crítico, quer apologético – da sociedade patriarcal, significa que, em certa medida, a pornografia deixa de ser material alienante para passar a ser o próprio locus da interpelação ao feminismo mais ortodoxo. Neste caso, a pornografia é o meio da expressão da sexualidade feminina par excelence. E aqui cabem os relatos intímos, em discurso directo, que nos são oferecidos pelas revistas ditas “para mulheres”. Estes não são imediatamente pornográficos, ou não o são no sentido da pornografia tradicional, aquela que servia de alvo às críticas das feministas ortodoxas. Mas não deixam de registar paralelos assinaláveis. Considerando que o discurso da sexualidade enquanto discurso da prática sexual se revela como o dispositivo necessário da expressão da feminilidade, os relatos de pendor intimista, assim como os testes de avaliação dessa mesma performatividade, tornaram-se assimptóticos da pornografia. Torna-se portanto concebível um feminismo ancorado na representação pornográfica do prazer, enquanto especificidade do feminino (isto não termina).

Coetzee

Há poucos escritores que conseguem unir a contenção estilística com o lirismo da expressão. Coetzee é um deles.
Coetzee é também um escritor de um mundo que não é romanceado; um mundo onde as pessoas possuem sempre mais facetas do que aquelas que a mera tipificação nos poderia oferecer. E assim é Coetzee o mestre dos dilemas, sem por isso passar pela moral. Nesta perspectiva, os dilemas de Coetzee não intersectam questões morais, mas também não são amorais. Simplesmente os binómios e dicotomias próprias do moralismo mais epidérmico não funcionam nas personagens de Coetzee. Será um mundo pós-moral, onde nem religião, nem identidade, nem maniqueísmo têm o seu lugar? Julgo que não, mas é um mundo onde os dilemas existem no mesmo plano das práticas do quotidiano, não são metafísicos, nem pretendem a prova do esforço metafísico.

Monday, September 17, 2007

Deus, pátria e família

Pelo arrastão, tomo conhecimento das declarações de MJNogueira Pinto na sua entrevista ao Expresso. Mais do que a estratégia política que possa estra subjacente aos seus comentários, considero preocupante que os possa fazer sem titubear. Sinal de que algo de muito fundamental mudou em Portugal nos últimos anos.
Para os saudosistas, fica aqui um excerto do "Livro da Primeira Classe" do Estado Novo.
«Os pobrezinhos»
- Batem à porta. Meu filho, vai ver quem é.
- É um pobre, minha mãe, um pobrezinho a pedir esmola.
A mãe veio logo com um prato de sopa e deu-o ao pobre. Depois, voltou para a sala de costura e deixou o filho a fazer companhia ao mendigo. Este, quando acabou de comer, disse por despedida:
- Deus faça bem a quem bem faz!
O menino ficou comovido: - Que pena tive do pobrezinho!
- E é caso para isso, respondeu a mãe. Os pobres são nossos irmãos. Devemos fazer-lhes todo o bem que pudermos. Jesus ensinou que até um copo de água, dado aos pobres por caridade, terá grande prémio no céu.»
p.s. quem diz Nogueira Pinto, diz Bagão Felix, Ribeiro e Castro, Portas...

Os netos de Hayek


O novo livro de Naomi Klein tem suscitado reacções díspares na blogosfera. Escusado será dizer que se trata exclusivamente da blogosfera de esquerda, e que a direita, mais entretida em servir “deus, pátria e família” e a correr com chineses da Baixa, nem lhe presta a mínima atenção. Mas mesmo na esquerda ele tem gerado alguma polémica. Há uma esquerda que não está convencida, e que considera que se trata de mais um intelectual a falar para a torre de marfim que nunca chegará a implicar multidões, multitudes, massas, no seu programa/projecto . Outros consideram a tese bastante credível, representando esta uma leitura fiel dos desenvolvimentos recentes do capitalismo.
Gosto da tese de Klein, embora não tenha lido o livro, e gosto da maneira como ela se dirige ao seu público. Quanto à segunda, embora a tese possa não ser directamente comunicável às “massas”, julgo que o esforço da autora em comunicá-la da maneira mais acessível é absolutamente louvável; não está com certeza a falar para a torre de marfim, nem nos surge como mais um intelectual visionário, como se diz no bitoque. Todavia, não rejeito a hipótese de a “doutrina do choque” não ser propriamente uma novidade. Nesta perspectiva, o mais entusiasmante, em minha opinião, nas diversas intervenções em torno dos sistemáticos “choques” do capitalismo actual, é a análise do delinear das estratégias de “choque” pelos think tanks de direita. Aqui é que o monstro surge nos seus contornos mais sinistros. E não se trata de uma teoria da conspiração em larga escala; trata-se apenas de perceber, e reconhecer, que existem grupos que de facto pensam sobre as coisas, de modo a fazê-las acontecer. Importa por conseguinte, não só saber onde encontrá-los e aos seus membros, como possuir estratégias de desmontagem dos seus argumentos.
Por exemplo, em Portugal, país que ainda se encontra nos primórdios da influência dos think tanks de direita, as suas manifestações começam, contudo, a ser visíveis. Nesta perspectiva, não é apenas que alguns indivíduos tenham opiniões de direita, nem sequer que preparem encontros secretos, à maneira das sociedades de iniciados, para planearem a dominação do mundo. Estes grupos não são secretos, não obstante as suas verdadeiras orientações e intenções o serem. Aliás, vivem justamente da publicidade e da maior ou menor visibilidade que conseguem angariar. Mas o que os diferencia de múltiplas tentativas desgarradas que encontram os seus pontos comuns na partilha de ideias, é o seu carácter preparatório, ou seja, a sua vertente propedêutica, em jeito de escolas ideológicas onde se prepara uma elite formatada segundo um dado ideário. Talvez quanto a este aspecto não difiram muito dos processos de arregimentação e endoutrinação partidárias. Possuem, contudo, uma diferença fundamental, que é própria dos think tanks: estão geralmente ancorados em universidades ou em instituições de pesquisa e investigação. Regressando a Portugal, há um tink thank em formação que é necessário ter em atenção e que, sugiro, irá ter influência durável no Portugal político, e não só, dos tempos vindouros. Refiro-me à Universidade Católica e em particular ao seu curso de ciência política. Quem fizer o exercício, aperceber-se-á, de que muitos dos que vêm grangeando notoriedade no espaço público enquanto porta-vozes da nova direita, tiveram o seu berço na Católica, ou no Instituto de Estudos Políticos, ou em cursos que este último de alguma forma intersecta. Dois nomes aparecem com uma cadência quase inevitável, cujo eco das suas ideias e intervenções pode facilmente ser detectado nas vozes da nova direita portuguesa; são eles, João Carlos Espada e José Manuel Fernandes. Registe-se que, a par destes nomes surgem muitos outros, porventura mais notáveis, mas que não possuem o mesmo carácter interventivo destes dois. Em conclusão, a Universidade Católica Portuguesa alberga, portanto, o maior e talvez mais influente think tank conservador que existe actualmente em Portugal. Seguir as genealogias de alguns dos seus mestres e discípulos é perceber exactamente donde vêm e quais os seus objectivos.

Saturday, September 15, 2007

The Shock Doctrine by Alfonso Cuarón and Naomi Klein

Naomi Klein está de volta

Friday, September 14, 2007

Scolari salva cigano de ser triturado por sérvio animalesco

É memo assi, galera! Luizão botou pa quebrar! Foi naquele funesto dia (embora já fosse noite) que Scolari mostrou ao mundo o que ainda pode fazer pelas minorias mais desprotegidas. O pobre e desvalido Quaresma, membro de uma minoria que passa por particulares apertos a nível europeu, ia sendo vítima de um ataque vil e cobarde por parte de mais um sérvio enraivecido. Ia, digo bem! Não fosse a mão divina de Scolari se ter intreposto entre o nazi elouquecido e o pobre desprotegido cigano, estariamos agora a lastimar mais uma vítima do racismo e da intolerância.

...Aquele sérvio, alma podrida como as maçãs que caem estioladas da árvore da sabedoria, munido das mais baixas intenções, do mais puro ódio ao seu semelhante, da mais chã humanidade, atacou animalesca e selvaticamente, uma alma de deus, que, só porque nasceu do lado errado da fortuna humana, se viu assim abastardado por um estrangeiro. Mas eis que, senhores, qual mão divina que desce do empíreo e inscreve sua majestática ordem na baixeza da muy humana condição, Scolari desfere o impreterível soco a tempo de evitar o pior. Também Cristo disse, “não vim para trazer a paz, mas sim a espada”. Demos por isso graças à divina mão de Scolari, que se soma assim a outras mãos, cunhadas igualmente com esse lastro da divindade, a mão de Maradona, amém, a mão de Abel Xavier, amém (chiça que esta foi do Mafarrico!!!) e agora...a mão de São Scolari! E qual o homem que se diz homem aos olhos do Sr., não mostra verdadeiro arrependimento? Irmão Scolari, nada é mais profundo no homem do que o sincero arrependimento. Mas assim como Santa Teresa se arrependia honestamente das visões que a assolavam não vacilando na sua fé e amor a cristo, também tu irmão, que conduzes esta caravela por águas turbulentas, persistes na tua missão, sem vacilar, sem titubear perante os ventos de calúnias que sopram dessa pérfida Belgrado.
Irmãos, Scolari mostrou que entre nós, portugueses e brasileiros, nos liga uma inquebrantável fibra. Que na defesa de um nosso irmão cigano, somos todos filhos de deus; e que o murro que dás hoje há-de garantir o pão que o pobre comerá amanhã. Quem nunca partiu os queixos a um sérvio que atire a primeira pedra!

Excerto retirado da homilia do Bispo de Braga hoje de manhã

Thursday, September 13, 2007

A Zé Povinho

A ideia da chinatown não é nova. Até já se tinha materializado ali para as bandas do Martim Moniz. Mais tarde foi devorada pelo fogo, e por isso o projecto voltou a ficar pelo território das ideias. Agora, uma coisa é ter uma chinatown, planeada de raiz, ou então resultante das dinâmicas de segregação urbana; outra, é correr com os comerciantes chineses para devolver a Baixa aos cidadãos. Mas quais cidadãos? Julgando pelo exemplo da Avenida da Liberdade, a imagem do cidadão que por lá se passeia andará entre o turista desprevenido, as putas e os senhores com as suas madames que vão fazer compras ao “comércio tradicional” dos “Rosa e Teixeira”, Luis Vuitton e quejandos. Por conseguinte, o mais tradicional do comércio tradicional.
Que a Baixa foi abandonada aos porcos, é fácil de constatar. Nenhuma outra cidade, como aqui já referi, tem um centro completamente paralisado, deserto, sem vida, como Lisboa tem aos fins-de-semana. A resposta é mais complicada, e não vale assacar as culpas aos chineses.
Não sendo eu urbanista, mas gostando de me passear pela Baixa, encontro três razões fundamentais para este estado de coisas. Primeiro, uma total ocupação por escritórios ministeriais que tornaram a Baixa propriedade do estado. Tal facto conduziu a que a maioria dos edifícios deixasse de estar disponível para aluguer, sobretudo os andares térreos onde geralmente se instala o comércio. Segundo, a (i)racionalidade do aprofeitamento de potenciais espaços de comércio através do formato urbanístico do centro comercial. Mesmo o Chiado, acabou por se sujeitar a essa forma endémica da espacialização lisboeta chamada centro comercial. Resultado: toda a gente encafuada em mais um prédio cheio de lojas. Terceiro, a racionalidade dos centros comerciais não surge por acaso; é porque os preços do aluguer são proibitivos, que os lojistas preferem soluções que lhes garantam economias de escala. Num sítio onde se concentram muitas lojas, pelo menos tenho a certeza que irei beneficiar das sinergias trazidas pela proximidade a todas as outras lojas. Por isso a Loja das Meias morreu, porque se viu gradualmente isolada de todos os potenciais espaços comerciais – salvo o animatógrafo do Rossio, mas é duvidoso que alguém que se desloque para comprar uma vagina mecânica vá a seguir adequirir um cascolzinho e uma camisa de xadrez.
Ora, o que fizeram a maioria das cidades europeias para revitalizarem os seus centros? Correram com os chineses? Não me parece. Engendraram esquemas de financiamento diferenciados para capatarem não só os matulões do comércio como também darem a oportunidade ao pequeno comércio. Pela simples razão de que um gajo não vai beber um galão e comer um queque à Luis Vitton, mas sim à tasca do Manel, que pode ser mais ou menos tasca, consoante os gostos. Por isso, a maioria das cidades europeias conseguiu revitalizar os centros com esta combinação extremamente bem sucedida de grandes lojas e pequeno comércio. Mas com esquemas de financiamento assimétricos, porque senão só lá caem os empreendimentos Belmiro.
...
Mas Portugal é um país dual: de gordos e de magros. A passagem de um para outros é apenas questão de saber quando é que se há-de enfiar a próxima colherada.

Gli Cinesi! Gli Cinesi


Há no discurso de MJNPinto alçapões e labirintos, tão imprevisíveis como insinuantes, e tão subtis quanto dignos de preocupação. Dito assim, esta mulher deve ser um vulcão. Mas a questão do perigo amarelo não é nova; e talvez se tenha imiscuido de formas insuspeitas no espírito do bom cristão conservador. Veja-se por exemplo João Jardim, a correr com os chineses da sua ilha, cravando-lhes o libelo de concorrência desleal e de posse abusiva das riquezas da nação. Na altura, as autoridades da república responderam com um sereno encolher de ombros, isso são lá coisas do jogral da Madeira, e depois passa-lhe, pareciam dizer enquanto engoliam porcinamente um prato de caracóis. Houve na altura um certo mal-estar, um je ne sais quoi, de difícil localização, mas que se pressentia ir fazer carreira.
Agora foi a vez de MJNPinto, ecoando as verberações do vergel madeirense, socorrer-se do perigo chinês para acertar contas com o planeamento urbano. Ora já Pasolini tinha tido o mesmo pressentimento quando pôs Tótó a surprender-se com um esguaniço de mulher que gritava: gli cinesi, gli cinesi!, nessa imorredoira brincadeira política intitulada uccellacci e uccellini. E é disso mesmo que se trata neste caso, de uccellacci e uccellini, ou traduzido com alguma liberdade, passarinhos e passarões. A ideia peregrina segundo a qual são os chineses que estão a matar o comércio tradicional da Baixa, é uma ideia de passarão. Embora, no artigo de hoje do DN, Nogueira Pinto até confesse que há mão das grandes superfícies comerciais no descalabro lisboeta, parece chegar, a contrario sensu, à conclusão de que, afinal, “são os chineses”. Ouvem-se portanto, mais uma vez, os guinchos “gli chinese, gli chinese”. E se Nogueira Pinto até não dispensa fazer compras nas malfadadas lojas de chineses - para equilibrar o orçamento, diz ela -, é sempre com a expectativa de ser servida por um trejeito “sorridente e enigmático”. O sorridente, é fácil de perceber. Já Hergé põe os chineses sempre a sorrir no velhinho Tintim na China – o sorriso amarelo. O enigmático é mais...enigmático. A menos que Nogueira Pinto esteja à espera de ser arrebanhada para as vascas da revolução cultural e que lhe salte um chinês de trás do balcão, em pose de herói de shaulin, brandindo um infernal Livrinho Vermelho. Mais uma vez, o perigo espreita: gli cinesi, gli cinesi!

Wednesday, September 12, 2007

louvor e simplificação das feministas


A questão que o Nuno põe a respeito das feministas é pertinente. É a velha questão da dialética entre estrutura e agência. Através da sua acção as mulheres reproduzem uma forma de dominação grupal que as subordina. Ao se conformarem às imagens de belezem que lhes são impostas pela ordem falocêntrica, recolhendo, é claro, a recopensa dessa conformidade, algumas mulheres reiteram essas mesmas imagens socialmente impostas. E exercem sobre aquelas que, querendo atingir o mesmo ideal, não o conseguem, uma violência simbólica que se manifesta em depressões, neuroses ou, mais simplesmente, em sentimentos de inferioridade.
Culpadas ou inocentes? É uma questão irrelevante. A política não é uma questão judicial. É uma questão de luta igualitária e apenas isso.

ó graça moura, ó pacheco, acudam!

Mas onde é que andam os defensores da propriedade privada que ficaram tão indignados com a destruição do campo de milho transgénico pelos Verdeufémios? Porque é que não mandam já a Nogueira Pinto para o Mário Crespo? Não é a proposta dela de deslocar os comerciantes chineses(quer queiram quer não) para um gueto chinês um flagrante desrespeito pelo direito de propriedade?

Não me fodam....


A histeria piedosa com que a esquerda exige que as autoridades Portuguesas recebam o Dalai-Lama mostra bem a incapacidade dessa esquerda em romper consensos confortáveis. Porque raio é que o governo e o presidente deviam receber um monge budista que vem fazer uma conferência chamada "o poder do bom coração"? Dizem-nos que ele não é apenas um líder religioso, mas o principal rosto da oposição à ocupação chinesa do Tibete. O regime chinês não me inspira simpatia, mas alguém que se opõe a um regime odioso não merece automaticamente o nosso apoio. Em política, nem sempre o inimigo do meu inimigo é meu amigo. E ainda mais quando serve os propósitos de um imperialismo bem pior do que o chinês.

A trama adensa-se


Uma coisa não pode ser negada: quem é que quer saber do 11 de Setembro quando há o caso Madeleine McCann? Este último ofuscou completamente os tenebrosos acontecimentos do 11 Setembro (note-se que “tenebrosos” é ironia). Porque bem mais tenebrosa é a expectativa que se gerou em torno do desfecho do caso Madie; e nem sequer é dos próprios factos, que ainda estão por apurar. Mas que a mente humana se alimenta de especulações, lá isso sim – é assim desde o sexo até ao sucesso profissional, não tendo nós ainda capacidade de distinguir onde começa um e acaba o outro.
O 11 de Setembro, o que foi? A derrocada de um prédio; uns gajos a voarem como se tivessem entregado a um paragliding suicidário naquela manhã aziaga, e muito fumo, nevoeiro, gritaria e sirenes. Já tínhamos visto isto, mais coisa menos coisa, na “torre do inferno”, o original, protagonizado por um inesquecível Paul Newman. Mas o caso McCann, esse é especialmente surpreendente. Nem tanto porque seja um caso, como tudo aponta, de infanticídio. Há-os às carradas, perdoem-me a frontal crueza. Porém, não costumam envolver um primeiro-ministro, um papa e um (o) advogado do Pinochet! Só isso já são ingredientes suficientes para fazer deste caso tão apetecível quanto insólito. Depois há ainda um padre que emprestava as chaves da igreja para a família ir rezar. Haja fé, porque sentir uma urgência repentina pela comunhão divina, na casa do senhor, a desoras, de tal forma que não se consiga esperar pelo dia seguinte, é de verdadeiro cristão. Mas lá que não é usual, lá isso não é.
Mesmo Diana, a que arrasta multidões no seu sunambulismo ecuménico, se encontra colocada em cheque perante os artificiosos McCann. Se Diana simbolizava, para os ingleses - mas não só - a bondade humana no seu estado não contaminado, os McCann representam a perfídia no seu paroxismo; um enredo de tal forma diabólico que nem os melhores romances de Thomas Harris conseguiriam emular. Porque conseguir planear um périplo pelo mundo, a suspirar por alvíceras da filha desaparecida, presumivelmente raptada e entregue à escravatura da pornografia infantil, enquanto se passeia o seu cadáver na mala de um renault cénic, é de completo, mas honesto, esquizofrénico. A última narrativa reza que os infortunados McCann teriam posto os filhos nos braços do morfeu com sedativos (por isso é que os gémeos não acordaram, mesmo com toda aquela algazarra) para irem gozar a vida numa daquelas quentes e aprazíveis noites algarvias. Só que a coisa correu mal, e um dos três filhos escorregou para o big sleep. Ai, meu deus, qué queu faço à vida? Acalma-te Maria, temos que pensar! Fuck you, what have you done? You and your stupid ideas, like that time you’ve decided to deep the parrot in oil to avoid it eating its own feathers! Why did I trust you and your mambo jambo: “Relax, I’m a doctor, I know what I’m doing”. Shut up, you bitch, you were the one that come up with the idea of leaving the kids with the priest. I should have known: Priests alone with kids, bring me the little children, it couldn’t end well! Ai a minha rica filhinha, qué que fomos fazer? E a partir daí começaram a urdir o plano mais diabólico da história dos casos de infanticídio. Não que um dos seus precedentes, o caso Joana, não tivesse levado a palma da atrocidade e do gore, com a cena dos porcos e do cadáver da miúda estraçalhado pelos animais, com os ossinhos espalhados pela porqueira como se fossem talos de couve. Ainda para mais quando se tratava de infanticído mais incesto. Mas este dos McCann, desde que a suspeita sobre eles recaiu, tornou-se potencialmente appaling – como não se cansam de dizer os jornais britânicos – porque desfere uma machadada nas convicções do público habituado ao pelourinho e à praça pública, mas também aos santos e beatificações. A este público, que conhece das coisas apenas as duas certezas do bom e do mau, não admira que o caso McCann se substitua tão repentinamente à imponente dualidade moral desse já longínquo 11 de Setembro.

Dai lái ao Lama o que é de Lama


Esta coisa do Dalai Lama faz-me espécie. Para já, porque gente de bom senso devia estar-se a cagar para o Dalai Lama. Depois porque qualquer gajo que venha embrulhado num lençol, ou com um caixote na cabeça, como o papa, passear-se com o carimbo de Sua Santidade, deve ser logo corrido a pontapé; no sentido metafórico está bem de ver. E quando eu vejo gente de esquerda, alguns do BE, a ferverem porque o Dalai não foi recebido pelo governo, dá-me vontade de desancar a primeira velha artrítica que se cruzar no meu caminho em direcção à farmácia para comprar aerosóis para poder foder o ambiente.
Do Dalai Lama sei que vive em Los Angeles e que tem como adepto e indefectível acólito esse canastrão da sétima arte chamado Richard Gere. Que este último saque o que de melhor o mercado feminino tem para oferecer, ainda é digno de admiração; que o pequeno Lama ande pá aí a pregar a paz e a concórdia humanas é que já não há cu. O pequeno Lama escreve livros com títulos como "expandir o amor"; o Gere passa da teoria à prática, mostrando que nem no Tibete se pode apenas viver de espiritualidade.

Lembremos que esse outro exilado famoso da funesta Los Angeles, Lech Walesa, saiu um bom trafulha conservador quando se apanhou no poder; e parece que a cidade dos anjos corrompe até os melhores espíritos. Veja-se o que aconteceu com Adorno, que não querendo render-se, ficou a merecer o opróbrio dos “angelinos”. Vem de lá o Dalai Lama, coro de carpideiras de todos os sectores, que não é este recebido pelo governo! E por que razão receberia o governo um monge budista tibetano? Ele é o escolhido! Como o outro; o que vem acompanhado de fumo branco e do dobrar dos sinos, também tem honras de estadista e tapete vermelho. Enfim, chateia ver tantos homens santos a pedirem meças ao poder temporal.

Ian Brown - Illegal Attacks

finalmente uma canção de intervenção...

Show bizz



Quando a rapariga da CNN remata uma sequência noticiosa com o enfático "that was the world today" podemos estar certos que ela se refere ao mundo according to America. Para o ilustrar, a mudança radical operada nos relatos dos jornalistas sobre o Iraque desde que Bush de lá regressou. Se, anteriormente, eram as vítimas, as condições de stress permanente, a falta de preparação e o cansaço dos soldados americanos que figuravam como temas de caixa, após o regresso de Bush, e a concomitante afirmação de continuidade da presença militar americana no Iraque, os temas focados pela CNN mudaram. Esta mudança faz-se sentir sobretudo na supressão do relato dramático e sua substituição pela narrativa da imprescindibilidade. Depois de Bush ter reiterado a necessidade de permanência das tropas, a CNN enveredou por um estilo FMI, ou seja, a situação não é famosa, mas é porque as reformas não foram implementadas o suficiente. Assim, apesar de, em pano de fundo, nos surgir a imagem de uma terra devastada, sem infra-estruturas de qualquer espécie, onde os soldados americanos se passeiam como extraterrestres no meio de burqas e de gilabas, o retrato que nos é dado da sua permanência é um misto de pedagogia com filantropia. Sem soldados americanos, as tropas oficiais não se organizavam; sem o treino militar oferecido pelas tropas americanas era impossível criar zonas de segurança, e sem a putativa pedagogia emocional com que estes bravos heróis prodigalizam as famílias iraquianas, estas não subsistiriam ao medo gerado pela ameaça permanente da Al-qaida. Apesar deste esforço concertado entre a administração Bush e os auspícios da maior cadeia de televisão mundial, os Iraquianos sabem, porque vivem realmente o dia-a-dia, que a ocupação americana é parte do problema e não da solução. Sem forças ocupantes seria provável que os ataques terroristas terminassem, que o pânico permanente de viver na eminência de um ataque bombista desaparecesse, e que as famílias iraquianas voltassem ao seu quotidiano, numa terra que pudessem chamar sua, segundo as suas regras e preferências.
Mas a CNN dá o mote e fornce a síntese: "foi o mundo hoje!". O Mundo "deles", mas com certeza que não "foi" o mundo dos iraquianos. Justamente porque:

Por que se admiram eles de apenas concitarem o ódio e o desprezo por esse mundo fora?



Monday, September 10, 2007

A arrogância do império de sua majestade


O caso de Madeleine Maccan, mais do que mostrar quão insaciável é a curiosidade humana pela miséria e azar dos outros – incluindo a miúda-, revela a sanha com que os países europeus se atacam uns aos outros e a rapidez com que o verniz se parte quando surgem quezílias entre as nações. Isto não tinha que ser assim. Ou melhor, nada no conspecto europeu indiciaria que os países que fazem parte de uma mesma união – mas que significa ela, para além de livre circulação de pessoas e bens – se pudessem digladiar pela autoria de um crime. Isto é tanto mais ridículo quanto parece que neste caso se tornou mais importante imputar o crime ao outro do que propriamente resolvê-lo.

O caso MacCan possui todos os contornos de um incidente diplomático. Por um lado, jornais a lançarem acusações contra o país adversário; especulações e comentários pouco judiciosos por parte de pessoas com alto grau de responsabilidade – Barra da Costa é a perfeita exemplificação de como se pode cair no dislate apenas por defesa de orgulho corporativo. Por outro lado, saltaram acusações de incompetência como se fossem o santo e a senha desta contenda. Se os jornais britânicos acusaram a polícia portuguesa de ser incompetente, os portugueses não se fizeram rogados e demonstraram por artíficios retóricos como era possível um laboratório britânico demorar tanto tempo com uma porcaria de umas análises. Ninguém percebe nada do raio das análises, mas assim como assim, as esclarecidas mentes jornalísticas – e policiais – disseram imediatamente que aquilo era coisa para se fazer em 48 horas. Ora num país que é famoso pela expediência com que trata todos os seus assuntos, desde operações de cirurgia até reembolsos das finanças, uma tão enfática declaração de celeridade passa por ser algo de inusitado.
Do outro lado da mancha, andam os tablóides e outros menos amarelos a especular sobre as culpas que a polícia portuguesa possa ter tido no desenrolar deste caso. Sobretudo, quanto à sua resolução, caso se conclua que os pais da pequena estiveram envolvidos no seu desaparecimento. Como diz o artigo do Guardian acima citado, eles bem que preferiam que fosse um português, feio e façanhudo, com historial de crimes sexuais, de preferência com muita pedofilia à mistura, e se pudesse ser cigano, isso seria a cereja no topo do bolo! Infelizmente as sinuosidades da criminologia não se vergam facilmente às esterotipias jornalísticas. E lá temos problemas: porque se anda um país todo a suspirar para que seja um porco de um português e resulta que sai na rifa um casal oxigenado, da melhor cepa britânica, cirurgião destacado no seu círculo eleitoral, é caso para estragar os fantasmas aos súbditos de sua majestade.
E no entanto, ou apesar disso, o impasse a que a investigação parece ter chegado não augura um desfecho fabuloso para a história. Não obstante os jornais portugueses berrarem que há provas irrefutáveis contra os MacCan, porque o teste do ADN deu positivo quer nas roupas da mãe quer num carro alugado três semanas após o desaparecimento, o facto é que se o teste de ADN não fornece uma correspondência perfeita, existe margem muita alargada para diversas hipóteses. Lá vêm os peritos ingleses, estrategicamente silenciados pela imprensa portuguesa, avisar que, sim senhora, há ADNs compatíveis, mas é preciso saber, sem margem para dúvidas, se o ADN não pertencerá aos irmãos. Não possuo conhecimentos suficientes sobre as leituras de teste de ADN, porém o que parece relevante é que ainda não há prova irrefutável, apesar de os jornais portugueses darem já o caso por encerrado.
Os britânicos, na sua arrogância costumeira, continuam a achar – e a propalar – que é impensável que a autoria de um tal crime pudesse ser atribuída a uma bela família de classe alta britânica. A polícia portugueza (e suspeita-se que o governo sócrates também) reza à senhora de fátima para que o crime tenha sido cometido pelos insidiosos burgueses da britânia, vindicando assim uma vitória que nos foi roubada nos idos de 60 (um dia hão-de ser os gregos, mas isso terá que ser por uma qualquer desavença sobre as origens da Acrópole). Portanto, as apostas estão lançadas e é ver quem dá mais. De um lado, um país suspenso no bom nome da sua polícia. Do outro, um país à beira de um ataque de nervos pelo bom nome da sua gente. Só que, se crimes e acidentes respondessem a padrões de previsibilidade (e esta é sempre fundada num qualquer preconceito) não existiam detectives nem companhias de seguro. Como dizem do outro lado do canal: Shit happens!

Friday, September 07, 2007

Contra as femininistas

Por que será que as feministas insistem em considerarem-se vítimas de um universo masculino? “denying oneself food becomes the central micro-practice in the education of feminine restraint and containment of impulse.” (Susan Bordo). Sugere uma imposição, do exterior, e em última análise, da falocêntrica sociedade ocidental.

E todavia dir-se-ia que a mulher até possui liberdade suficiente para aderir ou recusar os padrões de consumo que, supostamente, lhe são impostos. Mas o absurdo nem sequer é aqui que é detectado. Como se a mulher não fosse ela um agente narcisista que faz escolhas consoante uma imagem própria da beleza. Como se a mulher não gostasse, de mote próprio, de sentir-se atraente e de atrair. Dificilmente se explicaria as poses estudadas dos modelos fotográficos quando agarradas pela insaciável curiosidade da câmara à entrada das discotecas; ou a postura de diva dos anos 20 que muitas das estrelas de Holliwood envergam em noite de Óscares. Ah, mas copiam um modelo que lhes é imposto. E por que não, serem elas a imporem o modelo, tornando assim todas as outras potenciais infelizes?

Contra Weber


Uma das frases que ressalta dessa obra prima da sociologia contemporânea chamada Le Nouvel Esprit du Capitalisme é “...le capitalisme est un systéme absurde”. A frase seria de somenos, não fosse dar-se o caso de ela eventualmente servir de alicerce a todo o projecto de crítica do capitalismo que se encontra contido na obra. Ainda para mais se pensarmos que ela serve de mote a uma ideia de capitalismo enquanto sistema que necessita de se justificar. É justamente porque o capitalismo é absurdo, que ele, sistema, precisa de formatar-se de acordo com justificações; ou seja, exige uma ideologia que o justifique enquanto sistema hegemónico. O corolário é que para o minar enquanto sistema absurdo, só é necessário uma contra-ideologia que o desmobilize. A crítica do capitalismo – para a qual a obra em apreço tem, segundo os autores, por finalidade última contribuir – coloca em questão as justificações de que se serve o capitalismo e ao fazê-lo obriga-o, de certa forma, a "desjustificar-se". Note-se que o termo chave aqui é o de justificação: na medida em que os trabalhos anteriores de Boltanski consideram a prática social como pragmática auto-justificativa, através da qual os indivíduos se situam e situam os outros no mundo, o espírito do capitalismo tem que ser algo que mobilize de igual forma um sistema de justificação. Para o provar, Boltanski e Chiappelo escalpelizam aprofundadamente os manuais de gestão e a conclusão, em traços muito gerais, é que as justificações se transformam consoante os estados da crítica com que deparam.
Atalhando, se retirarmos como autoevidente a proposição segundo a qual o capitalismo é um sistema absurdo, ficamos com uma grande interrogação sobre as razões (e potencialidades) que informam a ideologia justificativa do capitalismo, i.e., sobre a eficácia do seu espírito. Por que razão é o capitalismo um sistema absurdo? Cruel, insensível, deslumbrado, inconstante, impenitente, etc, etc, talvez – postulando que estas antropomorfizações até cabem ao capitalismo. Mas absurdo?
A negação da materialidade do capitalismo (mas são os autores a assumi-la e a aceitar que a sua análise se encontra incompleta) implica que a sua dimensão ideológica seja superlativizada. Ora suponhamos que os agentes do capitalismo só em segundo grau precisam de ser convencidos, e que lhes basta a tangibilidade do dinheiro como justificação suficiente para agirem enquanto capitalistas. Mesmo que não nos sintamos confortáveis com a ideia de tangibilidade do dinheiro, e a esta possa ser contraposta a sua virtualidade financeira, a sua inexistência material, não reterá ele, o dinheiro, a capacidade simbólica de gerar acções? Regresso a Parsons e à função simbólica do dinheiro enquanto elemento da troca social. Será que o dinheiro não é motivo suficiente para aderir, sem concessões, ao espírito do capitalismo, seja o novo seja o antigo?

Thursday, September 06, 2007

Bowling contra Putnam - a insustentável leveza da comunidade

A razão pela qual o estudo de Putnam encontra uma quantidade de escolhos encobertos pelas turbulentas águas da ideologia é simples: a comunidade, assim como Putnam a concebe, já não existe, ou encontra-se em vias de extinção. Putnam pertence à longa lista dos amigos de Toqueville e nessa inspirada relação encontra o seu zénit académico, o ápice da comoção social e da sua análise crítica.
Nesta confraria, há muita gente preocupada com o facto de os velhos hábitos se estarem a desvanecer. A este pânico pelo gradual esmaecimento da tradição podemos apelidar de atavismo. Mas talvez seja exagerado lançar tão forte libelo ao que, afinal, até parece ter boas intenções, ao pretender recuperar um qualquer mundo perdido onde a confiança mútua engendrasse comunidades e onde a proximidade (a velha proxemia) fosse o molde em que os humanos se forjassem enquanto animais gregários. Daí que analisar idas à igreja, chás de caridade, clubes de gamão e de bisca lambida, parece devedor de quadros de antanho, vírus toqueviliano de fácil impregnação, mas de muito difícil remoção.

No tempo de Toqueville, uma comunidade era algo tangível, e que tanto podia assomar por ocasião de um funeral à boa maneira puritana – com discursos e belas e emocionadas palavras – como em torno de um cadafalso, a esquartejar bruxas ou mulheres perdidas – que as hay a gente já sabia – como nos contam as aventuras da scarlet letter, eventualmente o romance anti-toqueviliano por excelência (pura especulação). O ponto é que este sentir comunitário enquanto fenómeno agregado de viveres antigos existe apenas na imaginação passadista do sonho americano.
Onde é que Putnam erra, mas erra estrondosamente? Hoje em dia, é mais fácil encontrar comunidades virtuais, através das sinuosas vias da internet, comunidades para todos os gostos, desde desviantes sexuais, admiradores da mesma raça de cães, nudistas, culturistas, até grupúsculos que se organizam em torno dos mesmos livros e que surgem tão espontaneamente quanto a amazon.com os cruza recorrendo às suas potentes bases de dados. Pegando neste último exemplo: enquanto cliente da amazon.com, ao comprarmos um livro, somos imediatamente categorizados num cluster que possui os mesmos gostos. Esta agregação é eventualmente mais potente do que qualquer grande sondagem, e surge com a espontaneadade de uma escolha consumista. Este simples acto, atira-nos inadvertidamente, sem que o quiséssemos, ou sem que para isso necessitássemos de uma qualquer declaração de intenções – para além da compra – para uma comunidade, para um círculo que partilha as mesmas escolhas, de tal forma que a amazon.com acerta com uma precisão quase tenebrosa. Esta não é a idade das trevas para a comunidade. Esta é, antes de mais, a idade da profusão virtualmente infindável da comunidade – pequenas e mutáveis comunidades; comunidades intangíveis, comunidades que se formam e dissolvem na mesma semana.
Os indivíduos não vão à igreja? Não se encontram no largo do coreto para cavaquear? Não se mobilizam nas decisões da coisa pública? Pois não, e não é por isso que eles deixam de se ligar, melhor dizer conectar, em míriades de contactos, alguns duradoiros, outros fugazes, mas que se multiplicam em redes e conexões. Na época do virtual a comunidade não pode corresponder à middle town. E se temos mais contacto, se partilhamos mais a nossa intimidade com alguém que está no Japão do que com o nosso vizinho, é porque as coisas que podemos partilhar com o nosso vizinho são na verdade extremamente limitadas. Conviria por conseguinte interrogarmo-nos por que razão nos é menos penoso partilhar certas coisas com alguém que se encontra a milhares de quilómetros de distância do que com a velha que vive na porta ao lado. Isto coloca um hiato incolmatável entre a confiança e a proximidade física e espacial.

Comunidade sem corpo versus corpo comunitário.

Monday, September 03, 2007

Grundriss


Marx, nos seus artigos como correspondente europeu do New York Tribune, mostra o quanto um filósofo se pode envolver com o mundo, e portanto, não apenas pensá-lo. Num dos artigos, intitulado The Conditions of Factory Workers,, Marx refere as condições de perigosidade a que os trabalhadores eram sujeitos. Aí se faz alusão ao excesso de horas de trabalho, à falta de protecção, à condição desnutrida de certos trabalhadores, etc. As consequências destas condições cifravam-se em um número terrífico de acidentes de trabalho cujas vítimas, privadas do seu principal instrumento de sobrevivência no mercado de emprego – a força de trabalho – se viam obrigadas a cair na miséria e na mais extrema destituição. Marx apela para o trabalho e eficácia dos inspectores fabris, mas salienta que estes são sistematicamente ludibriados pelos patrões, ou porque os trabalhadores e as áreas com piores condições não se encontram acessíveis quando os inspectores chegam às fábricas, ou porque os patrões conhecem com antecedência a data em que os inspectores visitarão a sua fábrica, ou porque os trabalhadores, note-se, trabalham clandestinamente e portanto não são contabilizados pelos registos dos inspectores fabris. Ao ler o artigo torna-se difícil deixar de equacionar estes mesmos problemas com a actualidade. Rigorosamente as mesmas dificuldades que os inspectores do trabalho enfrentam actualmente. Não pode passar despercebido que actualmente, as precárias condições de trabalho dos trabalhadores ilegais, o número expressivo de acidentes de trabalho que atinge esta população em particular, bem como a sujeição à exploração por excesso de horas de trabalho, possuem profundas ressonâncias com a descrição que Marx fazia das condições fabris. Curiosamente, parece que Marx antecipou o conjunto de potenciais indicadores que hoje em dia utilizamos quando queremos dar uma ideia das periclitantes condições de trabalho dos trabalhadores ilegais imigrantes. Em verdade, só nos resta concluir que pouco mudou, sendo que a mudança mais crucial foi a deslocação desta sujeição dos nacionais para os estrangeiros. Lendo os artigos que Marx escrevia em meados do século XIX para o New York Tribune, convém que nos interroguemos se há realmente diversas fases do capitalismo, ou se o capitalismo tardio só surge enquanto radicalmente diferente para aqueles que não se encontram nas perdurantes esferas de sujeição – físicas e morais – do velho capitalismo desorganizado.

Sunday, September 02, 2007

Bowling with Putnam

É provável que o último trabalho de Putnam faça correr muita tinta nos anos mais próximos. Não só nas diatribes académicas – onde promete muita e intensa discussão – como no debate político em geral. Um outro estudo, com semelhante impacto, tinha catapultado Charles Murray para as páginas dos maiores jornais internacionais. A Bell Curve arriscava a dubitativa e estrondosa hipótese de existência de diferenciais de inteligência entre grupos raciais. O impacto deste estudo, como é sabido, não ficou pela academia, extravasando para o espaço público e para as engenharias políticas onde teve largo aproveitamento por parte dos sectores conservadores da sociedade norte-americana. Só que neste caso, as conclusões do estudo estavam erradas e as suas premissas eram demasiado frágeis para resistirem às sucessivas refutações a que foram sujeitas.
O estudo de Putnam, embora anuncie um impacto semelhante, encontra-se noutra categoria. Nem os seus intentos são propagandistas, como as conclusões parecem ser bem mais robustas. O que descobriu Putnam no seu Diversity and Community? Simplesmente que quanto maior é a diversidade menor é a confiança entre indivíduos. O que sugere uma tese geral: maior diversidade étnica menor sociabilidade e menor a eficácia do capital social. Nas palavras de Putnam: “In the short and medium run (...) immigration and ethnic diversity challenge social solidarity and inhibit social capital
Este estudo demonstra que os níveis de confiança entre grupos étnicos estão negativamente correlacionados com a diversidade étnica. Estes níveis de confiança não se reduzem a confiança inter-pessoal, mas reflectem igualmente baixa confiança nas instituições, menor envolvimento na solução de problemas colectivos até menor níveis de felicidade e de percepção da qualidade de vida. Em suma, a confiança social é afectada pela maior diversidade étnica em inúmeros “social settings”! Putnam não é desavisado, muito pelo contrário. Por isso testou todas as possíveis variáveis sociais que possam influenciar este padrão, tais como: níveis de pobreza, educação, idade, sexo, densidade habitacional, etc, etc. Filtrando a informação pelas variáveis sociais canónicas os resultados mantêm-se inalterados. Ou seja, mesmo controlando uma série de variáveis passíveis de interferir na relação, esta mantém-se. E mesmo controlando efeitos de colinearidade, a relação não é espúria. Com grande grau de fiabilidade se pode afirmar que existe uma correlação negativa entre diversidade étnica e confiança. Mas Putnam vai mais longe. Sucede que não é só em relação ao out-group que a confiança é baixa, mas, surprise!, também em relação ao in-group. Significa que a confiança no in-group não surge como o reforço simétrico etnocêntrico da desconfiança em relação ao out-group. A falta de confiança extravassa o “outros” e espraia-se pelo “nós”.
O estudo de Putnam é de leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam por estas matérias. Mais do que infirmar os seus resultados, importa fazer um exercício meramente especulativo e imaginar a possibilidades de extrapolação das suas descobertas. Muitos dirão que se isto é de facto fiável, e sabendo nós como a confiança entrou em aluvião pelo léxico gestionário e pelas relações interpessoais, então escolas mistas, passam a ser sinónimo de menor inter-confiança, bairros interraciais, escolhas a evitar no planeamento urbano, e podem ir imaginando uma panóplia de situações onde o padrão poderá ressurgir.

In God we (must) trust

Tens of thousands are still living in cramped caravans provided by the Federal Emergency Management Agency (Fema). Many schools have not reopened. Basic medical and social services are being provided by churches and charities, working out of caravans, who claim that stress levels have risen to an alarming degree. And, on top of all that, the city is experiencing a crime wave, up 33% on last year, with a murder on average every 1.8 days, putting it on course to become the murder capital of America by the end of the year.

On a playground between a flyover and a cemetery, Janet Washington stood in the 38C heat and said she was sick of New Orleans. Aged 57, divorced, with grown up children, she shares a Fema trailer with her sister and brother-in-law. She cannot afford to live in New Orleans any more: she paid $500 (£250) in rent for an apartment before Katrina but, with the shortage of housing, would have to pay twice as much now.

An African-American, she thinks race will determine the shape of the city: "I think they only want a segment of the community to come back. The majority of poor people are black and they have not planned on them coming back."

People feel let down. T-shirts on sale read "Fema - Fix Everything My Ass". Only about a quarter of the compensation promised by the federal government for rebuilding homes has been paid out: 37,000 cheques out of 162,000 applications so far. Insurance companies too have been reluctant to pay out.

Al Naomi, a senior project manager with the corps, said decisions about defences were not purely engineering ones but political and social. "Some people will get protection and some will not, and I do not know what will happen when they find out," he said.

Saturday, September 01, 2007

Parco elogio fúnebre a EPC

Morreu Eduardo Prado Coelho. E eu chego atrasado ao funeral. Ninguém me conhece, e melhor assim. Mas conhecia eu o EPC embora ele nunca me tivesse visto, a não ser naquele dia a beber uma bica no CCB em que a ele me dirigi, cumprimentando-o efusivamente, rematando o meu júbilo com a frase "imagine-se encontrá-lo aqui!".

Li vários aí pela blogosfera. Todos o odiavam (ou quase todos); o mesmo é dizer todos o invejavam. Porque não é fácil escrever "...o discurso interior impõe-se com uma espécie de júbilo vingativo e as frases mais delirantes sobrevoam-me como helicópteros que disparam às cegas sobre a minha cabeça (será o apocalipse). Daí que escrever implique um uso produtivo do cansaço. Mas, para que haja um uso produtivo, é preciso que o próprio cansaço o permita. Nem sempre. Ou melhor: raramente." (Tudo o que não escrevi, II)

E foi justamente este o livro, ou a série, que me ficou na memória. E como não possuo condições para julgar a medida da grandeza intelectual de Prado Coelho, recuo perante a banalidade e o disparate, remetendo-me circunspecto ao silêncio.

Mas levo-me a outro caminho. Um que não me implica na sua erudição, nem tão-pouco me deixa presa das pressurosas razões que se aduzem sobre os mortos que sob eles construiram um reino - de fantasias, de amorosas desrazões, de parábolas ou de verdades amargas. Digo apenas que, e tento fazê-lo num apelo certeiro,.

E num tom sério e circunspecto: também ele se aproximou do literário como ninguém (não eu, compreenda-se). Muitos outros, lidos e relidos, e tão lidos que se tornaram em sua expressão mais essencial, delidos. Sim, é sobre o amor que discorro. E esse já não se encontra em muitos lugares; definitavamente não nos novos críticos, cuja sensibilidade se aproxima de um focinho de um ouriço. Não haviam pois de gozar. Quem mostra demasiado uma paixão é sempre punido na rudeza do pelourinho. É assim desde tempos imemoriais.

Cá vou com a fina tecitura do "tudo o que não escrevi" porque ler-te em diário constituia bem mais parcela do real do que todos os elogios fúnebres que ainda em vivo te dedicaram. Sobretudo quando a paisagem não se cansa vista de uma janela de um comboio.